Foi até fácil de mais conseguir um atestado médico de duas semanas. Eu tenho os meus contatos, principalmente depois de ficar séculos no hospital, então qualquer coisinha que eu finja sentir, é afastamento na certa!

Então era isso, eu tinha apenas duas semanas para, primeiro, encontrá-los. Segundo, convencê-los de que eu sei onde está o segredo que procuramos. E, terceiro, fazer com que tragam a Mel de volta.

Teria tudo para ser um bom plano, mas o problema que o segredo é tão segredo que nem eu, que fui designado para encontrá-lo, sei do que se trata. No início eu não sabia nem se era vivo ou inanimado. Recentemente descobri que é um ser vivo. Talvez pessoa? Talvez, pois não há nada que me comprove. Mas sei que está em Bráscuba e essa é minha maior descoberta até então.

E o melhor, é que nenhum ser deste mundo ou do Mundo dos Sonhos, sabe qual a verdadeira essência desse segredo. Não havia uma entidade que o guardava. Não havia nem ao menos um criador. O segredo apenas existia. E todos sabiam da sua existência.

O imaginado era que em um dia o segredo apenas se revelasse. Não se sabia a magnitude dos frutos dessa revelação. Atingiria somente o Mundo dos Sonhos ou o Mundo Real também? Era impossível de se saber. A única coisa que todos sabiam era que uma vez revelado o segredo, ele seria comum a todos os Arautos. E todos poderiam partilhar do poder, conhecimento ou estado de espirito que o segredo proporcionasse.

Digamos que esse segredo fosse um algo superior a qualquer Arauto. Na verdade, isto não se chama de fato “segredo”. Eu o chamo assim, pois o pouco tempo que me vejo como Arauto, eu sinto-o como um segredo, um mistério. É algo inexplicável, talvez onipresente. Você não vê, você sente. E o segredo está aí, sempre superior a qualquer decisão sua. Ou melhor, estava aí.

O que se deu foi que o segredo finalmente se revelou. Porém, não foi como todos imaginavam. A luz brilhou somente para um Arauto. Um Arauto que eu desconheço. Um Arauto que me criou!

A reflexão que pairava na minha mente quis cessar, mas eu continuei a pensar. Continuei a forçar minha mente a relembrar cada minúsculo detalhe da minha história. Eu tinha que fazer com que ela parasse de ser meu ponto fraco, a fonte do meu tormento.

E então, eu iria morrer. Junto com Sofia, eu iria morrer no acidente, era fato. Porém, aconteceu. Dentre milhares de mortes que estavam acontecendo por todo o mundo naquele segundo, eu fui escolhido. Naquele ônibus que partia de Bráscuba, com duas crianças que fugiam de casa.

Senti uma grande dor. Era a morte, só podia ser! Foi bem rápido, nem deu tempo de sentir medo. O único sentimento que tive foi uma espécie de conformidade, talvez. Parecia que minha mente e minha alma estavam se adaptando ao novo estágio a que seriam elevadas. Se preparando para deixar meu corpo que já caia sem vida.

Então veio uma luz forte. Poderia ser o paraíso, mas não era. Junto com a luz, uma voz incidiu e inundou cada memória minha. Eu comecei a tomar ciência de uma realidade que não cabia mais aos valores humanos. Toda uma história começou a ser narrada dentro de mim como se minha vida dependesse de um algo que eu, até então, desconhecia. Um algo que agora parecia estar incrustrado no meu ser. E foi neste exato momento que tudo ficou claro. Palavras, termos, significados, antes desconhecidos, se tornaram muito reais na minha cabeça.
Meus olhos viam sem eu ver. Meus pensamentos surgiam sem eu pensar. E as peças de um infinito quebra cabeça se moldavam uma a uma, como se meu universo não fosse mais a minha casa, minha família e escola. Era como se tudo fosse realmente novo e grandioso. Muito além do que um simples ser humano pudesse ser capaz de imaginar. Uma realidade que era apresentada somente aos olhos de um Arauto, ser que eu acabara de me tornar.

Parei de relembrar minha história por um momento. As lembranças do exato instante em que eu me tornei um Arauto eram bem nítidas e fortes dentro de mim. Não é algo facilmente esquecível. Jamais. É lembrar da morte, da dor, das perdas. Pois é fruto da morte que nascem os Arautos Secundários. Esta benção – ou maldição para mim - só pode ser dada a um ser humano que está morrendo. É uma espécie de sucessão. Um Arauto Nato pode deixar de existir, mas nunca morrer. Nunca morrer em termos, na verdade. Seu corpo, sua matéria desaparecem, mas ele pode passar memórias, experiências de vida ou quaisquer outros sentimentos e conhecimentos a outro Arauto Nato ou a um Arauto Secundário que ele pode, ou não, criar no momento em que seu fim está próximo.

E acredite, é muito raro o surgimento de um Arauto Secundário. É uma tolice, praticamente uma quebra de hierarquias já que um ser, dotado de poderes divinos, passa grande parte de seus conhecimentos para um coitado de um ser humano recém-falecido. Essa é a maior ironia no conceito dos Arautos. Exatamente por isso que essa sucessão é um fato raro de se ver. Na verdade é visto como um acontecimento rejeitado. Fruto de covardia e falta de nobreza da parte do Arauto, que prefere manchar o Mundo dos Sonhos com uma população de criaturas inferiores, do que transmitir seus conhecimentos àqueles de sua mesma raça.

Os conhecimentos mais importantes do meu criador surgiram em minha cabeça de um momento para o outro. Para mim, eu nem havia saído do meio das ferragens do ônibus retorcido. O cheiro de metal em brasa ainda era muito familiar em minhas narinas. Porém, quando abri meus olhos, eu já estava deitado em uma maca fria no leito de um hospital. E cinco meses e meio haviam se passado. Cinco meses e meio para minha mente se acostumar com a vida do meu criador, pois agora meu corpo era só uma casquinha, uma marionete que retinha um conhecimento e devia cumprir um dever.

Eu mal tinha despertado para o mundo dos Arautos e havia descoberto que além de me criarem, me criaram errado. E cabia a mim e, somente a mim, consertar esse erro. Mas, realmente, era muita sorte para um quase- morto/recém-ser-celestial só.
Meu criador tinha ciência do que se tratava o segredo. Somente ele tinha esse poder e essa dádiva. Mas, por algum motivo de força maior, ele nunca revelou para mais ninguém do que sua descoberta se tratava. A única coisa que eu sei é que ele não considerava que era o momento certo para tal revelação. Creio eu que esse momento logo chegaria, porém alguns Arautos não suportavam a ideia de que um bem comum a todos os Arautos havia se tornado sabedoria de apenas um. Não demorou muito, então, para agirem. Um grupo de Arautos, que se auto intitularam como ‘Manipuladores’, pareciam ter sede do conhecimento do segredo. A ambição por esse bem era tão grande que eles não poupariam esforços algum para conseguirem uma revelação plena. E foi a base disso, talvez em um momento de desespero e em prol da certeza de que o segredo continuaria seguro, que o detentor do segredo deixou sua vida para me criar. Criar o que para ele seria uma espécie de guardião do segredo.

E é exatamente ai que entra o erro na minha criação. No momento em que a sucessão ocorria, esta foi interrompida. Oras, eu era um menino entre a vida e a morte, que sentia dor e medo e, do nada, meu corpo entrou em um estado que nem eu sei definir exatamente como era, apenas estava ali, invadindo cada pedacinho do meu ser. Era nada mais do que normal que eu começasse a delirar! E delírios são sonhos. Sonhos podem ser infiltrados. Uma sucessão não pode ser infiltrada. Porém pode ser interrompida por uma infiltração.
Esse era o objetivo dos Manipuladores! Interromper a transferência. Fazer com que meu criador não conseguisse passar o segredo para mim. Talvez, na verdade, eles até possam ter entrado na minha cabeça para tentar ler o segredo que se incrustava no meu ser, no entanto, nem eles nem eu conseguimos descobrir do que se tratava tal informação tão cobiçada. No momento em que tudo ficaria extremamente claro para mim, qualquer espécie de conexão que se estabelecia entre o Arauto criador e meu ser foi interrompida, como se um interruptor desligasse toda a luz repentinamente.

Então minha condição era carente. Era incompleta. Minha criação não teria propósito algum se eu não fosse detentor do segredo. As memórias do meu criador berram alto na minha cabeça a cada vez que eu penso em ignorar todos os fatos e tentar viver de uma forma mais ou menos comum. Tenho que seguir meu fardo. É necessário se tornar um ser completo para se sentir repleto. E esta é minha busca. Preciso descobrir qual é o tão famigerado segredo que se perdeu. Quer dizer, não se perdeu. Foi extraviado.

O fato de eu saber que no momento em que minha sucessão foi interrompida, os conhecimentos que me faltaram foram transferidos para outro ser não muito distante de mim, é de uma utilidade imensa! Essa condição de desvio é muito rara de se ocorrer. Tão rara que pouquíssimos sabem que isso pode acontecer. Eu sei disso, assim como sei de muitas outras condições que apenas pipocaram no meu cérebro após minha criação. Infelizmente, acho que os Manipuladores também sabem disso, pois com muita frequência sinto suas presenças e suas proximidades. Eles também sabem que a provável localidade do atual portador do segredo seja em Bráscuba.