Mudança de Planos
Capítulo XIV • Fogo
Existem poucas coisas nessa vida que me surpreendem de fato, afinal, estou sempre pronta e armada até os dentes. Sem falar no fato de que me habituei a não criar expectativas ou coisa do gênero.
Entretanto, e apesar de tudo o que sinto e sou – apesar até mesmo do meu dom para a negação –, Rob Müller havia me beijado. E, por mais inusitado que pudesse ser, eu não estava surpresa apenas com o fato de ele ter me beijado.
Na verdade, o que me deixava mil vezes mais inquieta era o fato de eu ter gostado.
Muito mesmo.
Contudo, e infelizmente, eu não tive tempo suficiente para aproveitar os resquícios de felicidade e euforia que o fim de semana havia me proporcionado. A segunda-feira chegou, e eu precisava encarar um colégio inteiro comentando sobre o meu corpo.
Era impressionante o quanto as pessoas podiam ser capazes de inventar boatos, aumentar histórias e transformar a sua fatalidade num show intencional, garantindo que eu queria aparecer e ser popular.
Falavam pelos corredores, que eu tinha, por minha conta e risco, tirado a roupa para chamar a atenção dos atletas.
A imaginação daquelas pessoas não conhecia limites.
Não que isso fosse um problema caso eu de fato tivesse escolhido agir dessa maneira. Afinal, cada um é dono de si e sabe o que fazer em prol do benefício próprio.
Mas não era o meu caso, simplesmente.
E no fim, por conta das fofocas, nem mesmo a maravilhosa aula de Economia Doméstica foi capaz de animar o meu dia – muito pelo contrário. As meninas não paravam de me encarar e comentar qualquer idiotice, enquanto os meninos davam risadas abafadas. O ambiente tinha se tornado um aglomerado de burburinhos irritantes e julgamentos injustos.
A nossa professora até percebeu que algo estava acontecendo, porém não fez nada além de exigir silêncio e concentração, e dar procedência na sua aula. Não que eu a culpe – a azarada ali era eu, por ser quem sempre fui, e a Sra. Parker não podia mudar isso.
Nem ninguém.
♡
Quando deixei a classe, andava cabisbaixa, tentando não ser vista – ou melhor: tentando não ver ninguém olhando em minha direção.
Minha cabeça se encontrava em uma verdadeira e consolidada bagunça, envolvendo fofocas, boatos, Robert Müller, provas importantes e a escolha da minha universidade. Sim, eu estava a ponto de explodir a qualquer instante.
Só queria sumir, fugir para bem longe, onde ninguém pudesse me encontrar. Só pensava em não estar ali, quando esbarrei numa parede logo a minha frente, que soltou um opa, cuidado aí, fazendo eu me arrepiar da cabeça aos pés.
— Sophie, é você!— Rob disse com um sorriso no rosto.
— Oh, oi! Desculpe – respondi um pouco sem graça. Ele estava fechando seu armário e ajeitando o material na mochila. E, felizmente, estava sozinho.
— O que está rolando? – ele perguntou com um tom de voz preocupado, mas ao mesmo tempo suspeito. Rob sabia o que estava rolando.
— Não se faça de desentendido – disse e tornei a caminhar, seguindo para o refeitório. Ele não hesitou em vir atrás de mim, pedindo para que eu ficasse calma.
— Essas pessoas são idiotas, Sophie. Você sabe disso tanto quanto eu. Logo elas arrumam outro para incomod...
— E enquanto isso o que eu devo fazer? Suportar?— interrompi Robert e retomei minha caminhada, ainda escoltada pelo atleta, que continuava falando algo sobre paciência, e honestamente eu não fiz questão de ouvir.
Era o mesmo discurso ridículo que saía pela boca da minha mãe durante toda a minha vida, e estava cansada de ser tão passiva, embora eu não fizesse ideia de como poderia agir para que alguma coisa mudasse.
Afinal, o problema não era, simplesmente, meus gostos, roupas e minha necessidade absurda de tirar boas notas. De todo jeito, Samantha Gray me odiaria, e permaneceria obstinada a transformar a minha vida no colégio em um verdadeiro inferno – e ela estava de fato conseguindo.
— Por favor, não fala mais nada – pedi a Rob, assim que chegamos à grande porta que dava acesso ao refeitório.
— Eu estou com você. Você sabe disso, não é? – foi o que ele disse, assumindo uma postura mansa e complacente, olhando pra mim como se fosse entrar na minha cabeça.
Respirei fundo, tentando afastar qualquer pensamento que envolvesse aquela confusão, e me virei, abrindo a porta em sequência. O refeitório estava cheio, e as pessoas davam risadas, até olharem em direção à entrada e me verem.
Nunca antes tantos pares de olhos estiveram tão interessados em mim, e foi como tomar socos consecutivos no estômago.
Não sei exatamente quando, mas não demorou até que eu notasse os papeis espalhados por todo o lugar, e na mão de cada aluno ali presente.
Foi como se a vida real entrasse no modo câmera lenta.
Abaixei e peguei uma das folhas mais próximas a mim e, quando vi, eram fotos minhas, dentro de uma montagem estranha, cheia de nudez e várias palavras ofensivas grafadas em WordArt.
Assim que tornei a olhar para aquelas pessoas no refeitório, a maioria desabou em risadas.
E, no instante em que ameacei a chorar, eu respirei fundo mais uma vez. Era a minha chance de demonstrar força ao invés de dar mais munição para aquelas piadinhas de mau gosto.
Dobrei o papel que estava na minha mão e coloquei em minha mochila. Fitei mais uma vez todos os alunos, que estranhamente haviam engolido suas risadas, e dei meia volta, decidida sobre o meu destino final.
Só eu podia me libertar, e era isso que pretendia fazer.
Passei por Rob, que ainda estava atrás de mim, assistindo a tudo o que tinha acontecido ali, mas não falei nada com ele.
Assim que cheguei à Diretoria, não hesitei em bater – como muitas vezes o fiz por medo do que Samantha pudesse aprontar comigo caso não me levassem a sério.
No entanto, dessa vez era diferente.
E a Gray tinha ido longe demais.
♡
Assim que cheguei em casa, corri para o chuveiro. A reviravolta daquele dia tinha me deixado exausta de verdade, embora eu também estivesse orgulhosa por enfim ter tomado coragem para lidar com aquela situação de frente.
O Diretor, Mr. Garden, prometeu que entraria em contato com os responsáveis pelas agressões morais, e que resolveríamos com as devidas punições.
O que já era um avanço e tanto.
Quando terminei o banho, coloquei uma roupa confortável e me dei ao luxo de me jogar no sofá para assistir a um bom filme – e lá eu permaneci por quase uma hora inteira, até ouvir a campainha e ser forçada a me levantar.
Arrastada, cheguei à porta e, ao olhar através do olho mágico, eu não podia ter ficado mais confusa diante da minha visão de Rob Müller, mordiscando o polegar e ajeitando o cabelo ansiosamente.
— O que faz aqui? – perguntei assim que ficamos frente a frente.
— Bom, você desapareceu e eu vim... saber se estava bem – o atleta respondeu calmamente, olhando atento para mim.
— Estou bem sim.
— Ah, ótimo – ele comentou baixinho, colocando a mão na nuca e balançando os pés freneticamente - Eu também quero me desculpar por ter agido como... como um dissimulado...
— Como é?
— É, hoje cedo, quando perguntei o que estava rolando. Foi babaquice da minha parte.
— Ah, sim. Eu concordo – respondi sem esboçar nenhuma expressão facial.
— Espero que possa me desculpar.
— ...
— Se não puder, eu vou entender.
Rosnei de mansinho e revirei os olhos.
— Tudo bem, tudo bem. Você é um babaca, não é novidade.
Ele abriu um sorriso curto, assentindo com a cabeça e em seguida agradeceu. Aquele ser humano calado e quieto demais mal parecia Robert Müller e era sempre assustador vê-lo com uma postura mais retraída.
— Você quer entrar? – mudei de assunto, tentando esquecer qualquer empecilho que pudesse acabar com o nosso... vínculo?
— Eu posso? – ele perguntou, parecendo bastante desacreditado.
— Hum, claro – disse e dei passagem para Rob, que passou por mim com cheiro de banho.
— Qual a programação de hoje? – suas mãos estavam em seus bolsos, e seu olhar de menino, em mim.
Caminhando em direção ao sofá, dei uma risadinha sem encará-lo, tentando não ser pega da cor de um tomate por ter levado meus pensamentos a um passado não muito distante envolvendo nós dois. Obviamente, ele me seguiu, sentando-se em seguida ao meu lado e logo afirmando que aquele filme que eu estava vendo era muito bom.
— Está na metade, você quer terminar de assistir ou vamos escolher outro? – perguntei, pegando o controle.
— Então já temos uma programação... – Rob tomou nota, fazendo sua melhor interpretação de garoto convencido e marrento. Aquele sim estava mais parecido com o Rob Müller ao qual eu me habituara.
Decidimos terminar Ghost in the Shell, porque meu visitante surpresa afirmou ser totalmente apaixonado por Scarlett Johansson. Contudo, como o itinerário seria cineminha em dupla, resolvi ir até a cozinha estourar pipocas e enchê-las de caramelo.
O capitão fez questão de ir comigo.
— Sabe... fazer pipoca de micro-ondas não exige nenhum tipo de ajuda – afirmei, enquanto esperávamos.
— Mas fatiar esses pedacinhos de caramelo, sim – ele respondeu, tomando o tablete da minha mão e procurando a tábua e faca mais próximas.
— Tudo bem, eu me rendo. Fique à vontade... na minha cozinha – respondi torcendo um bico, e ele deu uma risadinha, me olhando pelo canto dos olhos.
— Então agora você está engraçadinha – ele soltou, enquanto partia o caramelo em cubinhos – Me diga o motivo para tanto bom humor.
Dei de ombros, segurando o riso, e pensando seriamente se devia contar a Rob que eu havia entregado os seus preciosos amigos para o Diretor. Afinal de contas, essa informação poderia mudar completamente todo o progresso amistoso que havíamos feito.
E, sinceramente, naquele momento eu não queria que nada mudasse entre nós.
Porém, mentiras e omissão nunca foram a minha praia, então quando encostei as costas na bancada, fria como gelo, e encarei Rob, eu sabia que minhas próximas palavras decidiriam o rumo da nossa amizade – e eu arcaria com as consequências, quaisquer que fossem elas.
— Hoje eu fui ao Mr. Garden – contei e vi Rob largar lentamente o que estava fazendo, e parar por completo, resumindo-se em me olhar como se eu fosse um vulcão em erupção, que ninguém mais pode conter e muito menos se salvar.
— Isso é sério? – ele perguntou, mas não consegui captar a essência do seu humor, então eu definitivamente não sabia se ele estava orgulhoso de mim, ou possesso de raiva.
Balancei a cabeça em afirmativa.
— E você disse tudo?
— Bom, dei destaque para o que eu podia provar. No caso, a montagem que fizeram com fotos minhas – respondi, vacilando o olhar algumas vezes. E foi justamente nesse vacilar de olhares, que senti um calor se aproximar de mim, e quando voltei a fita-lo, Müller estava na minha frente.
Seus olhos brilhavam, num tom azul translúcido devido à luz do dia que entrava pela janela da cozinha logo atrás de nós. Eu podia sentir sua respiração bem próxima ao meu rosto e seu perfume por toda parte.
Ainda calculava a distância entre nossos corpos, quando senti uma de suas mãos tocar meu rosto, arrastando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
E então ele sorriu.
— Essa é a Sophie que eu conheço – ele sussurrou e se aproximou de mim mais um pouco. Meu coração se acelerava a cada centímetro a menos, e minhas pernas bambearam completamente.
Exatamente como naquela noite.
— Eu quero mesmo te beijar – ele falou, acariciando minha nuca e segurando em minha cintura. E então, já praticamente sem ar, fechei os olhos e me permiti aproveitar o momento mais uma vez.
— Beije.
E ele não disse mais nada, apenas grudou sua boca na minha.
Sua língua sabia onde estar, quais movimentos fazer, e era como se o Müller ensaiasse isso em casa todos os dias. Muita prática? Certamente que sim, mas eu não me importava.
Desde que ele continuasse me segurando como segurava, e beijando como beijava, era suficiente, afinal, a cada toque ele conseguia me arrancar risadas e borboletas por todo o meu corpo – e era mágico, contagiante, imprevisível.
E quando achei que não podia ficar melhor, suas mãos agarraram minhas coxas e ele me colocou em cima da bancada.
— Gostei do shortinho – falou ao pé do meu ouvido, e eu senti todo o meu pescoço arrepiar, e em seguida ser atacado por beijinhos que só fizeram eu me arrepiar ainda mais.
Suas mãos pressionavam a minha cintura com força e delicadeza ao mesmo tempo. Rob Müller estava entre as minhas pernas e aquela cozinha nunca ficara tão quente.
Seus lábios começaram a descer para o meu colo, e a sua mão mais esperta acariciava a alcinha da minha blusa de forma muito sugestiva. Eu sabia o que ele queria, e podia tê-lo feito parar, mas não o fiz.
Sua boca caminhou ainda mais para baixo e, quando demos por nós, ele estava beijando meus seios – lentamente, com a umidade certa, e acariciando cada detalhe de mim.
Lindo, quente e cheiroso – Rob sempre fora perigosamente atraente, e lá estava eu, mesmo tendo plena consciência disso, totalmente derretida e entregue.
— Você é maravilhosa – ele disse, erguendo sua cabeça e olhando em meus olhos, pregando um selinho na minha boca.
Não tive tempo para responder nada a altura, porque logo seus beijos continuaram descendo, e quando eu finalmente entendi o que ele pretendia fazer, ouvimos um estrondo e cacos de vidro voaram em nossa direção.
Por sorte ou milagre, com um reflexo quase heroico, Rob me agarrou e se transformou num escudo humano, enquanto íamos parar no chão do cômodo.
E quando tudo ficou silencioso de novo, a primeira coisa que me lembrei de fazer foi consertar a minha roupa no corpo. Depois, ofegantes, olhamos ao nosso redor e vimos três pedras do tamanho de punhos e a janela da minha cozinha completamente destruída.
— Você está bem? – ele perguntou, saindo de cima de mim, e verificando meus braços com cuidado. Respondi que sim e então ele se colocou de pé, indo olhar através da janela.
Fiz o mesmo, porque queria entender o que, afinal de contas, tinha acontecido ali.
E então, nós a vimos, dentro do seu carro esportivo, esperando que dois garotos embarcassem. Na claridade, seu cabelo era sempre como fogo, e impossível seria se não a víssemos.
Enquanto meu cérebro processava tamanha maldade, Samantha Gray ajeitou os óculos de sol, sequer olhou em direção à minha casa e girou a chave do carro, dando partida para bem longe dali.
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