Mr. Lecter

IV - Captionem


Sede do Departamento de Análise Comportamental (B.A.U.), Virginia

0h

— Will, eu não sei ao certo o que você procura aqui — diz Brian Zeller, após observar o resultado da análise — Aqui só tem carne bovina, feijão e, segundo está escrito, uma quantidade pequena de camarão. O que você procura exatamente em seu vômito? — questionou Zeller, sem entender a intenção de Will. O quê você está planejando, Graham?

Zeller não sabia, mas entendeu que procurava por algo. E que provavelmente, esse algo desapareceu. Sumiu, assim como sua expressão de curiosidade.

— Ele é esperto, Brian. Ele é esperto. — disse, a voz perdendo forma a cada palavra dita.

Após isso, Will apenas se despediu com um leve movimento de cabeça e deixou a sala. Sentia sua cabeça latejar e decidiu que precisava de ar puro.

Ele é esperto demais. Não se arriscaria tanto. Ele apenas jogou comigo, e eu caí perfeitamente. Lecter sabe o que faz. Ele sabe muito bem.

Will deixou o departamento e seguiu para uma pequena praça que circundava o B.A.U. Precisava clarear as ideias em sua mente. Assentou em um banco de madeira e observou o lago Hathaway. Neve caia brandamente. O brilho da lua refletia nas águas congeladas do lago e formava uma bela vista. Os galhos secos das árvores balançavam com o vento gélido, como se pedissem ajuda ou se despedissem de alguém. Estão se despedindo de você, Will. Você está acabado e imponente. E Hannibal, ah, ele sim é esperto.

Blossom Park, Baltimore

0h07

As luzes amareladas dos velhos postes iluminavam o gazebo de madeira clara do parque. Várias cadeiras se estendiam em volta do mesmo, recheadas de pessoas vestidas de forma fina. Ternos italianos e vestidos de grife. Todos a espera do Concerto Anual de Outono do Blossom Park.

Hannibal observa as pessoas ao seu redor. Bochechas rosadas pelo frio, como todos os anos, aguardavam uma das pianistas mais famosas da Alemanha, Selena Lavour. Seguindo por sua terceira turnê internacional, a pianista estava sendo anunciada nos jornais e revistas da região desde o início do inverno. E o concerto, que é tradição da cidade desde que se tornará independente do condado de Baltimore em 1851, iria receber pela primeira vez uma artista renomada. Todos esperavam que viesse mais um cantor barato ou uma banda de garagem de nome estranho. Mas Baltimore estava novamente em ascensão, e isso fez com que o esquecido concerto de outono ganhasse cara nova. E realmente ganhou, começando pela plateia com anéis de ouro e bolsos recheados de dinheiro.

Palmas irromperam no parque, anunciando a chegada da famosa pianista. Hannibal sorriu, sobressaltado pela beleza europeia da mulher. Cabelos castanhos escuros, levemente ondulados, caindo nos ombros. Pele clara, talvez até um tanto pálida demais, mas contrastava perfeitamente com o batom vermelho que usava. E um vestido longo, negro como um céu sem estrelas, despojando um decote tão amplo que as curvas de seus voluptuosos seios ficavam à mostra.

Os aplausos cessaram. Selena Lavour assentou e seus dedos pálidos começaram a tatear as teclas de marfim do piano negro. Hannibal reconheceu quase que instantaneamente a melodia. Hungarian Rhapsody no. 2. As notas acentuadas, vibrantes, inchavam e diminuíam graciosamente, de acordo com as tecladas delicadas da moça. Seus dedos se moviam tão rápidos que era difícil acompanhar com os olhos. Mas a música estava ali, serpenteando pela praça, fazendo carícias nos ouvidos da plateia. Era lindo, beirando o divino.

Hannibal não esboçava reação. Seus olhos estavam vidrados na pianista. Ele a desejava, mais do que qualquer outra coisa ali. Queria sentir o aroma de sua pele pálida. Queria sentir o sabor de sua carne, a maciez. Mas sabia que seria um desperdício. Nunca vira alguém tocar Franz Liszt de uma forma tão bela e suave, movimentando as mãos graciosamente pelas teclas. A perfeição em pessoa.

Ele a queria e ele a teria, nem que aqueles dedos pálidos nunca tocassem novamente.

Quarryville, Pensilvânia

0h34

— São U$18 dólares — disse a recepcionista da loja de conveniência. Alana havia parado em um posto de gasolina para completar o tanque e comprar alguns energéticos. Após sair do trabalho naquela noite, recebeu uma ligação de sua irmã a avisando que sua mãe havia sofrido de um ataque cardíaco enquanto subia as escadas de sua casa. Imediatamente fez suas malas e ligou para o seu chefe e o avisou da viagem inesperada que faria. Dez minutos depois já seguia pela saída norte de Baltimore, rumo à Lancaster, Pensilvânia. E parou somente porque seus olhos pesavam e sentia que a qualquer momento poderia dormir no volante.

— Mais alguma coisa? — perguntou a recepcionista, tão empolgada em trabalhar à aquela hora como uma pedra. Alana apenas negou com a cabeça e deixou uma nota de vinte dólares. Não esperou o troco e saiu da loja.

Abriu o energético e deu uma golada farta. Precisava permanecer acordada até encontrar algum local para dormir, e segundo o GPS, o próxima hotel ficava a dez quilômetros. Girou a chave do carro e seguiu pela Little Britain Road mal iluminada e com neve atrapalhando a visão.

— Fique acordada, Alana. — bebericou novamente o energético e agarrou o celular. Faltava apenas mais alguns quilômetros para chegar no Little Britain Motel, Uma espelunca no meio do nada, mas seria somente por uma noite e nada mais. Seguiria cedo para a pequena Lancaster amanhã cedo, cidade onde sua família mora há anos, mas que ela mesmo ia bem raramente.

Alana sempre fora chamada de desertora, pois enquanto sua irmã preferia se manter abaixo das grandes asas de sua mãe, Alana se mudou de cidade e seguiu sua vida sozinha. Anna sentia certa inveja da sua irmã, pela independência e atitude, algo que ela não teria tão cedo, apesar de ser mais moça que Alana.

Pegou a garrafa de energético mais uma vez, mas por descuido, derramou o líquido amarelado em sua jaqueta.

— Droga. — praguejou, procurando algum pano para limpar sua roupa.

O celular começou a tocar. Alana tateou o baco passageiro à procura, sem sucesso. Desviou o olhar da estrada para procurar o aparelho. Havia caído no tapete do carro, junto com a garrafa de energético sobressalente. Era Anna ligando.

— Alô? — atendeu, retornando o olhar para a pista. Dois faróis estavam logo a sua frente, como dois olhos grandes e brilhosos à espreita no escuro. Alana não conseguiu desviar do veículo à frente, e apenas estendeu os braços, se protegendo.

Um clarão veio, seguido de um forte impacto. Alana bateu a cabeça no volante e desmaiou. O carro girou na pista esbranquiçada pela neve, contido apenas quando bateu em uma árvore.

Lago Hathaway, Baltimore

0h42

Will permanecia ali, sentado e observando o céu. Seu casaco era espesso, mas não continha todo o frio, o que tornava o clima estranhamente confortável para ele. Vários pensamentos iam e vinham em sua cabeça, mas não ousava perdurar demais em qualquer um deles. Não quando o pensamento não se tratava de Hannibal Lecter. Ele sabia que apesar de todos seus esforços, Hannibal sempre parecia se esquivar de suas investidas, permanecendo à dois passos a frente dele.

E isso o frustava.

Deixou o banco de madeira e foi até a beirada do lago. As rajadas de vento percorriam lago de gelo e batiam contra o corpo de Will com violência. Começou a ranger os dentes e o frio havia se tornando desagradável.

Graham não acreditava em destino, e sim em oportunidades. E naquele momento, as suas oportunidades surgiram como aquele vento gélido - espontâneo e avassalador.

Embalado pela corrente de ar, um folheto amarelo percorreu o lago Hathaway e se prendeu ao poste de luz ao lado de Will. Oportunidades. Ele andou até o poste e o agarrou. Com ajuda da manga da blusa de frio, ele limpou o vapor de seus óculos e fitou o papel:

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CONCERTO ANUAL DE OUTONO

Venha comemorar conosco a chegada do Outono nessa SEXTA, às 0h no BLOSSOM PARK em nossa querida Baltimore.

Nesse ano contaremos com a ilustríssima presença da pianista europeia SELENA LAVOUR, que iniciará sua turnê internacional em nossa cidade.

Contamos com a presença de toda a população e venha prestigiar mais uma vez a troca de estação.

Prefeitura Municipal de Baltimore

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Will Graham sorriu, como não fazia há algum tempo. E naquele momento, mesmo que fosse por um misero segundo, ele acreditou que o destino talvez conspirava ao seu favor.

Retirou o telefone do bolso e discou o número de Jack.

— Will? — a voz dele soou rouca e baixa.

— Jack, temos uma chance, mas preciso que você faça exatamente o que eu disser daqui pra frente — ele suspirou fundo, se tornando audível no fone. Will não retrucou a descrença, apenas sorriu pra si. — Então...

Blossom Park, Baltimore

0h58

O concerto estava chegando ao fim. Os dedos habilidosos de Selena Lavour teclavam a mais conhecida de Tchaikovsky: Swan Lake. Um jovem negro subiu ao gazebo com uma harpia dourada reluzente, pousou a cabeça sobre o instrumento de forma dramática e começou a tatear, combinando harmoniosamente com o piano.

Hannibal fechou os olhos naquela hora, e deixou que a música penetrasse em seus tímpanos. Por alguns meros segundos, Hannibal se lembrou de Florença. Das ruas espaçosas de pedra, da iluminação soturna e do ruído de saltos das damas que passeavam. Se lembrou do concerto de um grande amigo, que tocava tão bem que fazia seus tímpanos entorpecerem. E toda vez que ia em um concerto dele, Hannibal apenas fechava os olhos e admirava a música.

Abriu novamente os olhos. A pianista o observava, enquanto tocava as últimas notas da música. Seus grandes olhos verdes perfeitamente delineados o fitava, com curiosidade. Palmas irromperam, anunciando o fim do concerto. Hannibal sorriu e se levantou, batendo palmas junto com o resto.

Ele sentiu aquela ligeira sensação. Seus dedos formigavam e a boca encheu de água. Hannibal queria aquela pianista mais do que qualquer coisa ali. A atração que sentia era quase incontrolável.

Selena Lavour agradeceu ao público com um aceno delicado, e se virou para o jovem da harpia. Conversava distraidamente, em francês, enquanto bebericava um copo de vinho tinto pego com o jovem. Hannibal a observa, como um lobo faminto observando o cordeiro. Aguardaria o momento certo para fazer uma investida certeira e garantir que a presa não escapasse de seus dentes. Seguia pelo caminho de pedra até as escadas do pequeno gazebo, quando um SUV preto se aproximou, estacionando a menos de quinze metros dali. Os faróis estavam desligados e os vidros, fechados. Hannibal franziu o cenho e hesitou por um momento. Trabalhara tempo suficiente no B.A.U. para saber quando alguém estava atrás de você.

Retornou pelo caminho de pedra e foi até a sua cadeira. Sem alarde, pegou seu paletó preto e seguiu para o estacionamento norte, do outro lado do parque. Era uma pena deixar a pianista ali. Já havia feito planos para aquela pele clara e macia, e odiava a ideia de ter que interrompê-los. Mas não desistiria de Selena tão fácil. A jovem permaneceria na cidade para mais uma apresentação no Hippodrome Theatre. Tenho mais uma chance…

Atravessava o jardim albino de margaridas que ainda iriam desabrochar quando ouviu as portas do SUV se abrirem. Algo lhe dizia que era Will Graham que estava ali, o observando e o seguindo. Hannibal sorriu, de escárnio. Era hilário ver Will tentar algo contra ele, mesmo estando completamente perdido. Estava dando um tiro no escuro e cruzava os dedos para que acertasse.

Lecter chegou no estacionamento norte, e sua moto era um dos poucos veículos que estavam estacionados ali. A apresentação da Selena Lavour era menos de dez metros do estacionamento sul do Blossom Park. Mas Hannibal simplesmente gostava de andar pelos jardins congelados e aspirar o ar gélido do parque e optou pelo estacionamento mais longiquo. Um carro vermelho, esportivo, estava estacionado logo ao lado de sua moto, e percebeu a luz interna ser desligada quando se aproximara. Curioso.

Deu de ombos e se dirigiu a moto, quando um homem, encapuzado com um tecido vermelho sangue, saiu do esportivo e o abordou.

— Hannibal Lecter. Que prazer ver você por aqui a essa hora. Eu ficaria surpreso se não estivesse te esperando — disse o encapuzado. Apesar da máscara claramente ser uma peça barata, o homem vestia um terno cor de vinho caro e sapatos de grife. Hannibal estava imóvel, permanecendo a menos de dois metros de sua moto e do homem. — Qual é, dr. Lecter? Não seja deselegante. Até parece que não se lembra de mim.

— Facilitaria se removesse a máscara e tivéssemos uma conversa justa. De homem para homem — respondeu, de forma ríspida. Não sabia quem era, mas reconhecia aquele terno em algum lugar. Tentava, falhadamente, pescar a informação em sua memória.

— Não. Você não é um cara justo, Hannibal. E convenhamos que nesse momento, ambos estamos usando mascaras aqui — o homem encapuzado sacou um revólver e girou a arma no dedo indicador, descontraído. — Gosta de se passar de bem apessoado e intelectual, mas bem no fundo você sabe quem realmente é. Aliás, nós dois sabemos quem você é — o homem sorriu, gargalhando alto — E sabe o que é engraçado? Antes eu fui a vítima, agora é você.

O homem apontou o revólver para Hannibal, que não se moveu. Seria arriscado tentar qualquer coisa naquele momento. Não disse absolutamente, só absorvia as palavras do encapuzado e tentava pensar em algo.

— Eu não vou te matar, dr. Lecter — falou, destravando o cão da arma e mirando no peito de Hannibal — Não agora. Primeiro, você vai sofrer como eu sofri.

Sem aviso, o homem encapuzado disparou duas vezes no peito de Hannibal, que simplesmente desabou no chão, fazendo pressão com as mãos sobre os ferimentos por onde as balas perfuraram a sua pele. Will e Jack, que vinham lentamente ao estacionamento norte, ouviram os disparos e correram naquela direção. O homem encapuzado adentrou no esportivo vermelho e se drigiu para fora do estacionamento.

Quando Will e Jack chegaram, se depararam com Hannibal caído em volta de uma poça de sangue, ao lado de sua moto. Jack Crawford temia que o mesmo estivesse morto, e Will se agachou para checar o pulso. Olhou para o parceiro e murmurou.

— Chame a ambulância, Jack.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.