507, montanhas do Sudoeste de Jarnyan

— E a garota? — questionou um senhor sentado, com um cajado recostado em uma rocha.

— Está a salvo, embora emocionalmente quebrada, mas, ainda assim, bem. — respondeu uma voz levemente triste — Mãe morta, irmã menor deformada... tudo por um infeliz acidente.

— Você sabia que ele estava vivo? — O velho indagou.

— Não, tinha noção que havia algo vagando por aí, contudo este mundo é grande e mesmo com minha percepção e meus guardiões, não pude determinar o inimigo, agora ficou claro o motivo...

O velho se pronunciou:

— Como ele era um de nós, sua percepção de ameaça exterior não o reconhece como uma. Nossos pais se pronunciaram?

— Sim, e honestamente… eu gostaria de matá-los. — respondeu Guardyhan frustrado olhando para a aurora nascente — Eles disseram que “Imortus, não é mais relevante, é apenas um respingo do que foi outrora”.

O ancião se pós de pé e maneou com a cabeça:

— Admito, concordo com você nisso, é desumano, mas não podemos esperar muito daqueles que ficam nas alturas rindo de nós, enquanto penamos junto dos mortais.

— Eu não me importo com o que eles pensam, afinal não é lei, vou me assegurar que ele fique morto. — respondeu o deus com pesar, agora fitando a montanha ao lado, rachada, quebrada, com um enorme ponto de impacto no centro — Ele já fez estrago demais.

— Aquela luta foi impressionante… — adicionou Alayhin, — Mas você era inexperiente…

— Ele me socou até aquela montanha, onde me espancou, como se eu não fosse nada. — respondeu Guardyhan, sério, se lembrando de cada golpe, cada dor e do sentimento de morte iminente.

Um silêncio amargo se fez entre os dois, agora ambos estavam em pé, lado a lado, o homem de armadura reluzente, e o outro com aparência mais decaída vestindo farrapos. Os dois fitavam o sol ascendente, iluminando as copas verdes da grande floresta, até o pico das montanhas.

— Sei que no fundo você se importa com ele, Alayhin, também sei que nossa amizade está abalada. Eu imploro, me ajude, não por mim, mas por Ocultgard — falou Guardyhan, se virando e lhe estendendo a mão

— Fomos feitos um a imagem do outro, eu o amava mais do que qualquer um, e ele sempre foi tão bondoso, mas o que quer que esteja por aí, não é meu irmão. — respondeu Alayhin, no início com saudosismo, e depois abaixando a cabeça em negação. Por fim se virou e encarou seu velho amigo dizendo em tom rígido e desaprovador:

— Você tem o meu apoio, dos nossos irmãos também, mas isso não quer dizer que estejamos bem com você.

— Eu só estou fazendo o meu trabalho da melhor forma que posso. — rebateu o deus de cabelos brancos, tentando não soar ofensivo.

— Eu entendo, mas não consigo concordar com o que você fez, e está pensando em fazer. — Alayhin, deu-lhe as costas e encarou o escuro e rochoso deserto de Jarnyan.

— Desde que eu passei a usá-los quantas guerras nós vimos irmão? — questionou Guardyhan, suplicante. Ultimamente estava se sentindo sozinho, sem rumo e desarticulado. Sentia saudade de conversar com seu irmão, de discutirem, de brincarem, de serem família.

— Nenhuma, mas não quer dizer que não haja sangue, você fez eles matarem pelo menos, três centenas de pessoas até agora.

— Para salvar muito mais, quantas vezes você fez as contas? Para a paz são necessários sacrifícios, vidas, família… amigos, sonhos e desejos. Eu tenho a liberdade para parar, mas isso não seria cruzar os braços, fechar meus olhos para que novamente, ascendesse um tirano como Typhon? A quantos inocentes esse cretino não tirou a vida? — Ele se virou para a floresta, a vida — Você me fez amar a vida, devo deixá-la morrer?

— Você tem a liberdade… mas e os seus Valkgards, têm alguma? Ainda não concordo com as suas palavras, mas, ainda assim, defenderei o seu direito de dizê-las. — Dizendo isso, desapareceu enquanto seu corpo se desfazia como areia ao vento. — Irmão, você ainda tem tempo, há mais caminhos.

— E todos eles terminam com este mundo morto. — respondeu Guardyhan, ainda que agora estivesse sozinho, sempre sozinho.

511. Alpes Jarnyanos, proximidades da base Guardiã

Relatório: Dois anos se passaram depois do incidente, embora tudo esteja estável, não posso dizer que esteja bem. Mamãe está morta, seu coração foi arrancado dela, junto com sua força vital.

Digo a mim mesma todos os dias que não tinha como saber da verdade, do monstro, mas isso não alivia a minha dor, ou a do meu pai e irmã.

A pena com o tinteiro se detém trêmula sobre o papel branco. A autora a abandona, preocupando-se em enxugar suas lágrimas, logo depois se levantando da escrivaninha e saindo para uma caminhada, a única coisa que a distraia.

Ao sair de sua nova residência, uma sentinela se ofereceu para ir com ela. E assim se iniciava mais uma tarde ensolarada da alquimista Hadyle Selat, nada de treinamentos com o mentor, nada de brincadeiras com a irmã, ou receber um grande abraço do pai, apenas em estudos visando uma cura.

— Como está sua tarde hoje, Hady? — questionou a Guardiã.

— Insolúvel. — Ela riu da própria desgraça.

— Nada novo?

— Alguns elementos novos chegaram da catalogação, meu pai e eu estamos tentando estudar os compostos e ver suas implicações, mas estamos longe de um prospecto animador. — respondeu ela, se sentando em uma rocha.

Seu olhar cansado percorreu a vastidão rochosa abaixo da montanha até o horizonte, e por um bom tempo, ela apenas fitou o ambiente. Um deserto de rocha marrom escura e que mais além ganhava outras cores, todas iluminadas pelo sol dourado. Era um lugar quieto com pouca vegetação e fauna, talvez pelo seu isolamento fosse tão atraente.

— Sabe Nadya, esse lugar me inspira.

— Ele me desanima para falar a verdade. — retrucou a guarda.

— Você não quer saber o que tem debaixo de toda essa rocha? Ou por que o deserto continua sendo um deserto?

— Mais rocha? E talvez por que ele seja... um deserto.

— Você consegue tirar toda a graça das minhas confabulações. — Se virou para a guardiã e sorriu.

— Sou uma guerreira, não uma alquimista, embora ache que você deva aprender um pouco de magia.

— Com todos os estudos que tenho que fazer? — Ela indagou em tom divertido, e afirmou levemente solene — Negativo.

As nuvens brancas iam e vinham em ritmo lento, Hadyle, agora observava o céu, mas não se deixe enganar, apesar de realmente amar o céu, sua mente se perdia em suas obscuras memórias, em seus cálculos e teorias, além do que estava em jogo. Vez ou outra se distraia especulando sobre seu futuro, se um dia poderia viver a antiga vida, mesmo no melhor dos cenários a resposta era não.

Por fim se levantou e retornou para sua casa, cumprimentou a sentinela na porta.

Seu pai como sempre rabiscava em um pedaço de papel. Esqueça o vigoroso senhor Fyndr, agora estava magro, pálido com cabelos desgrenhados e um pouco brancos. Possessivo por uma cura, murmurava cálculos para si mesmo, mas de uma forma tão estranha que parecia ter desaprendido a falar. Apesar da aparente insanidade, continuava brilhante, precisava continuar.

Mais adiante, ela encarou uma porta de metal, seu olhar pesou, mas, ainda assim, a abriu, para encontrar uma jovem encolhida em meio aos cobertores, somente sua boca era visível, pois ela já não tinha mais coragem de se mostrar.

— Você está bem Rosye?

A menina apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo.

— Quer comer algo? Os novos suprimentos vão chegar ainda hoje…

Ela apenas fez que não. A alquimista inclinou a cabeça para baixo, seus olhos começaram a marejar, pois o que ela mais precisava, era de amor e carinho, mas Hadyle, não poderia oferecer tal coisa, seria contaminada também. Enxugou as lágrimas e olhou para sua irmã.

Dou minha palavra Rosye, encontrarei a cura para você, e vou fazer aquele bastardo pagar pela morte da mamãe. Por fim se retirou, ficar naquele mesmo ambiente que ela, mesmo que por pouco tempo era arriscado.

Voltou para sua escrivaninha, não mais para fazer um relatório, mais para escrever algo seu, um diário. Talvez as informações mais pertinentes escritas nele, são que:

Devido aos sintomas similares. É possível determinar que Rosye, adquiriu a doença da Caveira, já que como os contaminados, sua pele aparenta sofrer deformação.

Portanto o paciente zero, o transmissor da doença é (Jamais pronuncie este nome, ou pode acabar o invocando), Imortus, aquele que foi derrotado e morto por Guardyhan. De alguma maneira voltou a vida… não vou especular o como e o porquê, isso não é da minha alçada, por enquanto.

Imortus, infecta pessoas com a doença, ricos, pobres qualquer um, não há impedimentos, pelo que recebi de informação da Ordem. Ele drena a energia vital de suas vítimas, talvez para se manter vivo? E suas almas também – segundo o meu senhor, após consultar uma colega, minha mãe não entrou no Ermo, não foi julgada e tão pouco ascendeu a Iryon, ou desceu a Hedryon – ou seja absorve a energia e a alma.

Agora num quesito pessoal, confio em Guardyhan, para fazer o que for preciso. Ele me salvou naquele dia, nos deu abrigo, até agora está fazendo o possível para encontrar a cura, e um detalhe interessante… meu pai era um alquimista dos guardiões.

Por isso ele tinha aquele livro consigo, ele rasurou o nome do maldito. Sinto que mesmo um ano tendo se passado, ele não me perdoou ainda, talvez nunca perdoe e talvez eu não mereça perdão.

— É verdade, você não merece mesmo.

— Hafnyr, o que eu te falei sobre privacidade? — Ela se virou irritada para o Elfo Negro.

— Calma, calma, eu só vim deixar os mantimentos e efetuar a troca de sentinelas. — disse ele se afastando — Algum avanço?

— Nenhum, é como se a doença levasse um golpe ou dois, mas depois se adapta tornando-se imune a cura.

— Então talvez você deva parar de buscar algo assim e investir em algo que a deixe no chão. Como seu pai, está fazendo.

— O que? Ele não iria… — contrariou ela, sendo bruscamente interrompida:

— Iria sim. — respondeu Fyndr. — A doença se provou resiliente a todas as ervas conhecidas, poções e medicamentos. Nenhuma cura virá dessas soluções, devo me ater ao projeto Aprimorar, ele é a única chance da Rosye e da humanidade também.

— O que é esse projeto? Como ele pode salvar minha irmã? — Ela indagou em desespero:

— Ele visa a criação de mais supersoldados, os Valkgards. — falou Fyndr — Através de uma fórmula desenvolvida por mim, se tudo der certo o corpo da sua irmã vai se tornar resiliente a doença com o tempo, ou mesmo imune e será restaurado a forma original.

— De mais? Então existem outros?

Hafnyr disse:

— Sim, e um deles servirá como base de estudo, para ser mais preciso, o Draghard…

O pai interrompeu o Elfo, levando o questionamento principal:

— Aceita trabalhar no projeto? Se conseguirmos, a humanidade finalmente vai poder lutar cara a cara com nossos demônios e os monstros que habitam a escuridão.

A garota fez que sim, e o verdadeiro pesadelo teve início.

Dois anos depois, ainda no reino de Jarnyan

A grande verdade, é que tudo foi uma grande falha. Meu pai faleceu um pouco antes de concluirmos o projeto, Rosye também não aguentou a notícia ou mesmo a vida que estava levando, se suicidou. Sou a última Selat, nossa casa foi comprada, nossa fortuna foi toda gasta, nossos sonhos se foram.

Em meio a toda essa desgraça, busquei concluir o sonho de meu pai, busquei ajudar a edificar um mundo melhor, livrar os doentes dessa praga, e conclui a fórmula dos Valkgards. No entanto, buscando o que era o melhor, acabei criando algo infinitamente pior, algo que foge da natureza.

Vidas se perderam nos experimentos, verdadeiras abominações foram criadas, nesse desterro criei a coragem para renegar a ordem, a Guardyhan e tudo o que havia me restado. Sabotei todo o meu trabalho, e retirei o único componente que não poderia ser replicado.

Tudo o que peço é que me tire da cidade, nós sabemos que Guardyhan, não vai parar até ter mais dos seus Valkgards, então imploro por sua ajuda, pois não tenho ninguém a quem recorrer.

— Entendo. — falou uma voz austera atrás de si. — Não se preocupe, vou designar meus Caminhantes para te levar a minha base mais próxima.

Ela se virou, se defrontando com um homem alto, moreno e com um manto, tal qual o de Guardyhan, a diferença é que este usava uma cor laranja escura. Trajava um mais surrado, sujo e rasgado, suas outras vestes denotavam essa mesma humildade, as botas marrons corroídas, camisa branca desbotada, e o cajado de madeira, feito à mão. Ele sorria, a cumprimentando:

— Dou minha palavra que sairá ilesa e vai poder escolher seu próprio caminho na vida. Quanto à fórmula, ela é perigosa, meu único interesse é que seja apagada deste mundo. Perdão por não ser mais cortês, mas seu tempo é curto. Vista um manto e arrume as malas.

Assim era Alayhin, o Deus dos Caminhos, o irmão mais velho de Guardyhan. Detentor da última das três Ordens. Desapareceu, tão logo quanto surgiu, afinal o tempo era crucial para a extração, caso demorassem muito a cidade ficaria abarrotada de Guardiões e desse tipo de conflito, os Caminhantes não teriam como vencer.

Mas qual é a diferença de um Guardião e um Caminhante? Foi a pergunta que Hadyle, fez a si, tinha conhecido os Guardiões muito bem, mas pouco sabia de Alayhin, ou mesmo dos Caminhantes. Só sabia que havia uma rixa, rivalidade entre as Ordens, poderia usar isso e nem por um segundo confiaria em Alayhin.