Mistérios de Frost Ville - II

A lata velha embostada e o acordo.


Mika Marsh deixou o carro morrer mais uma vez, e algum otário apressado buzinou e atravessou o carro morto e desgastado pela esquerda. Kalel Everdeen pôs o braço para fora e mostrou o dedo do meio e Roy Lawrence pôs o rosto gorducho e espinhoso apoiado na janela, soltando um grito horrendo, que fez o motorista maluco soltar um couro de buzinadas até seu carro sumir na Avenida Danton. Mike Butcher se reencostou no banco, soltando um bufo enquanto Mika dava um tapa no volante, chamando o carro de lata velha embostada. Mais dois carros passaram por eles enquanto Mika tentava fazer a sua lata velha embostada viver, e Roy gritou para todos eles, até Mike mandar ele calar a boca e Kalel o puxar para dentro do carro pela gola da camisa.

Mika largou a chave, que ficou com seu chaveiro de caveira balançando e batendo na base do volante. Xeretando no porta luvas, pegou um cigarro solto, o pôs na boca e virou para olhar para o banco de trás, acendendo o cigarro e dando uma tragada longa. Mika apontou para Kalel e Roy e soltou a fumaça lentamente, dizendo que

— Não vai ter jeito. Vocês vão ter que empurrar.

Roy soltou um resmungo longo e Kalel, já convencido, saiu do carro e bateu a porta da lata velha embosteada bem forte. Mike saiu do carro também, tão tranquilo quanto a senhora que aguava as plantas de seu jardim do outro lado da rua. Ele começou a se afastar de perto dos amigos enquanto ajeitava o cabelo para trás e Roy Lawrence deu um chutão na roda do carro.

— Aonde é que você pensa que vai, Butcher? Ajuda aqui, seu desgraçado!

Mike ergueu a mão e mostrou o dedo do meio, sem olhar para trás, e sem nem mesmo parar de andar.

— Eu vou comprar a recompensa de vocês. Me esperem estacionado em frente a lojinha do posto de gasolina, princesas.

Conforme se afastava, os gritos de indignação de Roy, o motor da lata velha embostada morrendo e os xingamento de Mika Marsh sumiam no ar, como se os carros que passassem perto de Mike os levassem para longe com os seus 60km/h atravessando a pista. Mike pegou o cigarro roubado de Mika que guardava atrás da orelha e o acendeu com o último fósforo do bolso, dando algumas tragadas pausadas até chegar perto do posto. No finalzinho da bituca, Mike ergueu o sapato e apagou a ponta acesa na sola do pé, jogando o miserável pedacinho de filtro no chão e o chutando para debaixo da areia. Ajeitando novamente o cabelo e limpando o canto da boca, Mike entrou na lojinha de conveniência, aonde o sininho pendurado na porta fez questão de anunciar a sua chegada. Mesmo assim, o caixa não se deu o valor de olhar para a porta, continuando com os olhos na revista pornográfica escondida embaixo do balcão. A luz branca piscava no teto e a lojinha tinha cheiro de peido e de cachorro quente faça-você-mesmo do balcão de café.

Um homem gordo que vestia uma regada escrita ”Isso é gostosura, não gordura” fuçava a grade de revistas enquanto lambuzava seus dedos de salgadinho de queijo parmesão. Uma criança puxava o vestido da mãe dizendo que queria o novo chiclete kabum e que se não tivesse as outras crianças iam tirar sarro dele. Mike observou a cena e viu a mulher dar um tapa na mão do filho, afastando-se para o setor de enlatados e deixando a criança ali cabisbaixa. Mike aproximou do balcão e pegou um pacotinho de chiclete Kabum de cima do balcão. Satisfeito pelo desatentamente do caixa, Mike agachou ao lado do garotinho e de forma esguia ofereceu o chiclete para o menino.

— Você pode roubar se quiser. É só pegar escondido. Nem sua mãe e nem o homem do caixa vão saber, e você ainda não vai precisar gastar dinheiro. Toma. Pega isso e esconde, e não pense em mencionar que um garoto grande te deu isso. Agora vai, esconde logo.

O garoto enfiou no bolso e Mike se afastou para perto das geladeiras. Com algumas latas na mão, a mulher, mãe do menino, voltou e o pegou pelo braço, pagou as coisas no caixa e saiu com sua comida enlatada e seu chiclete kabum roubado. Mike riu consigo mesmo e abriu a geladeira de cervejas, pegando um engradado e levando até o balcão. O caixa olhou para Mike com desgosto e estendeu a mão.

— O que você vai ter aí, garoto? Carteirinha falsa ou um suborno gordo?

Mike tirou do bolso o resto do trocado que tinha e seu canivete com a faca saltada para fora. O caixa olhou para o dinheiro, para o canivete e depois para Mike.

— Não esquece do que você está me devendo, Gary Bosta. Você não devia estar nem me cobrando por isso.

Gary Bosta engoliu em seco e pegou lentamente o dinheiro de cima do balcão. Ele pegou o engradado de cerveja, pôs em uma sacola de papel e entregou para Mike.

— Desculpa o incomodo, Mike.

Mike sorriu.

— Suas bolas agradecem. E eu também. Inclusive – lembrou ele, pegando um outro pacotinho de chiclete kabum de cima do balcão e colocando no bolso – O garoto que estava aqui com a mãe roubou um pacote de chiclete bem debaixo da sua fuça. Bom. Um não, certo? Dois, ouviu bem? É bom relatar isso, Gary Bosta, você não quer perder o emprego, quer?

Mike pegou a sacola de cerveja e saiu da lojinha. Assim que atravessou a porta, ouviu o sininho se despedindo e Mika buzinando. Quando entrou no carro, pegou uma das latinhas de cerveja e jogou o engradado para o banco de trás, no colo de Kalel.

— Você é o nosso herói, Mike – Roy cantarolou, abrindo uma latinha.

Mika aumentou o volume do rádio e deu partido na lata velha embostada, seguindo caminho para o colégio de Frost Ville. Assim que terminou sua latinha, Mike a amassou e jogou no chão do carro. Encheu a boca de chiclete e mastigou até perder o gosto. Quando Mika estacionou do outro lado da rua do colégio, os quatro desceram do carro e se apoiaram a em cima dele, dividindo um fumo de tabaco.

Mike ficou olhando todos aqueles otários no gramado do prédio. Viu Bob Hunter e seu time correndo que nem um bando de gnus atrás de uma bola. Viu Jude Wapasha e seus cachorrinhos rebolando e fofocando sobre qualquer coisa de menininha, e viu o grupo de otários reunidos embaixo da árvore da janela do professor morto de história. Mike ficou olhando para Merida por um tempo até Kalel lhe dar um peteleco na orelha e oferecer o cigarro para ele. Mike pegou, tragou e depois desafiou Roy a dar uma olhada debaixo da saia de Wanda Bryan, apostando que desta vez ela estaria sem calcinha e que finalmente Roy iria conseguir ver aquilo lá.

Roy foi, balançando suas banhas por baixo da camiseta vermelha, e ergueu a saia de Wanda com suas mãos de salsichas. Wanda Bryan deu um grito e um tapa em Roy, arrancando risos do grupo de Mike Babaca Butcher. Wanda correu para dentro do colégio e Mika jogou o resto da bituca de tabaco no chão. Mike viu o grupo de otários que estavam debaixo da árvore também entrarem no colégio e deu um tapinha no ombro de Kalel, começando a andar. O grupo foi atrás, e quando entraram no prédio, mal tinha lugar para se movimentar. Os alunos ocuparam cada centímetro do corredor, mas quando viam Mike e seu grupo de babacas, se afastavam e abriam espaço (pois ou era isso, ou ter a cabeça enterrada na privada). Kalel Everdeen avisou para Roy que iria no banheiro e saiu em disparada. Roy virou para Mike e disse que Kalel iria soltar um barrão e eles riram.

No meio de toda a gargalhada, Mike olhou para Merida, a garota ruiva das suas aulas de gramática. Ele deu um tapinha no braço de Mika e sussurrou um orgulhoso “olha isso, Mika. Fica vendo”. Então, encheu um dos lados da boca de ar e com a mão fez um movimento de vai e vem, simulando um boquete. Piscando, Mike mandou um beijinho para a garota, em seguida passando as mãos por entre a calça. Seus amigos começaram a rir, mas inesperadamente, Mike passou vergonha quando Jack Frost, o garoto metido a besta com o nome da cidade, lhe mostrou o dedo do meio, fazendo Mike perder o sorriso e apertar o passo. O sinal tocou e Mika foi para o lado de Mike, lhe estendendo um pacote de bala de ursinho.

— Meu tio disse que tem maconha nelas, aí eu roubei. A gente pode experimentar no alto da escada quando todos tiverem entrado na sala. O que me diz, heim, Mike?

Mike puxou o saquinho das mãos de Mika sem nem mesmo olhar para o amigo, mas o gesto foi o suficiente para fazer Mika sorrir e ficar animado de novo. Os corredores começaram a esvaziar cada vez mais até apenas sobrar os ecos das salas cheias. Roy, Mika, Mike e Kalel, assim que chegou, se juntaram na escada e se apoiaram no corrimão. Mike abriu o saquinho de bala de ursinho e distribui para cada um de seus amigos e todos ingeriram as balinhas de uma vez. Quando no saquinho faltava cinco ou seis balinhas, Merida estava descendo as escadas (e parecia devidamente apressada). Puxando o cabelo para trás e entregando o saquinho de balas para Kalel, Mike se aproximou da garota.

— E aí, gracinha? – cantarolou – Quanto que eu tenho que pagar por uma lambidinha? Dez centavos?

Merida olhava para ele, e Mike conhecia aquele olhar. Era o mesmo olhar que seu pai fazia. Era olhar de repugnância. Mike tinha certeza. E isso prendeu ele. Mal ouviu a menina mandá-lo a merda. Acordou apenas depois de sentir seu nariz gelado de cuspe e sua costela doer de uma cotovelada horrenda. Havia sido o suficiente para os olhos de Mike pegarem fogo de tanto ódio.

— Sua otária filha da puta! – gritou ele, limpando o rosto e depois chutando a base do corrimão – Esquece essa merda de aula. Vamos dar o fora dessa bosta de lugar.

Mika guardou as balinhas. Kalel desceu do corrimão.

— Mas pra onde você quer ir, Mike? – Kalel perguntou. Mike olhou para ele e Kalel conhecia aquele olhar. O amigo estava muito mais do que puto. Estava insano.

Mike não disse nada, apenas começou a descer as escadas desajeitado pela dor na costela. No terceiro degrau ouviu uma advertência pedindo para que parasse, e então Mike olhou para trás e encontrou Odette Adam, sua professora de artes.

— Eu quero conversar com vocês – disse a senhora – E pelo bem que conheço o senhor, senhor Butcher, envolve duas coisas que você e seus amigos gostam: violência e dinheiro.

Mike voltou dos passos e olhou para Odette. Seus amigos, tanto quanto ele, pareciam um bando de macacos fora do galho.

— Eu vi o que a senhorita Dunbroch fez e creio que o senhor vai querer cuidar disso, não vai, senhor Butcher?

— E quem disse que isso é problema seu, madame?

Odette sorriu.

— É mais problema meu do que seu, Mike. Essas crianças têm algo que me pertence e me vale muito. Se você e seus amigos me ajudarem, eu os pago um dinheiro bem gordo e ainda deixo vocês fazerem o que quiserem com esses imprestáveis. O que você acha, querido?

Mike ergueu os olhos e olhou para a professora. Depois olhou para os amigos. Sua vontade de se vingar daquela ruiva vagabunda batucava na cabeça, e a vantagem de ganhar dinheiro e ainda poder fazer o que quiser alimentava o seu ódio por todo aquele menosprezo dela.

Mike Butcher então sorriu e fez um gesto para seus amigos.

— Vamos até sua sala, professora, e então nos conte mais, e melhor, sobre isso. Acho que teremos um acordo.