Outra manhã tediosa se erguia sobre sua amada Namimori.

"Kamikorosu!" rugiu pela segunda vez naquela semana.

Muito tediosa..

A aparente paz gerada por sua disciplina suprema até vinha se mantendo bem e estável desde o começo do que Hibari identificara como "Primavera Herbívora", na qual os fracos arrumaram uma parceira que aceitasse suas incapacidades. Por uma questão de desconforto ele vinha tolerando as manifestações afetivas (contanto que se limitassem aos horários de intervalo e saída), mas, em raros, muito raros momentos…

...na verdade, em um único caso…

"S-seu..." o herbívoro prateado se contorcia indignadamente no chão de seu amado pátio. Patético. "Maldito..."

"Se está frustrado por ser o único incapaz de arrumar uma companheira..." e se aproximava. Tonfas à postos. "Eu acabo com sua agonia hoje mesmo."

"OI! D-d-do que você está falando, Maníaco das Tonfas?!" pelo desespero do olhar... o imbecil havia, claramente, mal interpretado suas valiosas palavras.

Só naquele específico caso... Hibari gostaria de acreditar que havia limites para a fraqueza herbívora. Apesar de ter sido o come-planta a incitá-lo à luta, a perseguição fora tão breve que mal dera tempo de seu sangue terminar de percorrer todo o corpo. Achou que talvez, daquela vez ele pudesse fazer o coração acelerar um pouco, inserir outra emoção de caçada e refrescar os músculos, já exaustos de tanto descanso, mas não correra o suficiente sequer para aproveitar o vento chocando-se contra a pele.

No fim aquela movimentação só servira para deixá-lo irritado.

Tsc. Que desperdício de tempo.

"Morra!" e ergue a tonfa para dar o golpe de misericórdia.

"Ciaossu~!" de repente, de pé, no topo de seu braço, surge o bebê. "Você já pode ir Gokudera... Eu tenho coisas a resolver com Hibari."

E em um segundo o herbívoro desaparece. Se tivesse corrido daquela forma quando iniciou o confronto, o Skylark não estaria agora tão irritado.

O rapaz respira fundo. Não gostava de ser interrompido, mas talvez o bebê quisesse brigar…

Aquilo sim, valeria seu tempo.

Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa…

"Você tem visita." e a pequena boquinha se estica em um sorriso digno de suspeita.

Como Presidente do Comitê de Disciplina, Kyoya não gostava de deixar seu território sem supervisão. Não gostava mesmo. Kusakabe sempre se voluntariava para este tipo de tarefa quando ele precisava se ausentar, mas, sinceramente, havia muito mais de come-planta do que de come-carne em seu suposto "Braço Direito".

Hmph. Como se Hibari precisasse de um braço direito. Ele tinha seus caninos... e isso lhe bastava.

"É só porque foi o Bebê quem pediu." e depois se vira para Reborn. "Você entende que o conceito de 'visita' é alguém se deslocar para me ver e não o contrário, não é mesmo?"

"Huhuhu, você não ia gostar de recebê-lo em sua escola."

A criança sabia de alguma coisa. Não tinha certeza do que era, mas em seu atual estado de tédio... valia a pena conferir.

"Não se preocupe, manteremos tudo em ordem durante sua saída, Hibari-san!"

Tsc. Até parece.

Colocou o capacete e ligou a moto. Grudado em suas costas feito uma mochila, o lagarto acomodava o bebê incomodamente perto. Mas relevou.

Estava com a sensação... de que algo interessante finalmente ia acontecer.

Na hora não sabia e não havia como prever... Mas Hibari Kyoya nunca estivera tão errado em toda a sua vida.

Pilotou seguindo as instruções do bebê por pelo menos uma hora. Não se importou. Dentre todas as coisas no mundo, andar de moto era o que mais se assemelhava ao que buscava em uma caçada. Correr a uma velocidade alta o bastante para gelar os pulmões, virar sentindo cada curva revirar seu interior e fazer o sangue circular... era como pegar um cobertor amarrotado e empoeirado e sacudi-lo à janela até que estivesse renovado. Poucos eram os que conseguiam fazê-lo reagir ao ponto de desamassar. A maioria dos herbívoros não era capaz de fazer mais que levantar um pouco de pó e irritar suas narinas, deixando-o mais frustrado do que quando estava quieto.

Se houvesse alguém capaz de renová-lo tanto quanto precisava... Kyoya não precisaria mais de tantos cochilos para se manter calmo.

Quando já correra o suficiente para sentir um pequeno e exigente sorriso se formando... o chão a seu lado explode e lança a ele a a moto para fora da estrada. O rapaz rolou algumas vezes e parou de pé, verificando suas costas em busca do bebê, mas Reborn já não estava lá.

Sem aviso... sem cerimônia, o rapaz sentiu o corpo se arrepiar e seus sentidos ficando em alerta. Aquele maldito riso preencheu o ar…

Kufufufufufufufu…

Diante de si, o infeliz que ousara derrotá-lo uma vez começou a se materializar. Primeiro só a silhueta, escura, sombria e enevoada... depois Mukuro Rokudo tomou forma física e lhe apontou o tridente, chamando-o para o acerto de contas. Só os céus sabem quantas e quantas vezes insistira com o bebê para providenciar aquele acerto... Finalmente chegava hora de restaurar seu orgulho

O sorriso que se formou no rosto de Hibari... não podia ter ficado maior.

ooo

Dentre todas as criaturas vivas, nenhuma, e eu digo... nenhuma mesmo, era tão assustadora quanto a Fera de longas presas metálicas. Orgulho e Disciplina. E ela reinava suprema sobre os demais seres. Soberana…

Invicta.

Bom... isso até o dia em que cruzou caminho com a Sombra.

A-haa... os dias da Fera nunca mais foram os mesmos depois de tão grande humilhação.

ooo

Não longe do confronto, quieta em um canto da abandonada Kokuyo, a pequena Guardiã se remexe em seu sono turbulento. Acordou de sobressalto. Deitada na única mobília do local, o velho sofá, Chrome correu ao buraco mais próximo... e se pôs a vomitar.

Havia algo errado. Sonhara com Mukuro-sama à pouco e sentia que ele estava próximo, provavelmente no controle do corpo de algum dos ilusionistas. Mas estava estranho. Ele não falara com ela uma única vez e apesar de estar tão perto, Chrome nunca o sentira tão distante.

O desespero em seu peito se transformou em aflição para suas entranhas: o estômago murchava.

Os órgãos vacilavam.

Voltou a vomitar e começava a perder a consciência... ela precisava se concentrar, precisava refazer os órgãos.

Força... Chrome cerrou os olhos e fechou o punho, sentindo o anel Vongola se aquecer em seu dedo.

Concentre-se... O suor escorria frio pelo corpo que tremia sem controle. A visita começava a escurecer e os sons pareciam tão abafados... distantes.

Não... Não! Ela não podia morrer sem entender o que estava acontecendo com Mukuro...!

Concentre-se!

O abdome voltou a ser preenchido e a ânsia de vômito cessara. No segundo seguinte... estava inconsciente.

ooo

Se tivesse oportunidade, Fran com certeza o atormentaria por uma vida pelo estrago ao qual submetera o pobre corpo do garoto... Mas aquilo não era problema de Mukuro.

Caído sobre o próprio sangue, Hibari grunhia em furiosa frustração. Era quase come se o ouvisse rugir por sua honra…

...que seria, novamente, quebrada.

"Você me decepciona, Kyoya..." as ilusões não durariam muito mais. O corpo de Fran cairía inerte a qualquer instante e a possessão seria interrompida.

Tinha energia o suficiente pelo menos para terminar o que viera fazer ali. Devagar, cerimonialmente, Mukuro pega a tonfa caída mais próxima de si. O adversário não era digno de ser finalizado pelo seu tridente…

No entanto, tão logo empunhou a arma a forma patética e injuriada do garoto o segurou pela perna. Olhos ardendo em um ódio ainda não testemunhado o encaravam

"Hmmm...? Você quer isso de volta?" pretendia quebra-lhe o crânio... pretendia derrotá-lo definitivamente e então seguir com sua busca com parte de seu próprio espírito em paz... mas havia algo de interessante em quebrar o espírito de outra pessoa... Algo misterioso e mesmo assim muito familiar surgia ao se observar a vida de alguém se esvaindo antes mesmo do corpo desfalecer. E isso era algo... que Mukuro ansiava muito por ver.

Ele precisava saber como seria o fim... com ele…

...e com Chrome.

Diante dos olhos do orgulhoso dono, Mukuro parte a preciosa tonfa em dois, sentindo satisfeito cada peça metálica que a formava se despedaçando e caindo de suas mãos até o chão, na frente de Hibari. Era hora de vê-la padecer.

Foi quando obteve o contrário do que buscava.

Com um puxão violento, o garoto o trouxe ao chão e acertou o cotovelo na boca do estômago de seu avatar desligando o corpo instantâneamente, quebrando pelo menos três costelas de brinde.

Aquilo que impedia Hibari de matar Mukuro parecia também ser o que impedia Mukuro de matar Hibari... A sombra não podia ser cortada, mas, sem um corpo, também não podia cortar.

O estranho Guardião da Névoa se desvencilhou de Fran com desgosto. Tinha um objetivo a cumprir com aquela luta e falhara. Aquilo só provara que o que mais temia, o que mais abominava estando tão próximo do vazio... podia mesmo se concretizar.

A ilusão se desfazia e retomava a forma sombria, enevoada, até se desfazer por completo. Deixando para trás os dois corpos caídos no chão. Duas últimas palavras ele deixou para seu pior inimigo e não dera a mínima se estava sendo ouvido.

"Você passou."

E desapareceu completamente por muitos meses…

Aquele foi o primeiro sumiço.

Um tempo mais tarde, em uma das missões do grupo, enquanto os Guardiões eram um a um sequestrados para serem levados à Amazônia, o sinistro homem surgiu mais uma vez e apenas para tirar quem lhe pertencia de lá. Na época Reborn não protestou, porque sabia de metade do que se passava. Mas se soubesse da verdade completa, não o teria deixado ir tão facilmente.

Depois do ocorrido, durante um ano inteiro, não ouviram mais nada sobre o Guardião da Névoa Vongola. Sua ausência começava a preocupar o chefinho que, mesmo tão aliviado por não tê-lo assustando-o por aí... não deixava de se preocupar com ele.

Não sabiam, e demorariam ainda muito para descobrir... mas a próxima vez que Mukuro aparecesse... seria a última.

Começava ali, os dias mais terríveis de Chrome Dokuro.

Chora a Flor a murchar…

"Onde está minha sombra? Para onde ela foi?!"

Pétala a pétala desfalecia, sem abrigo, sozinha. Queimada pelo sol, pela angústia e pela dúvida.