Minguante

I Pile Dirt Onto Your Corpse


— Estamos quebrando a tradição, — Soo pede perdão, embora não haja nada que ela possa fazer sobre isso, — Me desculpa.

— Tradições são criadas para serem quebradas, — o 13º Príncipe dá de ombros em resposta, erguendo um pequeno copo de chá, — É assim que elas nascem em primeiro lugar.

Ela olha para o seu copo, se sentindo um pouco abatida por não poder recriar o momento que eles criaram laços apropriadamente. E também um pouco triste, já que ela realmente está com saudades de beber álcool.

— É isso o que estamos fazendo agora? Criando uma nova tradição? — Sua mente sóbria não consegue deixar de ser sarcástica, mas o 13º Príncipe não parece se importar.

— Pode ser, — ele responde sinceramente, bebendo o chá em um gole só e então servindo mais nos seus copos, — Nós podemos fazer o que quisermos, então vamos aproveitar.

O sorriso dele a faz sorrir também. “Faça o que quiser fazer” foi o primeiro conselho que ela lhe deu, e embora não tenha sido muito sábio de sua parte, traz memórias cálidas para ela. A faz lembrar da Hae Soo inocente, e de como ela tinha ficado feliz por finalmente fazer um novo amigo em Goryeo. A faz lembrar do Wang Baek Ah vibrante, e de como ele se inspirou para lutar pela liberdade por causa de suas palavras. E essas memórias são mais que o bastante para fazê-la esquecer da decepção pela falta do elemento mais vital, que era ficar bêbada.

— Então estamos de acordo. Temos uma nova tradição. — O sorriso de Soo cresce ainda mais quando ela ergue seu copo, tocando de leve no de Baek Ah. Mas depois de tentar beber tudo de uma vez, ela reclama de novo, — Mas eu ainda acho que seria melhor beber álcool agora.

— Está sentindo dor? — Ele parece não entender as palavras dela, tomando sua expressão abatida e seus ombros caídos como um sinal de outra crise caindo sobre ela. Os olhos dele estão tingidos de preocupação, então ela rapidamente agita uma mão para tranquilizá-lo.

— Claro que não, eu só estou me sentindo muito parada, — ela suspira, lembrando de novo da velha Hae Soo e de como ela estava sempre estava ativa, correndo por aí como uma criança, frenética em todos os lugares, ansiosa para aprender mais, saber mais, ajudar mais. Ela gosta de ficar parada, mas quando ela olha para as árvores pacatas em volta deles, ela não consegue evitar se sentir nostálgica, — Eu queria ser barulhenta e animada mais uma vez.

Ela queria rir em voz alta, calorosa e destemida mais uma vez. Ela queria vestir suas antigas roupas coloridas e soltar os cabelos sobre os ombros. Ela queria amar livremente, mostrar todo o seu afeto como antes.

— Eu posso trazer uma garrafa escondida pra você, — ele sussurra, embora não tenha ninguém por perto, erguendo uma sobrancelha em tom de travessura.

Soo reflete na proposta dele por alguns segundos, pesando os prós e os contras desse contrabando, mas então suspirando derrotada. Não importa o quanto ela deseje um gole de álcool, ela está plenamente ciente de sua condição.

— Pyeha não vai ficar feliz com nenhum de nós se fizer isso, apesar de ser leniente aos meus caprichos, — ela recusa o plano dele, desanimada, já imaginando o olhar reprovador de So. E além do mais, se ela não tomar o chá medicinal, vai ter problemas mais tarde. E nenhum deles é a desaprovação de So.

— Eu acho que, depois de tudo o que você passou, todos nós tendemos a deixar você fazer o que quiser, — Baek Ah argumenta, aparentemente ainda ansioso em beber algumas garrafas de álcool também, mesmo tendo acabado de dizer que não se importava em beber apenas chá.

— Mas não foi só eu quem sofreu, — ela novamente pensa nos que se foram. Já virou um hábito para ela, sua mente sempre se volta para eles sempre que se sente muito triste ou muito abatida.

— Mas a verdade é que ninguém deveria sofrer, — Baek Ah argumenta e ela não tem como retrucar. Mesmo que ela saiba que o sofrimento encontra todo mundo, não só aqueles que vivem em Goryeo.

A própria vida carrega sofrimentos. Grandes e pequenos, longos e curtos. E quando a vida acaba, os sofrimentos acabam também.

Ninguém deveria sofrer, mas a verdade é que todo mundo quer viver.

Todo mundo quer um pouquinho de felicidade para si enquanto sofre.

— Então, pode me tolerar mais uma vez?

O 13º Príncipe repousa seu copo na mesa e se prepara para levantar, seus olhos já cintilando em empolgação.

— Quantas garrafas você quer?

— Não é isso, — ela ri da reação dele, de seu rosto mortificado quando ela destrói o sonho dele, mas então fica séria, fazendo com que ele preste atenção nas palavras dela, — Eu sei que você não quer mais ficar no palácio. Eu sei que te machuca, e eu sei que você só está aqui por minha causa. Mas depois que eu me for, eu quero que você não vá pra muito longe, nem por muito tempo.

Soo já vinha cogitando pedir isso a ele já fazia um tempo. Quando ela achava que ela e So ficariam separados para sempre da filha, ele era uma parte vital de seu plano criar uma ponte entre Jung e So quando ela se fosse. Agora, era um desejo verdadeiro e profundo em seu coração de que pelo menos uma parte dessa família continuasse junta.

— Eu faria isso sem você me pedir. Sério, — ele responde e a tranquiliza quando nota sua expressão de culpa, — Na verdade, Jung-ah e So-hyungnim são meio inaptos quando se trata de bebês. Especialmente meninas. Eu fico de olho neles.

Os dois sabem que não é só por causa de Seol. E ao mesmo tempo é principalmente por causa de Seol. Baek Ah não podia ficar muito longe de Seol, pelo menos não por muito tempo. E ela sabe que So e Jung vão se aproveitar muito disso.

Ela também sabe que, mesmo que ela não estivesse prestes a morrer de uma doença incurável, ele ficaria voltando para o palácio o tempo todo.

— Obrigada, Wang Baek Ah-nim. Por ser um amigo. Por me ajudar em tudo, mesmo nos meus planos loucos. Me desculpe por minha gratidão ser tudo o que tenho para lhe dar em troca.

— Você poderia me dar absolutamente nada, e eu ainda teria feito tudo de novo, — Baek Ah sorri e ergue o copo para outro brinde, — Nós tivemos sorte de nos encontrarmos no começo da jornada. Obrigado por ser minha amiga também, Hae Soo.

— Essa foi a última? — Hae Soo pergunta quando Jang Mi guarda os novos pergaminhos numa pequena caixa de madeira, lavando os pincéis e colocando-os para secar.

— Sim, minha senhora, — a dama da corte sênior confirma enquanto serve um copo de chá para Soo, uma tarefa que ela se dispôs a fazer depois que o Rei começou a ficar ansioso, — Todas as outras receitas estão guardadas em segurança no depósito. Essas duas são as únicas que faltavam.

Soo meneia a cabeça, tranquilizada, mas não bebe o chá de imediato, preferindo fazer mais algumas perguntas à mulher mais velha.

— Como estão as meninas?

— Não estamos recebendo aprendizes no momento, — Jang Mi a atualiza prontamente, — Todas as novas garotas concluíram o treinamento no mês passado e a senhora já aprovou o desempenho delas para preparar chá e sabão.

O pincel na mão de Soo finalmente está enxuto, e a tinta se seca no tempo que ela leva para acabar a bebida. Do lado de fora o sol brilha reluzente, o clima ainda está ameno e agradável, mas ela não consegue sentir o calor. Ela se sente fria e deserta, suas mãos se movem inquietas em cima da mesa, como se estivessem procurando mais um trabalho para finalizar, mais uma tarefa para concluir.

Soo suspira, tentando aquietar sua ansiedade contando o número de folhas no arranjo de flores mais próximo, mas sua mente continua a resistir distrações.

— É estranho não ter nada pra fazer, — ela reflete em voz alta, chamando a atenção da dama da corte.

— É melhor tirar uma folga, minha senhora, — a mulher a repreende e lhe recomenda ao mesmo tempo, — O Damiwon é de fato importante, mas a sua saúde também.

Os olhos de Soo ainda estão focados nas folhas verdes, uma lágrima se formando, mas não caindo – nunca caindo – quando ela responde.

— Eu não preciso de uma folga, — ela diz baixinho, como se estivesse conversando com a planta, com medo de atrapalhar sua paz e serenidade, — Logo logo eu vou descansar.

As palavras dela parecem transtornar a dama da corte, que se aproxima e olha para ela com uma dose de preocupação.

— Minha senhora? — A voz de Jang Mi faz os olhos de Soo se moverem do arranjo de flores para a mulher.

Soo sorri levemente, pensando na primeira vez que ela lutou para fazer um arranjo decente, quando ela ainda era recém-chegada no Damiwon. Então, como sempre, sua mente evoca os falecidos – mais especificamente, os dias que ela passou com aqueles que se foram.

— Antes de morrer, Oh Sanggung me disse que não tinha arrependimentos, que ela tinha protegido o que queria proteger, — Soo explica com cuidado, embora suas mãos continuem inquietas, — Eu acho que posso dizer o mesmo sobre mim.

Há um momento de silêncio no quarto. O canto dos pássaros é alegre, mas ele não parece alcançar os ouvidos de Soo. A brisa ainda é refrescante, mas ela não parece tocá-la.

— Mas nem tudo sobre Oh Sanggung se aplica à senhora, — Jang Mi finalmente fala, sua expressão profissional sem falhar nem uma vez.

As palavras dele carregam múltiplos sentidos, já que Oh Soo Yeon e Hae Soo de fato tiveram vidas diferentes. Ela sempre soube, apesar da falecida Sanggung uma vez ter dito que Soo a lembrava de si quando nova. Elas eram diferentes, e foi por isso que Soo não teve medo de imitar sua mestre quando decidiu ficar no palácio com So quando ele se tornou rei. Mas ultimamente, ela vinha vendo semelhanças entre elas.

Com um movimento lento da mão, Soo dispensa o semi-elogio da mulher, um sorriso modesto substituindo o de educação.

— Mas enfim, nenhuma de nós tinha a estrela de uma rainha, — ela diz com um riso, — Então seremos esquecidas e apagadas da memória do mundo.

— A memória do mundo não importa para aqueles que vivem no presente, — Jang Mi responde rapidamente, se curvando e então servindo mais um copo de chá para Hae Soo, e finalmente sorrindo amargamente ao dá-lo em suas mãos, — Obrigada pelo seu trabalho duro, minha senhora.

— Tem certeza que pode ficar aqui fora? — Jung pergunta, preocupado, já se inquietando ao lado dela. Isso a faz lembrar de algo de muito tempo atrás, quando era ele quem agia de forma imprudente e ela quem o repreendia pelo seu comportamento.

Soo sorri, o confortável sentimento de nostalgia que estava sobre ela desde de manhã não parecia que ia desaparecer nunca.

— Isso importa? — Ela pergunta meio distraída, só porque sabe que isso vai deixá-lo ainda mais nervoso.

— Soo-yah...

— Estamos quase lá, — ela fala numa voz calma para tranquilizá-lo, mas não parece funcionar. Talvez porque ela precise se apoiar no braço dele para continuar andando, suas pernas já perdendo as forças, — Você não precisa se afobar.

— Você está muito fraca e pálida hoje, — ele tenta argumentar, pânico aparecendo na sua voz, — Talvez seja melhor não...

— Wangjanim...

— Suas mãos estão frias.

— Wangjanim...

— E você mal consegue andar.

— Wangjanim, — Soo o silencia de vez, agarrando o seu ombro firmemente com sua mão direita, sua força de vontade nem um pouco diminuída, — Eu vou, você me ajudando a andar ou não.

— Soo-yah...

Ele soa ainda mais preocupado depois do seu ultimato e ela se sente um pouco culpada. Então ela recorre às provocações para animar os espíritos.

— Você não vai chorar agora, vai? — Soo cutuca as costelas dele com o cotovelo, e embora seja de leve ele oscila um pouco, fazendo-a rir, — Você não disse que queria se tornar um homem capaz de me apoiar?

A lembrança o faz estufar o peito e engrossar a voz quando ele fala orgulhoso.

— Eu não vou chorar, — o que, honestamente, só a faz rir ainda mais.

— Muito bem, — ela exclama contente, — Eu não quero que você chore.

O resto da caminhada é silenciosa, uma vez que o 14º Príncipe pára de incomodá-la com preocupações constantes sobre o seu bem estar – ou a falta dele – e Soo já está sem fôlego para continuar provocando-o ou revivendo o passado. No entanto, o ritmo deles ainda é lento, e em alguns pontos do caminho ela precisa dos dois braços para se apoiar nele e seus pés começam a se arrastar ainda mais.

Ela se senta no chão quando eles chegam – seus joelhos estão doendo e não suportam mais o seu peso apesar dela estar mais magra do que nunca – e suas saias se esparramam em volta dela.

Soo não se importa se elas ficarem sujas.

— Por que você veio pra cá numa hora dessas? — A preocupação de Jung volta, e ele já está lhe dando uma bronca e tentando ajudá-la a se levantar, voltar pelo caminho que eles vieram mesmo que tenha que carregá-la.

Soo não o culpa. Ela tem certeza que faria o mesmo se fosse ele no lugar dela. Então, apesar de achar que o sermão é um pouco cansativo, ela não o provoca dessa vez, optando por aceitar a ajuda dele para ficar de pé e então recusando-se firmemente a voltar para o palácio antes de fazer o que veio fazer.

Claro que ela está sendo imprudente. Nos últimos dias ela vinha sendo cuidadosa e não ousava sequer pisar fora do seu pequeno quarto no palácio. Ela passava a maior parte dos seus dias dormindo e perdendo a noção do tempo, só se levantando da cama para ter uma refeição com So ou brincar um pouco com Seol, às vezes cumprimentar Baek Ah e Jung. Ela ficava bebendo mais e mais chás e remédios para diminuir um pouco a dor, só para ela dormir um pouco mais.

Mas a dor não importa. Ela se sente completamente em paz quando observa suas pedras de oração.

— Eu não sei o que vai acontecer depois que eu morrer, — ela fala para o 14º Príncipe, que fica de postos ao seu lado com olhos atentos, depois que ela acaba seus pedidos, — Mas eu espero que meus amigos que ficarem aqui possam encontrar felicidade e sorrir quando pensarem em mim.

Jung fica confuso e então percebe que ela está finalmente respondendo a pergunta que ele fez quando ela caiu de exaustão depois de chegar perto de suas torres. Mas ele fecha os olhos em desagrado.

— Não é assim que funciona, — ele retruca, e ela sabe que ele está quase chorando de novo.

— Jung-nim, se nós sorrirmos quando nos separarmos, — Soo fala num tom mais alto e agudo, e por um momento ela se sente a garota que o salvou dos bandidos na floresta, — Você vai ter que sorrir sempre que falar de mim. Eu não aceito mais nada.

O olhar insistente dela faz com que ele finalmente ceda, ainda um pouco relutante.

— Tá bom. Eu vou sorrir sempre que pensar em você.

No passado, Soo teria saltado de emoção. Mas no presente Soo só pode sorrir, tocar seu ombro em um gesto de gratidão, e segurar sua mão para lhe fazer mais um pedido.

— Tome. Eu quero que Seol fique isso. — Soo tira o grampo de seu cabelo, o da peônia branca com borboletas vermelhas, e o coloca com delicadeza em sua mão, — Não guarde na caixa, dê pra ela assim que possível. Pyeha me deu de presente.

Ele deu esse grampo pra mim quando confessou seus sentimentos.

Eu só o usei quando estava pronta para aceitá-los.

Uma vez eu sonhei que o usaria em nosso casamento.

Jung não conhece toda a história daquele grampo, nem sabe o quanto ela realmente o estima. No entanto, ele sabe que é algo importante e precioso para ela, então ele fecha a mão em volta dele com firmeza e gentileza, quase que em reverência.

Ele respira fundo e ela consegue ver uma convicção se formando na sua mente antes que ele finalmente fale.

— Eu vou contar tudo sobre você pra Seol um dia, — ele declara, sem pedir permissão ou aprovação, — Você não vai conseguir me prometer o contrário, — Jung a impede de falar, e seus olhos mostram que ele está determinado a isso, e nem a teimosia de Hae Soo vai conseguir convencê-lo.

— E se eu te fizer prometer que a faça feliz?

— Você não precisa. Eu vou fazer isso, custe o que custar, — ele dá de ombros, um pouco aliviado por ela não tentar fazê-lo mudar de ideia, seu rosto se iluminando ao mencionar a garotinha, — Além do mais, Pyeha me mataria caso contrário.

A menção de So faz ela se lembrar de outra coisa e ela fala rapidamente, voltando a ser a irmã mais velha rigorosa.

— E também não cause problemas pro seu irmão.

Jung bufa com a bronca dela.

— Desde que ele não comece, — ele faz bico e cruza os braços, mas ela sabe que ele não está tão amargurado quanto antes.

Ultimamente o relacionamento entre So e Jung vinha se tornando mais amigável, embora não mais gentil e afetuoso. Mas ainda assim, não é como se nenhum dos dois fosse habilidoso em cultivar e manter relações amigáveis, então ela não reclama do atual laço entre os irmãos.

— Você podia ter vindo comigo. Quando ele se tornou rei, — ele ainda se lembra do dia que ele ofereceu um jeito de sair do palácio para eles serem livres e viajarem pelo mundo, — Talvez você não tivesse ficado tão doente quanto está agora.

— Mas eu também não teria vivido, — ela sorri gentilmente, grata por ele sempre pensar no seu bem-estar, mas incapaz de pensar numa vida em que ela deixasse So para trás, — Você vai entender um dia.

— Eu já entendo. Desculpa, eu não vou chorar, — ele a tranquiliza discretamente quando ela nota lágrimas aparecendo de novo nos seus olhos, — Soo-yah, obrigado. Por todas as alegrias e pelas dores. Obrigado por me salvar naquele dia.

— Obrigada por sempre me ajudar, Jung-nim, — ela fala suavemente, desejando que ele possa ter uma boa vida, — E obrigada pelo seu coração puro.

— Cadê Jung?

— Se escondendo em algum lugar, de guarda, — Soo responde a pergunta de So sem desviar os olhos de Seol, que no momento está tentando descobrir a função de um anel de jade, — Ele decidiu que a gente devia ter um tempinho.

— Ela tem uma mente bem estratégica, não é? Lembre-me de recompensá-lo mais tarde. — Ele não pergunta o que ela está fazendo ali, como ela chegou lá, nem faz estardalhaço sobre como ela devia ficar na cama. Pelo contrário, ele só fala sobre as coisas de sempre, mantendo a conversa casual e mundana.

Ele se senta ao lado dela no chão, e aceita o anel que Seol descarta ao oferecer para ele.

Os dois riem da atitude dela, e observam com devoção quando ela se levanta e caminha para sua caixa de brinquedos – mesmo que só sejam três passos – e volta com uma coisa nova e mais interessante para ela.

— Ooyah! — Seol exclama, tentando chamar Soo do mesmo jeito que Jung e So a chamam, e a convida para brincar com seus cavalinhos de madeira.

Ela não precisa dizer duas vezes.

So também entra na brincadeira, pegando outro bichinho de madeira da caixa de Seol – talvez uma vaca? Soo não sabe ao certo – e a risada da garota parece ficar mais alta. Ela ainda não aprendeu a chamá-lo (talvez Pyeha seja muito difícil para ela falar), mas Seol gosta dele assim mesmo.

No entanto, Soo começa a se sentir um pouco cansada e se deita de lado, tentando descansar um pouco ao mesmo tempo em que mantém sua filha entretida. Se fosse em qualquer outro lugar e em qualquer outro momento, So não teria ligado, mas os movimentos dela fazem seus olhos irem para ela imediatamente.

É aí que ela percebe que ele está evitando olhá-la nos olhos.

É aí que ela percebe que ele está com medo.

Ela sorri para tranquilizá-lo e ele respira aliviado. Sim, ela está cansada, mas isso é normal depois de ficar tanto tempo com uma criança. Uma criança que, felizmente, está começando a demonstrar sinais de sono.

Um tempo depois, Seol finalmente está deitada na cama, seus olhinhos fechados enquanto ela dorme em paz. Mas ainda assim, seus pais não mostram intenção alguma de sair do quarto. Eles se sentam do lado dela, loucos para tocá-la, mas com medo de acordá-la. Por alguns momentos o quarto fica em silêncio, mas So logo o quebra, sussurrando no seu ouvido.

— Parece até que estamos de volta na casa carcomida de Baek Ah.

Soo sorri com a comparação dele, mas ainda lhe dá uma bronca pela crítica.

— Não era tão ruim assim.

— Era pequena e velha, — ele argumenta e ela não tem como negar.

— Não era você quem estava acostumado a viver em locais em mau estado?

— Sim, e por isso eu sei reconhecer uma casa carcomida quando vejo uma. Não era um lugar que eu queria que você ficasse enquanto grávida.

Ela suspira e ele se alegra em ficar com a última palavra, mesmo que seja uma discussão boba. E sem sentido, quando até mesmo Soo admite que as condições do casebre não eram ideais para a sua condição. Mas mesmo com todas as adversidades e contratempos do lugar, ela não tem nada além de boas memórias de lá.

— Eu não me importaria de viver num lugar carcomido se fosse o único jeito de morar com você, — ela murmura baixinho, seus olhos ainda focados em Seol, mas seus dedos se entrelaçando com os dele, — Com vocês dois.

— Eu também não, — ele soa tão saudoso quanto ela quando eles falam da possibilidade de um mundo diferente e uma vida diferente, — Mas ainda assim, eu faria alguns consertos. A deixaria mais aquecida e confortável. Eu faria ela ser um lar de verdade.

— Um lar para nós três?

— O melhor lar. Que nem aquele do seu sonho. — So suspira ao se lembrar do sonho que ela teve há muito tempo, — Pacífico e calmo, diferente desse lugar. Confortável e firme, diferente da barraca do Baek Ah.

— Você não gostou nem um pouco, hein?

— A verdade é que eu só queria que nosso lar fosse belo, que nem vocês duas.

— E eu tenho certeza que você já sabe que a gente só ia querer que você estivesse lá conosco.

Ela sente a mão dele apertar a sua e essa é toda a confirmação que ela precisa.

Do lado de fora, a lua é minguante.

Ela não conseguia mais andar.

Claro, as pernas dela funcionavam, e ela conseguia senti-las muito bem – não que ela esteja contente por isso, já que seus joelhos resolveram ser um grande estorvo naquele dia – mas ela não tinha mais forças nem para ficar de pé. A mente dela está girando, ela começa a perder o fio da vida, mas está mais chateada por não poder andar.

Ela teve que caminhar lentamente do seu quarto para o Damiwon. Ela teve que se apoiar no 14º Príncipe para ir até suas torres de oração. Ela teve que ser carregada de volta para o palácio e para o quarto de Seol.

Mas dessa vez, So não lhe dá uma bronca por ficar tanto tempo fora quando o corpo dela está claramente sendo forçado. Quando dá a hora dela tomar o remédio, ele mesmo lhe serve o chá. Quando ela sente frio, ele lhe traz cobertores. Quando ela sussurra que quer ver as estrelas, ele a agasalha um pouco e a carrega para fora.

Primeiro ela acha que ele só vai levá-la para um lugar aberto e isolado no palácio. Depois que ele passa pelos prédios ela começa a achar que ele vai levá-la para o jardim. Mas então ele se aproxima do lago Dongji, e a põe cuidadosamente no seu barco.

Ela não faz perguntas. Ela não precisa dizer nada. Ela só o observa enquanto ele rema para longe da margem, seu rosto com a expressão rígida e fria que ele mantém sempre que precisa esconder suas emoções.

É difícil para ela manter a cabeça erguida e ela mal consegue vê-lo na escuridão, mas ela mantém o foco nele. A mente dela, já relembrando o passado, não consegue deixar de pensar em como as coisas eram entre eles anos atrás, como as coisas são agora, e como ela queria que as coisas fossem.

Mas em todos esses cenários, ela não tem como negar que ele é uma parte importante para ela.

Eu voltei no tempo só pra te conhecer, afinal?

Só pra ser amada por você?

Só pra te amar?

Essas perguntas costumavam lhe tirar o sono à noite, mas agora ela quer ser egoísta. Ela quer ser egocêntrica e dizer que sim. Tudo isso, tudo o que aconteceu com Go Hajin, tudo o que aconteceu com Hae Soo, todas as reviravoltas nas vidas deles e todos os eventos do universo conspiraram para eles se encontrarem e se apaixonarem.

Essa é a história deles.

Depois de um tempo, So pára de remar e se aproxima dela lentamente, com cuidado para não sacudir o barco. Ele a ajuda a se levantar e se deitar no casco de madeira, segurando-a com cuidado e finalmente arrumando os cobertores sobre ela para protegê-la do vento noturno. Então ele também se deita ao lado dela.

Acima deles, as estrelas brilham.

O céu negro parece ter ainda mais estrelas naquela noite. E por alguns segundos ela sente que está flutuando acima da terra, acima de todas as preocupações e dificuldades que ela já enfrentou. Ela está flutuando na direção das estrelas e por um momento ela se sente em paz e tranquilidade, seu corpo mais leve do que quando ela se afogou, sua mente mais descansada do que ela já achou possível.

Depois que o momento passa, ela está de volta para o barco no meio do lago. Ela está de volta para o lado dele e seus olhos já estão adaptados ao escuro e ela consegue distinguir os contornos do seu rosto.

Ela sorri gentilmente e tira uma mão do casulo que ele construiu em volta dela para segurar a dele, a que está repousada delicadamente sobre seu tórax.

— Lembra daquela música? A que eu cantei no aniversário do 10º Príncipe? — Ela pergunta baixinho, como se não quisesse afugentar a noite e as estrelas, — Dizem que foi o que fez você se apaixonar por mim.

O cenho dele franze com essa nova informação e ele soa culpado quando retruca a pergunta dela com outra pergunta.

— Quem te contou isso?

— Então não é verdade?

— Bem, parte é verdade, — So muda de tom rapidamente e suspira com a reação desanimada e desapontada dela, — Mas como as pessoas chegaram nessa conclusão?

O questionamento em tom de frustração dele só a faz sorrir e provocá-lo ainda mais.

— Talvez porque minha voz seja tão maravilhosa que as pessoas se convenceram que você poderia me amar só por causa dela.

— A música era muito boa, — ele sorri de volta para ela, incapaz de negar ou argumentar contra isso, — Tenho certeza que outros se apaixonaram por você também.

O leve toque de ciúmes não passa despercebido por ela, e ela tem certeza que ela já está pensando em pessoas que não era para estar, então ela sacode a mão dele de leve, trazendo-o para o presente.

— Eu ficaria feliz em repetir a performance só pra você, — a voz dela está rouca e depois de uma breve conversa ela já está sem fôlego, — Mas me desculpe, eu não consigo cantar agora.

— Tudo bem, — ele silencia a inquietação dela com um beijo na testa e parece que ele notou que ela tem lágrimas nos olhos, — Eu me lembro. Eu lembro de cada palavra.

— Só não se esqueça de mim.

— Como se eu pudesse, — ele a tranquiliza e a determinação na sua voz apaga todas as suas preocupações, aquieta a sua ansiedade.

Mas ainda assim, ela não consegue deixar de falar outra coisa, embora um pouco hesitante.

— Se você... Se você conhecer alguém depois que eu...

— Não tem nem chance, Soo-yah.

— Mas Pyeha...

— Como alguém poderia substituir você?

— Eu não quero que você fique sozinho.

— Eu não vou ficar sozinho, lembra? Eu tenho Seol. E meus irmãos.

— Mas e o seu coração?

— A sua memória vai mantê-lo vivo e aquecido, — sua voz cálida e suas palavras doces são tudo o que o coração dela precisa, e ele sorri quando ela sorri, afofando os cobertores sobre ela e acariciando sua cabeça com a outra mão, — Agora descanse. Guarde suas forças para coisas mais felizes.

Soo sorri e olha de volta para as estrelas.

Antes, ela teria apontado para algumas constelações e comentado sobre outras que não pudesse ver por conta das nuvens. Mas agora ela se contenta só em observá-las em silêncio, mais uma vez tomada pela sensação de estar mais perto do céu. Mas dessa vez ela também foca no homem ao lado dela e imagina que eles estão flutuando juntos para longe.

— Apesar de tudo, mesmo que tenha durado pouco tempo, eu estou feliz por ter te encontrado, — Soo quebra o silêncio e então vira o rosto para ver que ele já está olhando para ela. Dessa vez ela não consegue segurar as lágrimas, — Estou feliz por termos nos amado.

— Eu também, Hae Soo, — So concorda lentamente, usando seus dedos para limpar o rosto dela, — Eu também.

— Wang So-nim, obrigada por tudo. — Ela sorri e chora ao mesmo tempo, feliz e de coração partido ao mesmo tempo, — Eu não sei o que vai acontecer comigo, mas o que quer que seja, eu só quero poder te ver de novo.

— Talvez a gente se encontre de novo num mundo acima d’água, — ele responde, calmamente, e é tão diferente da resposta que ela tinha em mente que por suas lágrimas parecem dar uma pausa por alguns segundos.

— Mesmo? E como você faria isso?

— Deixe isso comigo, — ele fala com tanta certeza que ela só pode acreditar no que ele diz, — Isso é, se você não se esquecer de mim na sua próxima vida.

— Eu não vou te esquecer. Eu nunca vou te esquecer, — ela promete, as lágrimas finalmente cessadas e seu rosto iluminado pelo compromisso entre eles, e suas mãos começam a se afrouxar em volta da dele, — Eu vou esperar todos os dias.

Eu vou esperar, não importa onde eu esteja.

Não importa o que aconteça comigo depois, eu vou estar sempre esperando.

Mas ela não consegue dizer tudo. A respiração dela fica mais fraca e ela só consegue inspirar o bastante para manter seus pulmões funcionando. Suas mãos já estão dormente, e ela não consegue sentir a mão dele na ponta dos seus dedos. A mente dela foca em memorizar o rosto dele, a voz dele, o toque dele.

E então a visão dela começa a escurecer.

Jang Mi está quietamente sentada nas escadas do salão principal do Damiwon quando o Rei chega, carregando Hae Soo nos seus braços.

Alguém poderia pensar que ela estava dormindo, mas a dama da corte não precisa tocá-la para saber que ela está fria, rígida, e que qualquer forma de vida há muito cessou no seu corpo.

Ela não respira mais.

O coração dela não bate mais.

Quando o Rei se aproxima seu rosto está rígido, sem qualquer sombra de emoção ou expressão, e se não fosse pelas outras vezes que ela os viu juntos, ela teria pensado que ele era completamente indiferente à antiga Sanggung.

Com uma troca silenciosa de olhares, ela segue seu comando indireto, vai até o quarto em que Hae Soo morava antigamente e abre as portas em silêncio. Ela se curva quando o Rei passa e não levanta o olhar enquanto o ouve se movimentar pelo cômodo, colocando-a na cama e dobrando os cobertores que estavam em volta dela. Ela não deixa sua posição quando ele sai e fecha a porta, seus olhos continuam fixos no espaço entre os seus pés.

— Hae Soo disse que eu poderia confiar isso a você, — o Rei fala com ela numa voz baixa, e ela se curva um pouco mais para mostrar que está plenamente ciente da importância dessa tarefa, — Não deixe que a história se espalhe no Damiwon. Eu vou cuidar do funeral, então prepare o corpo dela. Se precisar, pode pedir ajuda a alguém. Só não interrompa as atividades costumeiras.

— Entendido, Pyeha. — A voz de Jang Mi continua firme e estável como no dia em que Oh Soo Yeon faleceu e ela se pergunta quantas Sanggungs o Damiwon está destinado a perder.

Quantas garotas inocentes vão perder tudo no palácio?

Quantas mais eu verei morrer?

Depois de suas palavras o Rei se retira. Seus passos são graciosos e régios, embora a corte não o esteja vendo. Seus ombros estão firmes numa pose intimidadora, embora seus inimigos não estejam ao seu redor. Sua cabeça está erguida, embora ele tenha perdido sua razão de viver.

Alguém poderia facilmente pensar, só de observar essa cena, que reis não têm lágrimas, que seus corações são fortificados com rocha e aço sem deixar uma única gota de sangue.

Alguém poderia também facilmente descobrir que, na verdade, eles desabam e desmoronam com mais força e mais estrondo que qualquer outro.

Jang Mi não precisa conhecer o Rei tão bem quanto Hae Soo para saber que, apesar da figura calma e fria que ele mantém agora, ele está prestes a tombar.

Ele está prestes a entrar em colapso, e ela não sabe ao certo quando – se é que um dia – ele vai voltar a ser o que era.

Ela não sabe ao certo se alguma coisa vai voltar a ser o que era.

Quando a manhã chegar, o palácio e o Damiwon estarão cheios de sons de vida, as pessoas seguirão em frente ignorantes sem saber o que aconteceu naquela noite. Quando a nova finalmente se espalhar, o Cheondokjeon e os quartos das damas da corte estarão cheios do som do luto. Mas a essa altura, o corpo de Hae Soo será apenas uma camada de cinzas sobre esse mundo efêmero.

O silêncio a havia engolido.

O silêncio reinaria para sempre.