Kanda POV

Foi a primeira vez em muitos anos que Kanda amaldiçoou o despertador quando acordou. Não estava nem um pouco preparado para aquele dia. Claro que depois do seu comportamento de manhã, seu pai ligou no momento em que seus pés tocaram o chão do seu apartamento. A última vez em que tinha ouvido um sermão tão grande, foi aos 13 anos, quando Lavi e ele entraram em uma briga com alguns garotos mais velhos porque eles estavam fazendo bullying com a menina nova, Lenalee por ela ser estrangeira. Claro que Froi havia ficado feliz por eles terem defendido a menina, mas ficou quase 2 horas tentando enfiar na cabeça dos dois que a violência não era a resposta, e para provar seu ponto, entrou com uma ação contra a escola e os pais dos alunos e fez com que os mesmos fossem punidos e transferidos (mesmo que Kanda pudesse jurar que a real razão para que os meninos tenham mudado de cidade e desaparecido no mapa, foi a tal “conversa” que Cross disse que teria com os pais). Obviamente aquela não foi a única vez que entraram em alguma briga, mas aprenderam a ser mais cautelosos depois disso.

Enquanto fazia o alongamento, ainda podia ouvir a voz do pai, no fundo da sua mente. Froi Tiedoll não era um homem de perder as estribeiras, nem do tipo que resolvia as coisas no grito. Muito pelo contrário, ele mantinha o tom de voz baixo e contido, deixando transparecer a sua decepção, e isso era o que mais doía. Se tinha uma coisa que afetava Yu Kanda profundamente era saber que havia magoado seu pai. Não era nem de longe um exemplo de filho carinhoso, mas nunca escondeu o fato de amar e admirar seu pai mais do que tudo. Não gostava nem de pensar no que poderia ter sido da sua vida se aquele artista excêntrico e sorridente não o tivesse adotado. Essa era uma das razões pelas quais admirava Howard Link, pois sabia que sem o apoio do pai e do irmão, nunca teria conseguido ser focado o suficiente para fazer alguma coisa que não envolvesse brigas.

Mas nem mesmo toda a sua gratidão o fazia entender o motivo pelo qual o pai estava tão desesperado para proteger seu afilhado, como se ele fosse uma boneca de porcelana. Sabia que era uma pessoa difícil e havia se tornado fechado e recluso com o tempo, mas não iria partir para a agressão física contra o garoto! Podia ter um temperamento ruim, mas não era do tipo violento, pelo menos não sem motivo, então não havia razão para o pai ficar tão receoso. Depois que pensou com um pouco mais de clareza, antes de dormir, reconheceu que poderia ter sido um pouco mais educado com Allen, mas em sua própria defesa, o trabalho consumia todas as suas energias, então não tinha disposição para ser simpático.

Enquanto corria, repassou mentalmente tudo o que teria que fazer naquela manhã, o que incluía não matar o seu novo “assistente”. Ainda estava furioso com o seu pai por ter decidido que colocaria o garoto para trabalhar na cafeteria sem lhe consultar. Claro que o negócio era do seu pai, já que Cross dificilmente dava as caras por lá e deixava todas as decisões para Froi, mas essa havia sido a primeira vez que ele havia decidido sozinho algo que envolvia seu espaço sagrado: a cozinha. Todas as vezes em que alguma mudança precisou ser feita, como reformas, compra de equipamentos e até mesmo a contratação dos funcionários, quem sempre dava a última palavra era ele. E isso apenas mostrava toda a confiança que seu pai tinha em suas habilidades e em seu julgamento. Então além de completamente confuso com a atitude de Froi, uma pequena parte sua admitia que toda aquela irritação era porque havia ficado magoado. Os anos de acompanhamento psicológico na infância o haviam feito entender que por mais confiante que ele estivesse com a sua relação familiar, sempre haveria aquela parte que temia ser rejeitado. Ele sabia que era besteira sua, conhecia o pai bem demais para realmente acreditar que ele o abandonaria, independente de qualquer erro que cometesse. Mas não tinha controle desse sentimento e era a primeira vez em muitos anos que se sentia tão abalado com isso.

Sabia que era presunção sua afirmar com toda a certeza de que poderia adicionar o trabalho do Link ao seu sem nenhum problema, não era estúpido. Tinha consciência da carga de trabalho que o colega carregava todos os dias, e sabia que seria impossível cuidar de tudo sozinho. Exatamente por isso já tinha um plano de ações detalhado do que faria para passar por isso nesses seis meses: não pegaria novas encomendar para eventos (iria cumprir apenas os contratos que já haviam sido agendados anteriormente), não faria modificações no menu nos próximos meses (porque estaria sem tempo para testar novas receitar) e colocaria o menu do seu futuro restaurante, no qual estava trabalhando, em espera (o que na verdade não seria um problema tão grande, uma vez que fica responsável pelas sobremesas o ajudaria ter novas ideias). E caso percebesse que mesmo assim ainda não daria conta, iria entrar em contato com a universidade e oferecer uma vaga de estágio para um estudante do último ano de gastronomia. Tudo havia sido pensado em organizado nos mínimos detalhes assim que se graduou, porque já sabia da viagem que Link iria fazer.

Havia passado várias noites planejando e organizando tudo, já tinha até mesmo conversado com Link sobre isso, já que o loiro tinha uma boa parcela no poder de decisão sobre as encomendas. Era uma das raras ocasiões em que eles se sentavam para tomar decisões conjuntas. Após ver as anotações sobre os seus planos, Link havia concordado que era uma boa ideia, mesmo sugerindo que ele contratasse um estagiário logo no início.

Lembrar que todo esse trabalho fora simplesmente descartado pelo seu pai, o fez chegar em casa com mais raiva do que quando havia saído. Entrou na cozinha praticamente bufando, e achou que poderia ficar ainda mais irritado quando deu de cara com seu irmão.

− Achei que tinha dormido na casa da Miranda essa noite, não te ouvi chegar. – disse ignorando o olhar acusatório de Marie e indo colocar a chaleira com água no fogo.

− Eu dormi. – O tom de voz de Marie era grave e acusatório – Cheguei em casa tem uns 10 minutos. Queria conversar com você antes do café abrir. – Noise Marie era 5 anos mais velho e infinitamente mais calmo do que ele. Era professor do curso de música na universidade, dava aulas no período noturno e durante o dia costumava ajudar o pai na galeria de arte. Estava com Miranda Lotto há cinco anos, e no ano anterior, haviam decidido se casar. Desde então, era raro vê-lo no apartamento que dividiam, já que Marie estava completamente atolado de coisas para resolver sobre seu casamento.

− Pode me poupar do sermão. – Kanda disse bufando – O pai já me ligou ontem à noite. Ainda estou com a orelha doendo.

− Então sabe que é melhor se comportar. – Marie organizava a mesa com alguns pães enquanto Kanda preparava o chá – Allen vai ser meu aluno e vou orientá-lo no seu trabalho de conclusão de curso. Ele já vai ter problemas o suficiente por se transferir na metade do último ano letivo, então não cause mais transtornos para ele.

− Por que estão todos supondo que eu vou causar problemas quando na verdade é ele quem está invadindo o meu espaço? – Kanda jogou às favas o resto da paciência que ainda tinha. Estava cansado de ouvir que tinha que ser um bom garoto como se ele fosse um encrenqueiro.

− Não estou supondo nada, Yu. – Marie se serviu do chá pronto e demorou alguns minutos antes de continuar – Allen não é um rapaz delicado da forma que nosso pai faz parecer, mas não o julgo por querer protege-lo. Ele passou e ainda está passando por muita coisa e antes que você diga alguma coisa, ninguém está te culpando por isso. Nenhum de nós tem culpa, principalmente ele. – Kanda não conseguia entender aonde seu irmão queria chegar.

− Tudo bem, o menino está passando por problemas, eu entendi isso. – Suspirou exasperado – Também entendi que ninguém vai me explicar o que diabos está acontecendo de verdade, e sinceramente, isso não me interessa. – Kanda se levantou deixando sua xícara na pia e encarando o irmão – A única coisa que eu quero saber é o que vocês querem de mim, já que aparentemente eu tenho que aceitar essa situação toda, calado.

− Nós não queremos que você aceite a situação calado, Yu. – Marie disse sério – E também não quero que você pense que isso é algum tipo de punição ou que você fez algo de errado. – Sabia que seu silêncio era a afirmação de que era exatamente isso o que estava pensando, mas nem se deu o trabalho de negar. Nunca havia conseguido mentir para o irmão – Nada nessa situação envolve você diretamente. Eu sinto muito que você tenha sido pego no meio da confusão, principalmente quando já tem tantas coisas para lidar. – Viu o irmão suspirar e acabou relaxando um pouco a postura. Marie também parecia muito mais exausto do que se lembrava – Mas nada disso é culpa do Allen também. Ele deve estar cansado e magoado, então a única coisa que queremos é que você não acabe descontando suas frustrações nele.

− Eu não envolvo as outras pessoas nos meus próprios problemas, Marie! – Sentiu sua mandíbula ficar tensa outra vez.

− Não estou dizendo que você envolve, Yu. – Mais um suspiro – Mas Allen está envolvido no seu problema, e ele não pediu por isso. Então apenas quero que você entenda isso e não desconte sua frustração nele. Só queremos que você se abra para essa experiência que apesar de ser incomum na sua vida, pode ser muito benéfica para os dois. E que talvez você se importe com algo além do que acontece dentro da sua cozinha. – E pela primeira vez durante aquela conversa, Kanda pôde ver o olhar ameaçador do irmão - E claro, se você magoar o Allen, eu mesmo vou te bater.

Kanda achou que ia quebrar a vasilha que tinha nas mãos, com os ingredientes pesados que iriam para a masseira, assim que ouviu a voz de Allen Walker cumprimentando os colegas do lado de fora da cozinha. E no instante que o mesmo passou pelas malditas portas duplas, teve certeza de que até o final do dia acabaria em uma delegacia respondendo por homicídio. E isso porque ao contrário do seu humor sombrio e enraivecido, Allen parecia brilhar como o sol, com um sorriso largo em seus lábios, os olhos cinzentos transmitindo empolgação e seus fios médios e praticamente brancos, presos em um rabo de cavalo baixo. Esperava que o albino ao menos tivesse a decência de parecer tão irritado quanto ele, já que também estava sendo forçado a isso. Mas não, ele tinha que sorrir como se trabalhar em uma cozinha como assistente de confeitaria fosse a coisa mais incrível do mundo.

− Bom dia Kanda! – o albino lhe disse educadamente, embora agora que podia observá-lo mais de perto, notou uma leve hesitação no seu tom de voz. Ele parecia ligeiramente desconfortável.

− Você está atrasado. – Foi tudo o que ele disse antes de se virar para a masseira – Amanhã chegue no horário ou nem precisa se dar ao trabalho de vim.

− Uou! - escutou o outro exclamar surpreso – Acho que essa foi a frase mais longa que eu já ouvi você dizer! Estou impressionado que possa proferir sentenças tão complexas, dada a sua falta de habilidade em interações. – Se Kanda tivesse mais atento, teria percebido a alfinetada na frase, mas estava concentrado em separar os demais ingredientes que usaria naquela receita e só percebeu tarde demais. Mas não teve a mínima chance de retrucar, porque assim que se virou Allen já estava indo para o outro lado da cozinha, ainda falando – Ontem você não me disse qual o horário em que eu deveria chegar, já que na verdade você não me disse coisa alguma. – Outra alfinetada, mas dessa vez o moreno estava mais atento, mesmo que não conseguisse responder devido ao choque. Então o amável Allen Walker também podia soltar alguns espinhos. – Então apenas deduzi que deveria chegar às 6:30 como Lavi e Krory, mas amanhã tomarei cuidado para chegar mais cedo.

− O que diabos você está fazendo? – Foi tudo o que Kanda conseguiu perguntar, vendo Allen caminhar pela cozinha como se ela lhe pertencesse, separando algumas panelas e ingredientes.

− Vou preparar o creme de confeiteiro e o doce de leite para rechear os sonhos. – O albino apontou como se fosse óbvio – Link me disse que os recheios precisam esfriar antes de serem usados, então é melhor que eu já comece a fazer agora, enquanto você ainda está batendo a massa. – Yu sentiu uma veia saltar na sua testa ao ver o pequeno sorriso presunçoso do outro – Afinal é isso o que você está fazendo, não é?

− Tente não colocar fogo na cozinha enquanto faz isso. – respondeu de má vontade, voltando ao que fazia anteriormente. Sabia que Allen poderia preparar os recheios, porque o viu fazendo a mesma coisa na noite anterior sob a supervisão de Link, mas não esperava que o mesmo fosse tomar a iniciativa, ou que seria capaz de distinguir o que estava fazendo sem nem ao menos questionar nada. Sentiu seu humor piorar ainda mais, lhe dando a certeza de que aquele seria um longo dia. Principalmente quando ouviu o menor começar a cantarolar enquanto trabalhava.

− Seja a porra de um bom garoto, Yu! – O moreno sussurrou para si mesmo, irritado – Ontem à noite você prometeu ao seu pai que não faria nenhuma besteira, como jogar o moyashi irritante e presunçoso dentro do forno.

Kanda repetiu essa sentença incansavelmente, como um mantra, a manhã toda. E quando finalmente e a hora do almoço havia chego, quis se parabenizar por ter aguentado todas aquelas horas escutando Allen cantar e lançar mais daqueles malditos sorrisos toda vez que ele fazia alguma coisa por iniciativa própria por saber exatamente o que Kanda precisaria. Porque nem mesmo sob tortura admitiria que estava impressionado com a rapidez com a qual o mais novo aprendia, além da inteligência e percepção que ele demonstrava. Era como se Allen pudesse sentir o que ele precisava que fosse feito e nas raras vezes em que precisou ensinar-lhe algo, bastou apenas uma rápida explicação.

Allen POV

− E então Allen, o que está achando do seu primeiro dia? – Lavi perguntou assim que se sentaram para comer. Krory e ele revezavam o horário do almoço e por isso apenas os dois estavam no apartamento do menor.

− Está sendo mais divertido do que eu esperava. – Allen respondeu com sinceridade – As dicas que o Link me deu ontem valem ouro, e é impagável ver a cara azeda que o Kanda faz toda vez que eu me adianto em alguma coisa sem que ele precise mandar.

− Queria poder entrar na cozinha para ver essas cenas! – Lavi ria de forma escandalosa – Aposto que Yu deve estar se controlando ao máximo para não sair da linha.

− Parece que ele está se controlando mesmo. – Allen disse pensativo – Acho que a qualquer momento alguma veia dele vai estourar. Inclusive achei isso estranho. Ontem quando ele me ignorou de manhã, achei que manteria o tratamento silencioso o tempo todo, mesmo sendo praticamente impossível. A outra única possibilidade que eu cogitei foi que ele me infernizaria tanto que eu pediria para sir da cozinha. De maneira alguma eu esperava que ele fosse tentar se controlar tanto. Não faz sentido pra mim.

− Yu Kanda pode ser comparado com uma caixa de bombons, você nunca sabe o que vai encontrar dentro dela. – Apesar da analogia estranho, Allen conseguiu entender aonde Lavi queria chegar, e de fato fazia sentido – E também tenho certeza de que Froi deve ter feito ele prometer se comportar.

− Eu não entendo isso. – Allen disse sincero – Ele parece ser reservado e antissocial, mas não me parece do tipo valentão ou encrenqueiro.

− E ele não é. Na verdade, é muito pelo contrário, Yu é do tipo de pessoa que se preocupa demais com os outros. Pelo menos costumava ser assim. – Lavi suspirou, e Allen estava quase perguntando sobre isso quando os olhos do ruivo mudaram drasticamente de expressão e ele parecia animado − Isso vai ser divertido. – O sorriso enigmático do ruivo fez Allen ter certeza de que ele não estava falando sobre o fato de que Kanda poderia morrer de tanto ficar nervoso, mas achou que era melhor não perguntar sobre o que ele estava falando. Parecia que era algo pessoal, e não era do tipo que se intrometia nesse tipo de coisa – Aliás, obrigado por me convidar para comer aqui, Allen. É bem mais confortável do que a sala dos funcionários.

− Não precisa agradecer. – Allen respondeu simpático – Eu teria que vim aqui de qualquer forma, já que esqueci minha caixa de música. E comer acompanhado é sempre melhor.

Passaram o restante do horário do almoço conversando sobre a faculdade. Como Lavi estava no último ano também, entendia um pouco do desespero de Allen, então tentou acalmá-lo da melhor maneira que pôde.

Kanda POV

Se Kanda achou a manhã penosa, ele sentiu que nada estava ruim o bastante que não pudesse piorar ao ver Allen retornando do almoço com um instrumento de tortura medieval, vulgo caixa de som, em mãos.

− Mas que raios é isso? – Questionou raivoso assim que viu o menor ligando aquele maldito aparelho na tomada.

− Uma caixinha de som. Serve para tocar músicas. – O tom condescendente do outro o fez quase rosnar.

− Eu sei o que é uma caixa de som, moyashi. – Talvez ele estivesse mesmo rosnando – Eu quero saber o que infernos você acha que está fazendo trazendo isso para a minha cozinha.

− Eu pretendo ouvir música? – a pergunta retórica em tom zombeteiro foi o estopim. Kanda caminhou em passos firmes até Allen, parando de frente para ele, bufando.

− E quem disse que você pode ouvir música aqui? – a pergunta saiu entredentes – Isso é uma cozinha, não um salão de músicas.

− O padrinho disse que não tinha problemas, já que eu preciso estudar para a minha apresentação. – Novamente seu pai. Kanda sentiu todos os músculos do seu corpo tencionarem de raiva. Agora ele havia realmente chego ao seu limite.

− Escuta aqui, moyashi – Começou raivoso, se aproximando mais do outro de forma ameaçadora – Não me importa que meu pai seja seu padrinho ou qualquer merda que ele tenha te dito. Sou em quem manda nessa cozinha e enquanto você estiver aqui, vai seguir as minhas regras! – a cada palavra seu tom de voz ficava mais alto – E essas regras incluem... – Não conseguiu terminar, porque a expressão assustada do menor mudou para uma risada, fazendo que perdesse sua linha de raciocínio.

− Finalmente! – Allen disse rindo, erguendo um pouco o rosto para poder olhá-lo nos olhos – Estava me perguntando por quanto tempo você ainda ia manter essa fachada.

− Fachada? – Kanda questionou confuso, se afastando um pouco – Do que você está falando?

− Ora, bakanda, você passou a manhã toda me tratando como se eu fosse de cristal, sempre se contendo, sempre medindo suas palavras. – Kanda não conseguiu revidar o trocadilho idiota que Allen fizera com seu nome, porque o choque do restante da frase foi maior. Porque era verdade, era exatamente assim que ele o estava tratando. Havia até mesmo se controlado para não explodir quando Allen havia derrubado algumas assadeiras no chão, ou confundido açúcar com sal e estragado acidentalmente uma remessa inteira de petit gâteau de uma encomenda – Eu não sei o que seu pai te disse, mas eu não vou quebrar, Kanda, você pode ser você mesmo comigo. – E com poucas palavras, Allen havia mudado completamente a atmosfera do lugar. Se antes Kanda estava irritadiço e prestes a explodir, agora ele se sentia exposto. Havia algo naqueles olhos cinzentos que o fazia sentir vulnerável. Por fim acabou se afastando do outro se dizer mais nada. Era melhor se concentrar no que podia controlar, que era sua comida. Pessoas e sentimentos eram coisas além da sua compreensão.

É claro que no final, aquela caixinha dos infernos havia ficado ligada a tarde toda. Para que ela fosse desligada Kanda teria que ter dito para Allen desligar, o que ele não conseguiu fazer de forma alguma. Uma das razões para isso foi que no momento em que a melodia preencheu o ambiente, a expressão do rapaz mudou drasticamente. Era como se ele tivesse transformado a sua parte da cozinha em um templo, e nada parecia abalá-lo. Seus movimentos que antes eram um pouco desengonçados, se tornaram mais leves e fluidos, como se fossem guiados pelo ritmo suave e elegante da música. Seus olhos pareciam focados e enevoados ao mesmo tempo, como se Allen estivesse em uma espécie de transe. As únicas palavras que Kanda conseguiu proferir foram comandos simples, que eram sempre prontamente atendidos. E mesmo esses comandos foram ditos em um tom de voz mais baixo do que o habitual e sem sua irritação costumeira. Algo no seu subconsciente parecia dizer que era errado quebrar o clima que Allen havia criado. E graças a isso, foi talvez a primeira vez em que ficou feliz ao ouvir a voz de Lavi, alta e animada, enquanto o mesmo entrava como um furacão no lugar.

− Allen!!!!! – o ruivo disse enquanto se aproximava do menor – Já deu o horário! É melhor você ir se arrumar ou vai se atrasar para a aula.

− Você tem razão Lavi! – Kanda acompanhou o olhar do albino até o relógio. Também ficou surpreso, já que não tinha reparado que já havia passado das 17:00 horas. Parecia que a tarde toda tinha se tornado um borrão. Não viu o tempo passar – Vou terminar de arrumar as coisas aqui e já vou subir para tomar banho.

− Faça isso, e... – A frase do ruivo morreu no meio, chamando a atenção de Yu – Que música é essa que está tocando? Eu não conheço.

E pela segunda vez em menos de cinco minutos, Kanda se sentiu agradecido por Lavi estar ali (isso definitivamente era um recorde), já que também estava curioso, mas era orgulhoso demais para perguntar. Não era necessariamente um amante de música clássica, mas conhecia muita coisa já que seu irmão havia estudado música e sempre ensaiava no apartamento que eles dividiam. Então era inevitável que tivesse algum conhecimento a respeito, e mesmo assim, não reconheceu nenhuma das melodias que tocaram naquela tarde.

− São apenas alguns rascunhos que estou compondo para o meu trabalho de conclusão da faculdade. – Allen respondeu de forma simples, como se não fosse nada de mais, o que de alguma forma, trouxe a raiva do Kanda de volta – Ainda não estão prontas e cheias de falhas, mas peguei o hábito de gravá-las e ouvi-las para auxiliar no processo criativo.

− Isso significa que era você tocando? – Lavi questionou incrédulo.

− Sim? – E sobrepondo toda a segurança que havia demonstrado durante todo o dia, Kanda pode vislumbrar a timidez de Allen, e isso foi uma surpresa – Eu não vou conseguir identificar os meus erros de execução se outra pessoa estiver tocando.

− Que erros Allen?! – o ruivo parecia indignado, e uma parte de Kanda concordava com aquela indignação – Eu até pensei que era algum profissional tocando, de tão perfeito! Tenho certeza de que até mesmo o Yu gostou, já que não desligou a música durante toda a tarde!

− Já te disse para não me chamar pelo primeiro nome, usagi. – Por alguns breves instantes Kanda pensou em dizer que não, não havia gostado das músicas e que aquilo não passava de uma distração desnecessária dentro da cozinha, mas ao encarar aqueles olhos brilhantes, cheios de expectativa, não conseguiu.

Havia duas coisas que tinha aprendido sobre Allen Walker naquele dia. A primeira era que ele tinha muito mais fibra e coragem do que seu pai pensava. Poucas pessoas tinham coragem de encará-lo da forma que o rapaz havia feito, e embora às vezes desse para notar um vislumbre de tristeza nas suas feições, ela logo desaparecia e dava lugar a determinação. Kanda não sabia pelo que Allen estava passando, mas tinha certeza de que não importa o que fosse, ele iria superar. A segunda coisa que aprendeu, era o quanto a música parecia ser importante para ele. A forma como sua postura mudou completamente após o play era nítida. E exatamente por isso não conseguiu desdenhar ou ser maldoso sobre isso. Se lembrava completamente de cada crítica que recebera sobre sua culinária durante todos os anos da sua vida. Sabia o quando isso doía e como era desmotivador. Então não conseguiu. Simplesmente não tinha coragem de dizer nada ruim pra Allen, pelo menos não sobre a sua música.

− Você já pode ir, moyashi. – disse tentando se livrar do clima estranho que havia se instaurado no lugar – Marie vai comer meu fígado se você chegar atrasado no seu primeiro dia de aula porque ficou até tarde trabalhando.

− Obrigado Kanda, eu... – Não deixou o outro continuar. Precisava urgentemente se concentrar no seu trabalho, ou não conseguiria terminar tudo. E naquele momento, mais do que tudo, a expressão confusa e agradecida do menor estava tirando completamente seu foco.

− Esteja aqui amanhã às 6:00 em ponto. – disse seco, interrompendo o rapaz – Eu não estava brincando quando disse que se for para se atrasar, é melhor que nem venha.

− Eu não vou me atrasar! – a determinação no tom de voz de Allen, quase o fez sorrir. Quase. – Tenha certeza de comer alguma coisa e de não ficar aqui até muito tarde. Você também precisa descansar. – O sorriso havia sido fácil de esconder, mas expressão de surpresa surgiu mais rápido do que conseguiu processar o que havia sido dito – Você não vai ser de utilidade nenhuma se desmaiar de exaustão, bakanda.

− Maldito moyashi atrevido! – foi só o que conseguiu praguejar enquanto assistia os dois idiotas deixarem a cozinha, Lavi em meio a uma risada e Allen com um sorriso esnobe e superior nos lábios. Se aquele havia sido apenas o primeiro dia, não queria nem pensar no que aconteceria dali pra frente.