Amanda sabia que aquela seria uma semana cheia, apenas não achava que as coisas aconteceriam assim tão rápido. Talvez ela tivesse apenas tido uma extrema “sorte”. Na noite anterior, soube que precisaria de uma adega inteira para aguentar tudo aquilo.

Estava no meio da segunda taça de vinho com Maria em sua casa quando Todd ligou. Uma ocorrência na casa da família River, os vizinhos reclamaram de gritos e choros, e como ela o havia mandado o nome de Hannah ele decidiu ir pessoalmente.

Chegando lá ele disse que deu de cara com uma Rachel River de olhos vermelhos, explicando que sua filha havia caído da escada, o que havia desesperado ela e o marido, por isso o barulho, mas agora estava tudo bem. Porém, Todd disse que Benjamin River não parecia preocupado com a filha, e sim com Rachel trazer-lhe algo para comer, pelo que ele ouviu do grito que o marido havia dado.

E agora estavam as duas ali. Amanda novamente em sua mesa, e Hannah á sua frente, agarrada á Fritz, um coelho preto de pelúcia, olhando fixamente para seus pés. A metade esquerda de seu rosto completamente inchada, deformada e com tons predominantemente roxos e um pouco de azul. Ela não saberia dizer onde estava o olho da pequena no meio daquele grande machucado, se este não fosse a parte de cor preta. A ponta de seu lábio estava inchado e ele como um todo tinha vários cortes, havia uma pequena falha em seu cabelo acima de todo esse estrago, e as extremidades da ferida tinham um tom vermelho.

Só de olhar, a loira sentia uma imensa vontade de chorar e levar aquela garotinha indefesa para longe dos monstros que ela chama de pais. Assim que ela chegou á calçada da escola, o porteira a levou para sua sala. A primeira aula sequer havia começado.

Uma criança que caiu da escada estaria contando para os amigos sobre ter sobrevivido ao grande evento como se fosse uma espécie de super-heroína, não abraçada a um coelho de pelúcia como se o mundo não fizesse mais sentido. Em seu lugar ela teria insistido com a mãe para ficar em casa pela dor, mas a Sra. River provavelmente a mandara para escola mesmo assim para não levantar suspeitas.

— Hannah. – disse Amanda finalmente cortando o silêncio. – Me conte o que aconteceu com você.

— Eu... Caí da escada. – murmurou a pequena.

— E como isso aconteceu? – sem resposta, apenas um olhar distante. – Por que você não quer me contar, Hannah? Eu posso te ajudar, eu já disse isso. Você poderia ter me ligado ontem. – mas ela balançou a cabeça em negativo.

— Você não pode se meter nas nossas vidas... É problema nosso... Não pode nos dizer o que fazer... – sussurrou como um pequeno e ferido robô.

— Sua mãe mandou dizer isso? – silêncio novamente. – Okay, vamos com isso então. Você caiu da escada. E por que sua mãe não te levou para o hospital?

— Mamãe fez o curativo em mim. Limpou e me deu gelo.

— Quando alguém sofre uma queda de cabeça, Hannah, ela pode sofrer uma concussão. Sabe o que é isso? – em resposta ela apenas a fitou com seu olho visível marejado. – É quando você machuca sua cabeça por dentro, não dá para ver e sua mãe sabe disso. Então por que sua mãe não te levou para o hospital? – ela voltou a baixar o olhar. – Vou dizer o por que. Porque no hospital, as pessoas fazem perguntas. Eles iam descobrir que isso que aconteceu com o seu rosto não foi uma queda. Foi o seu pai quem bateu em você. Estou certa?

Hannah fechou o olho com força, mas pareceu sentir dor com isso, então o abriu novamente, agora cheio de lágrimas. A pequena colocou o coelho em seu rosto e começou a chorar descontroladamente. Alguns segundos de choro constante depois, Amanda pegou uma caixa de lenços de papel em sua gaveta, deu a volta na mesa, ficou de joelhos, tirou um lenço da caixa e puxando delicadamente o rosto da criança, enxugou suas lágrimas com cuidado. Aos poucos a respiração de Hannah se normalizou e ela apenas fungava.

— Se ele estivesse lá... Nada disso teria acontecido. – falou ela.

— Ele quem?

— Meu anjo da guarda. Ele não pôde vir ontem. Ele teria acabado com o papai se estivesse lá... Ele não gosta nem um pouco do papai. – Amanda sentiu seu coração apertar com aquilo. Hannah precisava de um “anjo” de verdade, não um ser imaginário que na hora em que ela realmente precisasse, não estivesse lá.

Suspirou mentalmente sabendo que talvez se arrependesse.

— Eu quero te ajudar, Hannah. – falou ela baixinho. – Mas preciso que você queira minha ajuda. – o olho bom da pequena se voltou para ela. – Eu sei que ama muito a sua mãe, mas eu vou tirar você da sua casa hoje. Se tudo der certo, até sua mãe eu posso tirar também. Mas eu preciso que você me prometa que vai me obedecer, e vai falar. Porque a sua mãe não vai falar. Eu preciso que você tenha coragem para salvar você e a sua mãe, okay? – Hannah assentiu várias vezes. – Por enquanto você vai voltar para aula e depois vai para casa normalmente. Fique no seu quarto, ninguém vai achar suspeito se você quiser ficar sozinha. Se eu fizer algo que ainda não posso seus pais podem fazer com que você nunca mais me veja. – a pequena se atirou em seus braços, e ela a abraçou de volta. Hannah não era nem de longe o caso mais grave de sua pilha, mas com certeza era o mais urgente.

~*~

Hannah nunca havia andado tão devagar para chegar a sua casa, talvez fosse por sua visão estar apenas pela metade enquanto a outra era apenas dor. Após fechar a porta de entrada, sentiu uma presença a suas costas. O mesmo frio na espinha que sempre sentia quando ele estava por perto, como se uma rajada fria de vento a tivesse acertado.

Virando-se, ela viu longas e finas pernas envoltas em tecido negro. Levantando seu olhar, ela viu a face sem rosto de seu amigo. Ele a encarava fixamente, quase como uma estátua mármore e ao erguer uma mão em sua direção, ela correu até ele e começou a bater em suas pernas com seus pequenos e inofensivos punhos, as lágrimas saindo novamente de seu olho bom e da fenda que havia se tornado o ruim. Ela não aguentava mais chorar, não aguentava mais aquela dor.

— POR QUE VOCÊ NÃO VEIO?! – perguntou ela enquanto o socava sem sucesso. – VOCÊ DISSE QUE IA ME PROTEGER! QUE EU IA FICAR BEM! – ela gritava a plenos pulmões. – VOCÊ MENTIU! VOCÊ E A MAMÃE MENTIRAM! – aos poucos ela perdeu a força nos braços e apenas chorava com todas as suas forças. – VOCÊS SÃO DOIS MENTIROSOS...

Sentiu o levantá-la e abraçar delicadamente. A pequena agarrou seu pescoço e o abraçou forte. Ela chorava de boca aberta, produzindo sons cortariam o coração de seu amigo, se ele tivesse um. Finalmente se sentindo aliviada, finalmente segura, sem medo. Podia sentir a raiva e a tristeza de seu amigo. Sabia que ele mataria seu pai se tivesse a chance, da maneira mais longa e cruel possível, para que ele sentisse a dor que causara nela junto com todas as dores de todas as pessoas do mundo, mas não seria preciso. Ela logo estaria livre.