Alguns dias de calmaria mundana se passam, os soldados saudáveis se dispersam para aos outros dois setores, num acordo entre Morpheu e os outros dois comandantes, que pareciam solícitos em acata-lo.

Ao fim de quatro dias Morpheu volta a enfermaria, sua expressão de volta a calma natural, com o casaco apenas apoiado nas costas, uma camisa um pouco mais folgada que o normal e um cachecol de lã preto.

– Sim, comandante?

– Vim trocar minhas bandagens novamente, acho que já é hora, não?

– Na verdade as bandagens deveriam ser trocadas diariamente, senhor. – ele diz, levantando-se da cadeira e caminhando até uma das gavetas.

– Falha minha, doutor.

Klaus suspira silenciosamente da total falta de arrependimento por trás das palavras de Morpheu, simplesmente pegando ataduras limpas, e dessa vez, uma tesoura pequena. Ele as deixa sobre a maca, pegando o esterilizante e um pouco de algodão. Enquanto espera, Morpheu deixa o casaco sobre uma cadeira, assim como o cachecol, e abre os botões da camisa branca com uma lentidão sôfrega e arrastada, apenas fazendo leves movimentos com o braço parcialmente inoperante.

– Os remédios já chegaram? – o comandante pergunta, distraindo-se de sua tarefa.

– Sim, os encouraçado trouxeram... O pássaro-mestre voltou, aliás.

– Ah sim, eu notei, ela já se foi de novo, mandei uma mensagem esta manhã para a Ilha Capital.

– Não devia estar escrevendo, senhor. – retorquiu o médico, tomando a tesoura em mãos.

– Sou destro.

– Não devia. Estar. Escrevendo. Senhor.

– Perdão doutor, são os ossos do oficio.

Silêncio se faz novamente, as janelas estão todas abertas, o vento de fora é fresco.

O inverno se aproxima depressa.

O inverno é uma das estações que Klaus se via obrigado a odiar. Como se não bastasse o frio que o consumia todos os dias em sua vida, mais além do que isso, ainda teria neve... Muita, muita neve.

Mais precisamente algo entre um ou dois metros de neve.

Suspirou em silêncio, sentindo o cheiro forte de inverno no vento que vinha pela janela.

– Vejo que suas luvas voltaram. – Morpheu comenta, com um sorriso plácido, enquanto doutor corta as bandagens, parado a sua frente, olhando fixamente para os trapos brancos encardidos de sangue coagulado.

A sensação de autoconsciência volta a fazer os movimentos do médico desacelerarem, e ele emite um pequeno barulho de confirmação, ainda sem tirar os olhos da ferida vermelha e dos restos de gaze e algodão.

– Ainda me esqueço que você fica estranhamente agitado quando menciono suas mãos doutor, perdoe meu atrevimento, não vai se repetir.

Klaus não diz nada, apenas continua o trabalho de limpar a ferida, em pequenas batidinhas e movimentos circulares, refreando outro suspiro, dessa vez não relacionado ao inverno.

Olhando placidamente pela janela, Morpheu parece satisfeito com a iminente chegada do inverno.

– Gosta do frio, senhor? – ele pergunta casualmente, preenchendo o silêncio enquanto enrola as ataduras novas ao redor dos braços e do torço de seu superior, forçando uma aproximação um pouco maior.

Morpheu responde apenas com um pequeno barulho de aprovação vindo do fundo de sua garganta, baixo e grave. Ele carrega uma expressão séria, mas leve, a dor não parece mais estar dilacerando seus nervos.

Bom, muito bom.

Um pequeno sorriso tranquilo se esboçou fracamente na superfície dos lábios de Klaus, que ainda olhava o que estava fazendo.

Ao olhar pra cima por alguns milésimos segundos, Morpheu o observava em silêncio, suas mãos pararam quase que imediatamente, procurando algo pra dizer que justificasse o sorriso sem motivo enquanto ele olhava fixamente para carne dilacerada e feridas expostas.

– Hum...

O sorriso de Morpheu se figura numa expressão de empatia, deixando uma de suas mãos sobre o ombro de seu subalterno e acenando negativamente com a cabeça, ele comunica, sem dizer nada:

“Não se dê ao trabalho, eu não vou perguntar.”

Ele se levanta em seguida, terminando de amarras as ataduras sozinho, caminhando até a cadeira onde havia deixado sua camisa, casaco e cachecol. Por conta do braço, ele não mais abotoava a camisa até em cima, como de costume... Meramente deixando o desalinho dos últimos dois ou três botões, dependendo do braço. Ele recupera seu casaco, e cachecol, olhando para ambos por um momento, antes de caminhar até o doutor do outro lado da sala, parado em silêncio em frente à maca como esteve durante todo o tempo em que limpava as feridas que cicatrizavam rápido.

– Aqui. – ele estende o cachecol preto. – Já solicitei os uniformes de inverno, mas me lembro de você dizer algo sobre ter frio o tempo todo. – ele comtempla por um momento, tentando se lembrar se havia acessado a informação correta, então olha para o médico com um sorriso simpático.

– Senhor... Não posso aceitar presentes. – ele diz, estendendo a mão um tanto vagarosamente demais na direção do cachecol de lã preta.

– Então me devolva quando os novos uniformes chegarem.

Dito isso ele sai, quase que imediatamente, de volta para o corredor.

Klaus permanece em silêncio, segurando o cachecol escuro, olhando pra ele com o cenho franzido, com uma incerteza que esperava que o comandante voltasse dizendo que era um teste e arrancasse o objeto de suas mãos, mas ele não veio no primeiro minuto, nem no segundo, nem no terceiro, nem no quarto ou no quinto... Então ele se viu obrigado a aceitar que isso havia realmente acontecido, e seguir, então, com suas tarefas.

No caminho até seu quarto, dado que já havia escurecido àquelas horas, ele fez sua rota costumeira, checando os soldados feridos em seus quartos e trocando algumas poucas palavras, os soldados em sua maioria eram muito solícitos, e contavam sobre suas vidas pessoais de modo a preencher o silêncio enquanto o doutor trocava seus curativos, checava seus membros imobilizados, ou observava o inchado das luxações musculares, receitando um comprimido, uma pomada, ou apenas descanso, e então saindo.

Seu quarto de repente pareceu muito maior e mais vazio do que ele se lembrava, quase sufocante, mas não conseguiu se forçar a se alterar, apenas deixou o cachecol sobre a cama e rumou ao banho que todas fibras de seu corpo imploravam por.

Seus sapatos praticamente ecoavam no assoalho doo quarto, e pela primeira vez em seus inúmeros anos de trabalho no setor 27, isso realmente o incomodou, incomodou de uma forma que o deixava verdadeiramente irritado.

Arrancou as luvas, jogando-as num canto da pia, e fechou o vidro do banheiro com um pouco a mais de violência, ouviu o vidro rachando num dos cantos, por sorte não o bastante para que o vidro estourasse sobre ele, mas agora o grande rachado diagonal atravessava uma boa extensão da superfície translucida, e por mais uma vez, isso o incomodou aos limites da raiva.

Queria quebrar coisas.

Qualquer coisa.

Uma vida inteira consertando o que estava quebrado.

Pelo menos uma vez podia se dar ao luxo de quebrar algo.

Não precisava ser nada importante.

A água já estava aberta, mas sua respiração estava trêmula, e suas mãos fechadas com força, um som frustrado deixou sua garganta, queria terminar de quebrar o vidro do box, o espelho, ouvir a porcelana se estilhaçando contra o chão, a parede, azulejos rachando, pó de gesso e concreto flutuando pelo ar junto com o vapor de água excessivamente quente.

Mas ao invés disso fincou as unhas nas palmas das próprias mãos, não percebeu o que havia feito até ver o aquarelado de seu sangue descendo com a água pelo ralo, então olhou as quatro feridas cravadas nas palmas de suas duas mãos, a água quente castigando as lacerações recentes... Bateu as duas mãos espalmadas na parede, vendo as marcas de sangue molhado escorrendo pelo azulejo branco.

Encostou a testa no azulejo branco, deixando os dois braços caírem ao lado do corpo, inúteis, o cheiro do próprio sangue se espalhando pelo banheiro por meio do vapor de água... Ficou ali, olhando o próprio sangue escorrer até a água começar a arder contra a sua pele, então saiu, a água quente havia garantido que até aquele momento, a ferida continuasse cruelmente aberta.

Manchou a toalha, mas já não se importava.

Ainda estava transtornado, pesado, seus olhos ardiam, mas não sabia porque, nem porque estava com raiva. Apenas fez um trabalho medíocre em se secar, e colocou as primeiras peças de roupa que pegou na gaveta de seu armário, o cabelo pingando no chão e escorrendo pelas costas, mas com certeza não conseguiria ter mais frio do que já tinha, então... a toalha foi apenas descartada, deixada no chão, maculada de sangue e encharcada.

Abandonou-se em sua cama, observando a silhueta do cachecol que havia abandonado ali algum tempo antes, olhou para as palmas de suas mãos com certa angústia, queria pegá-lo, mas não queria manchá-lo com seu sangue, não queria contaminar o perfume que dele emanava com o cheiro de seu próprio sangue que já era o bastante para sufoca-lo. Virou e alcançou a gaveta, enrolando as feridas em algodão e gaze numa tentativa ridícula de curativo, mas não estava realmente tentando, e no escuro sua inciativa não se mostrava mais do que anódina.

Depois de não conseguir mais captar o cheiro que ele mesmo emitia por baixo das bandagens porcamente colocadas, ele tateou o escuro atrás do cachecol, trazendo-o para perto, não se atrevendo a deixa-lo muito perto do próprio rosto, mas o bastante para que o cheiro proveniente dele atingisse suas narinas... ele fecha os olhos, por alguns segundos apenas, deixando que a frustração que diminuía o espaço em seus pulmões saísse para que ele pudesse conter um pouco mais do bálsamo proveniente daquela insignificante peça de vestuário dentro de si.

Queria prender a respiração, para sempre.

Mas não podia, então apenas deixou a respiração escapar, sentindo a garganta arder, e afundou o rosto no travesseiro, fechando ambas as mãos na fronha de algodão fina e dizendo baixo, talvez para que nem ele mesmo ouvisse, apenas um baixo lamento, enquanto se consumia sozinho, em seus próprios devaneios terrenos.

Morpheu...

Depois disso, recolheu-se em sua própria vergonha, e forçou-se a dormir, segurando timidamente a ponta do cachecol, como faria com a mão do homem que gostaria que estivesse ali...