Metamorfoses Voláteis

Capítulo 34 Sobre o Passado


– Astaroth... – era a quarta ou quinta vez que ele chamava, mas Astaroth permanecia distante. – Astaroth, por favor, me responda.

– O que? – Astaroth levanta o rosto apoiado no braço contra o chão cheio de folhas caídas.

– Está parado a horas, em que está pensando?

– Na guerra... – ele suspira. – O povo do sul não tem ao menos condição de oferecer resistência, estamos lutando com algo que não consegue nos alcançar para revidar, não é injusto?

– Sua função não é questionar a justiça na guerra, Astaroth. Tanto a vida quanto a guerra são injustas para o elo mais fraco, eles são fracos, e você é o predador... Não há nada mais além disso. São datas, apenas. A morte agora, ou no futuro. É irrelevante.

– Você não sente nada, Aleister...?

– A morte não sente, Astaroth, a morte coloca fim, apenas isso... Não tem a ver com sentimentos ou crueldade, tem a ver com aquilo que você é moldado a fazer, minha função é limitar, eu roubo e eu finalizo. É só o que eu posso fazer, nada mais.

– Mas e quanto a mim?

– O que sobre você?

Aleister coloca o cabelo atrás da orelha, as mãos enroladas em bandagens encardidas de marrom avermelhado e cinza, um sorriso plácido e suave espalhado em sua expressão, estendendo-se aos olhos semicerrados em uma expressão cálida, confortável.

– Não sente nada sobre mim também?

– Se eu te matasse, com quem eu conversaria por essa eternidade que aguarda a todos nós – ele sorri, a expressão pálida, sentado numa pedra, com as mãos paradas, apoiadas nos joelhos. – Você é a epítome esculpida daquilo que eu almejo e valorizo.

– E o que seria isso?

– Motivo. Que eu não tenho, mas você tem o suficiente para confortar minha alma vazia. Apenas tenho a agradecer a você, Astaroth.

Astaroth afunda as unhas na terra fofa de outono, olhando pra baixo, o cabelo cobrindo o rosto, e os olhos fechados, Aleister havia se sentado a uma distancia razoável dele, e apesar de estar parado, o vento arrastava o cheiro forte e doce de morte até onde Astaroth permanecia sentado em silêncio.

– Eu disse algo errado? – Aleister pergunta, sua expressão suave e cálida decaindo uma nota a algo puro, gentil e preocupado. – Se o ofendi, peço perdão. – ele diz, inclinando a cabeça para o lado, o cabelo loiro suavemente escorrendo e expondo as marcas de pontos grosseiramente costurados na pele de seu pescoço.

– Me deixe sozinho, Aleister.

– Como desejar, Astaroth.

Aleister se põe de pé, o cabelo suavemente sendo soprado pelo vento frio de outono, folhas mortas se desfazendo por completo sobre seus pés, o musgo e as os galhos secando e quebrando ao tocarem por alguns segundos.

Morte fluida e concentrada no interior de um corpo que não enxerga a vida ao redor como mais do que um estado físico, tal como água.

Afastando os animais, os olhos semicerrados mentindo uma serenidade que não existia como mais do que um estado mental, gosto forte de guerra.

Os quais Astaroth desejava sozinho, sabendo as limitações que seu corpo vivo e eterno impunham diante da morte inflexível que exalava do monstro que ele agora deixava partir.

– Por quê... Por que eu não posso? – ele apoia a testa nos joelhos, em silêncio doloroso, sozinho entre as árvores.

A distância era tóxica, corrosiva, uma abstinência que drenava sua vitalidade eterna, e queimava, e corria frio em suas veias doentes de predador sem alma.

Ele se põe de pé, no intuito de caminhar atrás de Aleister, diminuir o batimento comprimido de um coração no qual ele não via utilidade, ele segue o cheiro forte de morte, o rasto de passos estampados no chão.

Encontrando Alloces de joelhos, Aleister está inclinando sobre ele calmamente, Alloces tem o rosto afundado nas mãos, e parede estar sofrendo, tremendo com uma dor que Astaroth não sabia de onde vinha.

Aleister desamarra a fita que ele mantinha ao redor de um dos braços, entregando-a a Alloces encolhido contra o chão de terra fofa e úmida.

– Cubra os olhos, deve viver apenas no futuro, não entre nós... – ele sussurra, de modo a não perturbar os pensamentos atormentados de Alloces. – É um pena... Ninguém mais poderá ver esses seus olhos cor de lavanda tão pálidos... tão lindos... – ele diz, amarrando a fita ao redor dos olhos de Alloces com cuidado metódico, não tocaria em nada.

A respiração de Alloces está instável, trêmula, mas agora que o presente não escapava mais por seus olhos, a dor não dilacerava mais seu cérebro.

– A-A...leister... – Alloces estende uma das mãos na direção de Aleister, que caminha para trás antes que qualquer contato pudesse ser feito entre ele e Alloces.

– Não devia tocar no rosto das pessoas como bem entende, Alloces... é muito rude.

– Aleister, Aleister eu não te vejo, onde você está...?

– Shh... – Aleister diz, a voz suave e confortante, imperativa. – Está tudo bem, estou aqui.

O cabelo cor de mel de Alloces caia suavemente por cima dos ombros, espalhando-se na mesma desordem que o Astaroth, Aleister pensa para si.

Alloces treme sozinho de joelhos no chão encardido de folhas e terra úmida, olhando para o chão enquanto tenta colocar seus pensamentos em ordem.

Aleister atravessa o pequeno espaço onde estavam, ajoelhando atrás de Alloces, tomado seu cabelo entre os dedos, Alloces permanece parado, relaxando visivelmente diante do contato sutil de Aleister.

O cabelo cor de mel de Alloces vai empalidecendo mais e mais, até alcançar um prateado pálido e inócuo característico do grisalho comum aos idosos do sul, sem vida apesar de liso e brilhante.

– Devia manter seu cabelo preso, mostraria seu rosto melhor. – ele diz, trançando o cabelo de Alloces numa trança frouxa que pouco mais fazia além de manter o cabelo junto e sob controle. – Tem um rosto tão lindo, Alloces... Devia mostra-lo mais. – ele completa, contemplativo, calmante... um tom de voz suave que se usa com aqueles que estão a beira da morte.

Alloces acena com a cabeça, em silêncio, sendo tomado por uma letárgica sensação de tranquilidade que não sentia a muito tempo. E então Aleister não está mais lá, esta inclinado contra uma pedra a alguns metros dele, e Alloces não vê outra opção além de levantar lentamente, batendo a poeira e sujeira das roupas.

– Obrigado... Aleister. – ele sussurra, olhando na direção que ele supunha que Aleister estivesse, pelo cheiro.

– Disponha, Alloces. – ele sorri, amável, os olhos brilhantes e pálidos, cor de gelo.

Astaroth permanece no ponto onde estava, com o rosto apoiado contra uma árvore próxima, os olhos fechados já faziam alguns minutos, o ciúmes rodando em seu estomago traduzido com um desejo feroz por sangue, por morte, por algo que o fizesse lembrar de Aleister apenas, sem associar a figura de Alloces tendo seu cabelo trançado, ou o sorriso gentil que foi destinado a ele poucos segundos antes.

Morte bruta e fria.

Que amortecesse o ciúme corrosivo e violento, que amortecesse a sensação ácida de ser mais um, quando desejava ser o único.

E foi com isso em mente que ele partiu.

Partiu em direção ao sul com os olhos carregados de dor e a garganta sedenta pelo desespero e pelos gritos de dor, e pelas lágrimas e pela morte.

Mataria todos.

Até que esquecesse aquele sorriso que não era dele.

E sonharia que aqueles pulsos que fazia parar eram daquele que agora tinha os cabelos prateados num troféu de um contato que ele mesmo nunca teve.

E odiaria aquele cabelo até o fim de seus dias infinitos.

Aleister...