No chalé no alto da montanha, Klaus permanece sentado ao lado da cama, já faziam várias noites que estava acordado, mas não é como se dormir fosse essencial, afinal... Vinha do norte, e as leis que limitam as vidas dos homens não eram suas leis também.

Tinha uma mecha do cabelo do comandante entre os dedos de uma das mãos, o rosto apoiado no braço, ajoelhado ao lado da cama, sentia-se pesado todas as vezes que enxia os pulmões com ar, ar esse que quando soltava ele não sentia a necessidade de repor novamente, não tinha um coração para partir, mas se o tivesse, estaria em frangalhos, de certo.

Não estava lá, não estava lá quando importava...

Os olhos agora permanentemente inchados e avermelhados, manchados de lágrimas, manchados do medo da perda.

Via as mãos do comandante paradas sobre o peito, imóveis, pálidas, com marcas quase cicatrizadas de uma queimadura que Klaus não tinha certeza de como ele havia ganhado...

Afogado em uma angustia amarga que circulava sua mente em formas de memórias...

Memórias de sangue quente e olhos gelados.

Havia desperdiçado tanto tempo com o que não importava... tanto tempo com orgulho e rancor...

Tanto tempo com medo e cansaço que não levariam seus passos para lugar algum.

Tudo o que queria era estar perto dele, ter seus olhares e seus sussurros e suas mãos... Era só.

Mas não importava ao que estivesse disposto a renunciar por essas pequenas coisas... Não poderia ter nenhuma delas.

Pois estava muito ocupado com seu orgulho, os costumes de um povo que nunca havia feito nada para confortá-lo.

Um povo do qual ele ao menos sentia falta.

Mas a falta que sentia de Morpheu era tanta que sentia-a esmagando seus pulmões e limitando seus pensamentos... tempo jogado fora, que todas as vezes que olhava no relógio sentia uma pontada de desespero por saber que esse tempo da vida dele não seria jamais recuperado.

Tempo que faria falta... tanta, tanta falta quando ele despertasse...

Isso se ele despertasse...

– Doutor Klaus...

Klaus desvia os olhos do comandante para a porta, na direção de Giovanni.

– O que faremos? Devo chamar por ajuda?

– Se chamar alguém só conseguirá que todos morram sem alcançar essa casa... Estamos sozinhos e provavelmente é uma questão de tempo até que venham atrás de nós. – disse, simples, mais uma verdade cruel na pilha que Klaus acumulava atrás de si.

– O que fazer, então...? – apesar de sua voz linear, as mãos levemente trêmulas de Giovanni entregavam a verdade, ele até reagia bem.

– Eu não sei... Rezar talvez. – ele diz, olhando para o piso de madeira por um momento.

– O comandante... Ele vai viver? – ele pergunta, a voz ainda distante de encontrar a verdade da catástrofe inevitável.

– Eu não sei... – ele volta a olhar na direção de Morpheu. – Eu... Não sei...

– Direi ao soldados... Para esperarem pelo pior...

Klaus acena com a cabeça, apesar de não ter certeza do que “o pior” poderia ser... talvez o pior fosse uma conceito muito leve quando aplicado à Legião.

Não sabia porque ainda viviam depois de tantos dias.

Olhou para a janela por um instante, pensando como Morpheu poderia gostar da neve.

Neve fria e inflexível.

Ele fecha os olhos, as memorias se amontoando umas sobre as outras enquanto sua mente roda em círculos. Queria poder fazer certo, sem seu orgulho atrapalhando.

Parecia tão trágico.

Até um suspiro fraco fazer seus olhos se voltarem na direção da cama novamente, para encarar o vislumbre dos olhos de Morpheu se abrindo devagar.

– Morpheu...

Ele se põe sentado, apoiando o rosto em uma das mãos, com um gemido de desconforto vindo de algum lugar no fundo de sua garganta.

– MORPHEU!

Ele enrosca os braços no pescoço do comandante, que parece um tanto sem ação, confuso até, olhando a parede atrás do doutor com os olhos baixos, as mãos paradas ao lado do corpo, buscando estabilidade.

– Hm... – ele move as mãos devagar, pousando-as com alguma dificuldade nos braços de Klaus, forçando-o a se afastar.

– Estou tão feliz que esteja bem! Tão feliz que nada tenha acontecido!

Os olhos de Morpheu permanecem distantes, ele tem o cenho frazido, e observa o doutor atropelando as palavras, ponderando onde estaria sua camisa, a expressão sinceramente atordoada, manchada de sono, pressionada pela dor de cabeça e a confusão.

– Perdão, mas... Nós nos conhecemos?

O sorriso nos olhos do doutor morrem quase que imediatamente.

– Como... Como assim?

– Já nos vimos antes? – ele inclina de leve a cabeça, como se tentasse arrancar as lembranças de sua mente, sem nenhum sucesso. - Tenho quase certeza de que nunca nos vimos antes.

– Morpheu...

Então Klaus olha para o chão, sentindo o ar pesado, sentindo-se desmoronar.

– Você está bem? – ele senta na borda da cama, com uma das mãos no ombro tensionado do doutor.

Klaus o observa de baixo, sentindo seu espirito derrotado, mas os olhos de Morpheu o encaram com uma suavidade acetinada que ele jamais havia presenciado.

O azul daqueles olhos era quase...

Plácido.

As lágrimas voltam a escorrer pelos seus olhos, esquecidas, desimportantes.

– Ei, ei... Vai ficar tudo bem. – ele ajoelha no chão ao lado do doutor, um sorriso suave em sua expressão, os dedos deslizando para apagar a trilha das lágrimas. – Qual o seu nome?

Ele tem os olhos presos aos de Morpheu, mas quanto mais aquela simpatia amável era derramada sobre ele, mas vontade ele tinha de gritar.

– ...Klaus...

– É um prazer, Klaus. – ele sorri, o sorriso lhe caia tão bem, tão leve e desimpedido.

Olhava para ele como um igual, com uma centelha singela de gentileza experimentada apenas por aqueles que não viram o inferno como ele havia visto.

Olhos de um homem que nada sabia sobre a guerra.

Olhos de civil.

Era tão lindo... Mas parecia tão errado, tão inadequado.

Ele reclina as costas na borda da cama, ainda sentado no chão, olhando pela janela, indicando para que Klaus se sentasse ao lado dele, olhando a neve do lado de fora da janela, um sorriso gentil sempre preso a suas feições o faziam parecer tão mais simples, tão mais amável...

Klaus se senta ao lado dele, não sentia mais o chão embaixo de seus pés enquanto engatinhava na direção do comandante, as mãos tremendo tanto, tanto...

Se perguntava se era assim que Morpheu se parecia antes de saber sobre o que era a guerra, o que era ter os olhos claros e as mãos limpas do sangue e da morte.

O doutor apenas olhava para o chão, não conseguia se ouvir respirar, não conseguia se obrigar a piscar, não conseguia se obrigar a funcionar de maneira alguma.

– Está com frio? – o comandante pergunta, tomando as mãos do doutor entre as suas, soprando ar quente contra elas. – Céus, suas mãos estão geladas.

Klaus ouviu pequenas batidinhas na janela, e se põe de pé de imediato, motivado pelo desespero, pelo desejo silencioso de sair dali, de nunca mais olhar Morpheu ou qualquer um nos olhos.

Ele passa por um dos soldados, murmurando um “O comandante perdeu a memória”, deixando-o para lidar com quaisquer emoções que o acometesse naquele momento sozinho.

Se ele conseguia manter a cabeça erguida.

Mentira.

Os outros eram obrigados a fazer o mesmo.

Está se ouvindo definhar?

– Dantalion... – ele sussurra sob a própria respiração.

Dantalion sorri, seu cabelo cor de caramelo permanece eternamente preto num coque bagunçado, ele exibe as mesmas marcas de tentáculos enroladas pelo corpo, e os olhos exalam uma fumaça neon avermelhada que se mistura rapidamente com o ar.

Ele desce do galho onde estava, a coleira de metal apertada ao redor do pescoço, e os passos pela neve, caminhando calmamente de modo que o doutor conseguisse acompanhar seus movimentos com totalidade.

“Não vim em busca de sangue... naith... Vim portar uma mensagem...”

– O que você quer...?

“Me enoja assisti-lo trajando a língua do sul nos lábios com um senso tão forte de pertencimento... Vim alerta-lo de uma maneira para salvar sua civilização pálida e desimportante...”

– O que aconteceu com Morpheu? Tenho certeza que isso tem algo a ver com Astaroth.

Ele não conseguia mais distinguir o gosto de emoções em sua língua, e as palavras de desentendimento de Morpheu rodavam sua mente de novo, e de novo, e de novo...

“Oh... então o vinith não lhe contou sobre a verdade dele...?”

– Que verdade...?

­“Você sente... Não sente? O cheiro de morte... as inexplicáveis casualidade que o privam da morte... a cicatrização tão eficiente... nunca infeccionando... dormindo tão pouco... sempre tão forte, tão capaz....”

– Onde quer chegar, Dantalion, diga de uma vez.

“Cuidado com a língua naith... Não sou Astaroth... Não hesitaria em atear fogo em tudo que lhe é precioso meramente por capricho...”

Klaus engole o orgulho não pela primeira vez naquele dia, as mãos fechadas em punho, as unhas ferindo a pele fina açoitada pelo vento frio e o desespero pessoal.

– Perdão...

“Melhor... Astaroth...Ele sabe... Gremory também... Assim como Alloces... mas nenhum deles nunca me disse a verdade... Ache-os... Pergunte a eles... Pergunte... Sobre Aleister...”

– Quem... é Aleister...?

“Ache-os... Entenda o amor de Astaroth...”

– Por que me ajudaria, Dantalion? Justo você...

“Ajudar...? Não... eu não sujaria minhas mãos com alguém como você, naith... Mas tenho certas contas a acertar com Astaroth... e pretendo fazê-lo... só preciso que você mova as peças que precisam ser movidas para fora do meu caminho...”

Ele tem um sorriso doce, suave, a expressão plácida, tinha feições delicadas e dedos finos, e caminhava como se o chão fosse feito de seda. Olhava o doutor nos olhos, olhos tranquilos, olhos limpos, de um tom róseo plácido e claro.

Se não fossem as marcam de queimaduras nas pontas dos dedos e as feridas de grilhões nos pulsos, poderia ser facilmente confundido com alguém muito mais jovem, alguém cujas mãos estavam limpas.

“Ache Aleister, naith... Ache-o depressa... Ache-o antes que seja muito tarde...”

Ele sorri uma ultima vez, e então some.

Deixando Klaus com seus pensamentos e um nome.

Aleister...

De quem é esse nome...?