Menina de Ouro

Capítulo Três


O saco de areia pouco se agitava toda vez que eu o socava, não importando qual era a força que eu colocava, dava dois socos com a direta e outro com a esquerda e então gingava, como se estivesse desviando de um golpe de meu possível agressor. O ar entrava quente em minhas narinas, indo para os pulmões e inflando meu peito. O suor que brotava na testa escorria enquanto meus tênis nos pés começavam a apertar.

— Você não coloca muita força no segundo golpe, por isso seu oponente tem chance de reagir e ficar esperando pelo terceiro – ouvi alguém dizer, reconhecendo a voz pelo sotaque ridículo que eu começava a me acostumar.

Sem me virar para olhá-lo, como se ninguém tivesse falado, eu continuei a socar. Pela minha visão periférica notei Dimitri continuar a avaliar meus movimentos, antes de se aproximar e segurar o saco de areia.

— Ok. Vamos começar com o básico. Você está muito dura Rose – ele se posicionou atrás de mim, encostando ligeiramente seu joelho entre os meus e me puxando para frente – Curve um pouco suas costas e mantenha os joelhos dobrados, assim.

Ele saiu de trás de mim, ficando a minha frente e balançando a cabeça em um gesto de negação ao notar minha postura.

— Você ao menos já deu um soco em sua vida?

Oh, eu já tinha dado alguns socos por aí.

— O suficiente para quebrar alguns narizes – eu respondi dando de ombros.

— Aposto que o suficiente para quebrar ao menos dois dedos no processo também – ele rebateu – Coloque seu polegar para fora do punho, mantenha os cotovelos para dentro da sua guarda com os punhos para cima e próximos do rosto.

Eu fiquei na posição que ele me disse e então ele fez outro gesto de reprovação com a cabeça.

— Você é muito impaciente para um professor, sabia? – eu observei. Havia duas semanas que eu havia começado a treinar na academia e até aquele momento eu basicamente havia levantado pesos, feito flexões, barras e bem... Dado voltas e mais voltas pelo quarteirão.

— Ponha seu queixo para dentro de forma que o maxilar fique protegido e use os pés para se equilibrar.

Eu me virei para ver quem tinha falado, mas antes que meus olhos pudessem registrar alguma coisa, eu senti um golpe em meus joelhos, me levando ao chão. Eu pisquei, vendo Dimitri pairando acima de mim.

— Lição número três em uma luta: não se distraia.

Eu revirei os olhos. Alguém devia dizer a ele como aquelas lições eram ridículas. A um era basicamente “Não se meta em uma luta que não vai ganhar” e a segunda era “Não demonstre fraqueza para seu oponente”. Bem, de todas elas, aquela havia sido a mais dolorida e humilhante, já que todos os outros alunos pararam quando escutaram o barulho do meu corpo caindo no chão.

Dimitri me estendeu a mão e eu aceitei, finalmente podendo me virar para olhar quem havia me distraído e me feito apanhar de Dimitri. Ele devia ter seus quarenta e poucos anos e era realmente alto. Um cabelo escuro e roupas que gritavam dinheiro e também "socorro, eu preciso de um estilista". Eu tinha certeza que ele estava cozinhando por baixo daquele paletó azul escuro e cachecol vermelho sangue. Ele definitivamente não combinava com aquele lugar.

— Você sumiu, Ibrahim – Dimitri disse para o visitante.

Ele tinha uma curta barbicha e a alisou com a ponta dos dedos, enquanto tinha seus olhos em mim. Me senti encolher e então cruzei meus braços sobre minha barriga e seus olhos acompanharam meu gesto.

— Já foi um professor mais atencioso com seus lutadores, Belikov – ele disse, mas seus olhos ainda em mim.

— Rose não é um lutador – ele disse e eu olhei em sua direção. Ele não podia ao menos levar fé que eu estivesse me esforçando? – De qualquer forma, ela está apenas no começo. Há muito a aprender.

Ele saiu do ringue, se abaixando para passar por baixo das cordas e eu agradeci quando ele começou a caminhar para longe com o homem esquisito. Ser secada por um cara que tinha idade para ser meu pai não era nenhum pouco confortável.

— Aquele é Ibrahim Mazur.

Eu me virei, vendo Eddie a poucos passos de mim, colocando suas luvas

— Ele é algum tipo de cafetão? – eu perguntei balançando minha cabeça na direção em que eles seguiram e Eddie riu.

— Não – ele disse, erguendo suas mãos para mim e eu comecei a soca-las – Ele é um tipo de patrocinador e também já foi um cliente de Dimitri, pelo que dizem. Acho que a amizade dos dois começou aí. Mas fazia meses que ele não vinha aqui.

— Ah é? – eu perguntei, me curvando como Dimitri me disse e acertando um bom soco na mão de Eddie, que recuou um pouco.

— Bem sim. Ele deve estar à procura de novos lutadores para patrocinar. Já tem um tempo que Dimitri não inscreve nenhum de nós em uma luta realmente grande – ele disse pensativo – Deve ter sido pelo último cara que ele agenciou.

— Quem? – eu perguntei, não realmente interessada, mas aproveitei da pequena distração de Eddie para testar um dos meus golpes, mas ele desviou, me olhando com quase pena.

— Você é péssima – ele salientou – E eu falo sério!

Eu rolei os olhos, tirando minhas luvas e passando a mão por minha testa para limpar o suor. Uma breve pesquisa pelo nome de Dimitri com as poucas pessoas da cidade que eu conhecia me mostrou que ele era plenamente capaz de treinar qualquer um e praticamente uma lenda naquele meio. Ele nunca havia lutado, mas havia seu nome envolvido em tantas vitorias de lutadores seus que ele era quase como uma espécie de selo de qualidade.

Eddie e eu saímos do ringue, indo até o bebedouro para enchermos nossas garrafinhas.

— Eu só quero aprender a me defender – eu disse, tomando um bom gole de água – Sabe, eu quero ser capaz de cuidar de mim mesma.

Eddie me olhou de cenho franzido.

— Você não quer conquistar um cinturão ou algo assim?

Eu dei de ombros. Minha sobrevivência era o que importava. Eu queria lutar? Claro. Mas eu não havia feito uma meta de vida para me tornar uma lutadora nos ringues.

— Você deixou isso claro para Dimitri? – ele perguntou novamente. Seu queixo quase alcançando o chão – Ele não treina garotas e aí abriu uma exceção para você, mas você não quer se tornar uma profissional.

— Eu quero – eu disse rapidamente – É claro que eu quero, mas estou apenas dizendo que a primeira meta é que eu me defenda.

Eu não podia dar mais detalhes. Eu tinha que manter a fachada para evitar perguntas do meu passado. De onde eu vim e o que estava acontecendo. De qualquer forma, antes que Eddie parecesse desconfiado, eu ergui o olhar para as escadas, rumo onde ficava o escritório de Dimitri, quando vi que ele descia as escadas junto com Ibrahim e falava extremamente alto e em um idioma que eu não consegui entender nada.

— Ele é sempre assim? – eu questionei, vendo que todos os outros também observavam a pequena discussão e a forma como Dimitri gesticulava para baixo.

— O deus da luta? – Eddie assoviou – Ah, não. Ele só é assim quando está na academia, sabe?

— Ah – eu disse, pensando por um momento que talvez em sua vida social ele fosse mais agradável – espero que ele não passe muito tempo aqui.

— Está brincando? – Eddie gargalhou e eu o olhei, confusa – Ele mora aqui!

Eu quase soltei um gemido em agonia. Ele era assim 24 horas por dia! Lancei um olhar rápido para o relógio na parede, vendo que já era quase hora de entrar na lanchonete. Arrumei minhas coisas rapidamente e então jogando minha mochila sobre meu ombro, antes de me despedir de Eddie. Ele era o único que ao menos se esforçava para parecer agradável comigo – enquanto os outros quando não me olhava como um pedaço de carne, achavam que eu estava ali brincando.

Eu praticamente corri para a lanchonete, entrando pelos fundos e indo até o banheiro privativo onde eu tomei um rápido banho e vesti meu uniforme em seguida. Eu tinha combinado com o meu chefe de tomar um banho todos os dias ali, em troca de alguns turnos extras para que eu pudesse me dedicar o máximo possível aos meus treinos, mas a rotina toda já estava me cansando.

Comecei a servir as mesas e meu dia iluminou brevemente quando eu notei Mason sentado no balcão.

— Dia difícil, uh? – Mason perguntou, tocando em meu braço, pouco acima do meu pulso onde eu notei uma marca de dedos. Eu me lembrei de como Eddie me segurou para bloquear minha tentativa de golpe. Não tinha parecido tão forte assim.

— Ah, eu estou fazendo aulas de boxe – eu disse, enchendo sua xícara quase vazia de café.

— Mia me disse – ele falou e eu notei um tom de seriedade em suas palavras e eu sustentei seu olhar – Com Dimitri Belikov. Devia se afastar dele.

— Você pergunta muito de mim para Mia? – eu perguntei, quase me esquecendo que Mason tinha uma queda por mim, mas ainda assim eu não queria nenhum cara por aí querendo saber da minha vida. Muito menos um que tinha uma nota de ciúmes em sua voz.

— Não – ele disse, erguendo sua xícara – Mas eu vi que você vem trabalhando mais do que seus horários e fiquei curioso.

Espalmei minhas mãos sobre o balcão. Eu estava cansada e irritada. E o ultimo cara que havia bancado o stalker para cima de mim tinha me dado uma cicatriz fodida na barriga.

— Mason, somos quase amigos, eu te disse isso – eu quase sussurrei, não querendo atrair atenção para nós.

Seus olhos se alargaram sutilmente e ele corou, suas bochechas ficando quase da cor de seu cabelo ruivo. Ele estava quase fofo. Se não fosse por aquele olhar que parecia querer me exigir algo.

— Eu estou falando como seu amigo – ele disse rápido – Estou apenas preocupado com você.

— Mas não precisa, Mase. As aulas que estou fazendo são justamente para cuidar de mim.

— Esse é o problema – ele disse e eu olhei ao meu redor, vendo alguns clientes passando pela porta – Você devia escolher outro lugar, outro professor.

Meus olhos se arrastaram de volta para Mason, se estreitando, mas ao invés de ser ríspida, eu suspirei, usando o bom senso e pensando nos sentimentos dele. Eu sorri, esperando que isso aliviasse minha expressão. Inclinei-me sutilmente para ele, levando minha mão até seu rosto e segurando seu queixo.

— Não precisa ficar com ciúmes, Mason.

Eu quase havia esquecido como flertar, mas julgando pela forma como Mason me olhou, eu ainda era boa nisso. E eu me arrependi no instante seguinte. Não queria me envolver com ninguém. Então eu apenas voltei a minha posição, recuando.

— Eu não estou – afirmou com a voz afetada – Mas você devia saber que Dimitri não é um cara legal com garotas como você.

Eu pisquei com a afirmação de Mason, tentando buscar um sentido nelas, mas antes que eu pudesse refletir mais sobre isso, Mia me puxou pelo cotovelo, empurrando um prato para mim.

— Leve até a mesa quatorze. Preciso ir no banheiro urgente.

Eu lancei um último olhar para Mason, mas ele desviou sua atenção para longe, colocando algumas notas sobre o balcão e se levantando.

Na hora do meu intervalo, eu fui até o deposito da lanchonete que ficava nos fundos, me sentando sobre algumas caixas e puxando meu celular do bolso do meu avental e discando o número da tia Alberta.

— Rose? – ela atendeu, parecendo em dúvida e eu sorri. Ela era como uma segunda mãe para mim. Havia me visto crescer e eu sabia que ela estava tão preocupada comigo quanto minha própria mãe – Eu sinto tanto a sua falta. Pensei que nunca mais falaria com você.

Eu sorri, perguntando como estavam as coisas e ela fez um breve resumo sobre as queixas da minha mãe e sua preocupação comigo. Ela também falou sobre Jack estar dando trabalho a ela novamente, mas eu não prestei muita atenção nisso.

— Estou treinando com Dimitri – eu disse depois de um tempo – Ele realmente é bom.

— Claro que sim. Eu não diria a você se não fosse.

Eu pensei por alguns minutos, enchendo meu peito de coragem.

— Sabe, eu fiquei curiosa sobre que tipo de favor ele te deve – eu olhei para minhas unhas, que estavam bem curtas – Ele não menciona isso, mas eu fico pensando se é algo sobre-

— Ele precisou de ajuda há alguns anos, isso é tudo.

— A-aham – eu fiz, imaginando que tipo de coisa era aquela que Alberta estava escondendo ou que parecia incomodar a Dimitri quando eu usei contra ele para conseguir sua ajuda – Eu ouvi um cara hoje falando sobre ele não ser muito legal com garotas como eu.

— Isso porque ele não costuma treinar garotas – ela disse me cortando – Escute, Rose. Eu tenho que entrar em uma audiência em alguns minutos, mas você sabe que eu não diria para onde ir e quem procurar se não fosse para te proteger.

Eu refleti sobre aquilo. Era verdade. Mas eu também não gostava de segredos. Mas eu apenas desisti, por hora, sabendo que eu não tinha muitas escolhas e refletindo que Mason estivesse apenas com ciúmes por me ver passar tanto tempo com outro cara quando ele claramente parecia investir todo o seu dinheiro em cafés-da-manhã na lanchonete.

Eu encerrei a ligação, comendo um sanduiche de peito de peru com Coca-Cola antes de voltar ao meu serviço.

No dia seguinte, quando a academia abriu, eu já estava na porta e fui recebida por Dimitri. Era meu dia de folga e eu esperava que pudesse distrair minha cabeça enquanto passava o dia treinando. Eu sabia que a maioria dos seus alunos chegavam após as oito, mas ainda assim eu mantinha meu horário. Ele estava se alongando em um dos ringues quando eu cheguei e eu tirei meu casaco e o farfalhar do tecido chamou sua atenção para mim.

Dimitri usava uma regata preta com uma calça de moletom da mesma cor. Seu cabelo estava preso em um curto rabo de cavalo.

— Chegou cedo – ele disse, alongando seus braços e eu desviei meus olhos para longe. Eu podia estar treinando meu cérebro para ficar longe de contato masculino mais do que o necessário, mas eu não era cega.

— Este é o meu horário – eu respondi, entrando no ringue e o imitando nos movimentos. Notei uma pequena tatuagem em seu pescoço, quando ele se virou de costas para mim, mas antes que eu pudesse distinguir os contornos, ele se endireitou, se voltando para mim.

Eu refleti sobre as palavras de Mason do dia anterior e só percebi que estava o olhando por tempo demais quando ele ergueu uma sobrancelha para mim.

— Vou te ensinar algumas técnicas de imobilização hoje – declarou, tirando seus tênis e eu fiz o mesmo o seguindo – Você é menor, então terá que usar a força e o peso do seu oponente contra ele.

Eu tentei prestar atenção nas dicas de Dimitri, mas ficava difícil já que a cada vez que ele fingia me atacar, eu ficava imóvel, com medo dele me machucar.

— Vamos, eu estou te segurando por trás – ele disse, seus lábios quase tocando minha orelha enquanto seu peito pressionava minhas costas. Ele tinha suas mãos torcendo meus pulsos para trás – Você pode tentar me chutar, ou me socar ou qualquer outra coisa, mas eu preciso que você tente reagir para que eu possa te ensinar.

Eu forcei meus pulsos, tentando me soltar e, inevitavelmente, eu me vi arrastada pelas lembranças de meses atrás. A voz de Red parecendo tão perto. Aquela havia sido exatamente a forma com um de seus comparsas havia me segurado para que ele me machucasse.

— Você está com medo, Rose? Com medo de que eu te mate e mande seu corpo em pedaços para sua mãe?

Eu prendi a respiração com o horror de escutar Red dizer aquilo, e então joguei minha cabeça para trás, escutando um gemido e então ele soltou minhas mãos, e eu joguei meus cotovelos para trás, torcendo para ter acertado suas costelas. Eu queria que Red sofresse. Queria que ele sentisse tanta dor quando havia me causado exceto que... Quando eu me virei, era Dimitri quem tinha uma mão sobre seu nariz que sangrava.

Meus olhos se arregalaram e eu pisquei, vendo que eu estava na academia e não naquele beco sujo novamente.

— Desculpe – eu disse, indo até ele e tentando ver o mal que havia causado – Oh, eu sinto muito Dimitri. Eu não sei o que me deu, você ficou dizendo para que eu reagisse e eu só-

Ele fez um gesto com a mão, para que eu me afastasse quando eu tentei tocar em seu rosto e eu abaixei minhas mãos. Ele foi até o banheiro enquanto sangue ainda pingava no chão e um tempo depois eu o segui.

Dimitri não estava distraído. Ele estava focado e esperando que eu reagisse, mas eu tenho certeza que ele nunca esperou que eu fosse acertar uma cabeçada em seu nariz. Eu parei a porta do banheiro, enquanto ele lavava seu nariz e o secava com uma boa quantidade de papel toalha.

— Sinto muito – eu disse, encolhendo meus ombros.

Dimitri me olhou pelo reflexo do espelho, e então deu alguns passos em minha direção.

— Sua blusa está suja.

Baixei o olhar, vendo que minha blusa tinha se manchado com um pouco de seu sangue e então eu senti ainda mais culpa, como se isso fosse possível. Ele pareceu adivinhar meus pensamentos.

— Está tudo bem. Isso acontece, você não quebrou meu nariz e nem nada, mas acho que vou ter que dar uma olhada em minhas costelas.

Ele me deu um sorriso e eu me permiti relaxar um pouco. Eu peguei mais papel toalha e então tirei sua mão do caminho, pressionando um pouco e inclinando sua cabeça ligeiramente.

— O nariz do meu irmão mais novo costumava sangrar muito quando éramos pequenos – eu disse, tentando fazer como minha mãe – Mas eu juro que nenhuma delas foi porque eu o soquei.

— Irmão? – Dimitri perguntou. Sua voz saindo nasalada.

— Ele é adotado, sabe – eu disse, rindo me lembrando de como ele costumava chorar por isso quando éramos pequenos e eu dizia que minha mãe iria devolvê-lo ao lixo – Na verdade é meu irmão de criação. Minha mãe se casou com seu pai.

Eu parei de falar, incomodada, percebendo que não devia contar sobre a minha vida.

— De onde sua família é? – Ele perguntou e quando eu não respondi, ele insistiu – Você mora em uma quitinete alugada e está sempre aqui ou trabalhando.

Eu tirei o papel toalha de seu nariz, notando que o sangue já havia parado e então lavei minhas mãos. Dimitri ficou ereto novamente, mas seus olhos me analisavam.

—Eu preenchi minha ficha quando me matriculei – eu finalmente disse.

— Ah, isso me lembra de algo – ele disse, me dando um olhar divertido – Você sabe que Nárnia não existe, certo? – ele ergueu uma sobrancelha para mim – E o telefone que você deixou para contato tem somente 5 dígitos.

Eu sorri e então dei um soquinho de leve em seu ombro.

— Esse é o seu jeito de pedir o meu número, Camarada?

— Não – ele disse, parecendo não entender a provocação – Esse é o meu jeito de dizer que eu sei que mentiu na sua ficha.

Ele continuou me encarando com seus olhos castanho escuros e era como se ele pudesse ver minha alma. Tinha algo nele que me fascinava, mas eu não sabia ao certo o que era. Frequentemente durante nossos treinos eu sentia meu corpo reagir ao seu contato, mas eu apenas ignorava meus hormônios e a carência que eu obviamente sentia e seguia. Mas agora, com nós dois naquele pequeno banheiro, era realmente difícil ignorar a forma como seu olhar pesava sobre mim.

— Montana – eu disse finalmente – Eu cresci em Montana.

Minha resposta pareceu despertá-lo, já que ele piscou e então olhou para longe de mim. Barulhos de conversa chegaram até nós e Dimitri se adiantou, saindo do banheiro e então eu o segui. Notei que Eddie e Jesse – o cara que sempre me secava quando pensava que eu não estava olhando – estavam no tatame, em uma luta que claramente o segundo estava perdendo.

Dimitri e eu subimos no tatame ao lado novamente, mas desta vez ele não me agarrou por trás e insistiu para que eu me defendesse. Ele me atacou pela frente, e o primeiro golpe, que eu sabia que ele não havia colocado nenhum pouco sua força, foi um soco no estomago que me derrubou.

— Vamos lá, garotinha. Hora de mostrar a quê veio – eu escutei Jesse dizer e pela minha visão periférica pude ver que alguns alunos tinham se voltado ao redor do nosso tatame para ver minha humilhação.

— Proteja a barriga e a cabeça, um golpe em um desses e você perde uma luta – Dimitri me orientou, andando ao meu redor – Se não aguentar é só bater no tatame – ele piscou para mim e eu revirei meus olhos.

— Se você ficar calado talvez isso ajude – eu murmurei, mas sabia que ele havia escutado.

Rolando um pouco para o lado, eu me ergui, ficando em posição de defesa e avaliando Dimitri antes de partir para cima dele. No entanto, antes que eu conseguisse sequer chegar perto de atingi-lo, já estava novamente no chão. Dimitri se pôs em cima de mim, segurando meus braços acima da minha cabeça enquanto ele ainda pressionava seu peito contra o meu, me forçando a ficar no chão.

— Bate no tatame, Rose – Eddie disse e eu senti meu rosto esquentar enquanto sentia o ar entrando com dificuldade – Vamos Rose.

Dimitri não estava me machucando, mas ele me pressionava com força o suficiente para que eu nem ao menos conseguisse me soltar. Eu pensei em acertar o meio de suas pernas, mesmo sabendo que seria um golpe literalmente baixo, mas Dimitri pareceu ler meus pensamentos já que no instante seguinte ele tinha imobilizado também minhas pernas.

— Escute seu amigo, Rose – Dimitri disse, apertando com mais força para que eu desistisse, mas eu não queria parecer covarde. Eu havia sido quando deixei Red me machucar e não queria que Dimitri pensasse que eu era uma fraca – Uma pedra escuta melhor do que você, sabia? – Dimitri aliviou o seu peso, e eu puxei o ar com força, descendo meus braços quando ele soltou minhas mãos. Senti sua mão em meu queixo, me forçando a olhá-lo. – Antes perder uma luta, do que perder a vida!

Ele finalmente saiu de cima de mim, me deixando estática no chão e eu vi quando Eddie subiu no tatame, após Dimitri fazer um gesto para ele.

— Treinem os socos e o recuo – ele disse e eu o assisti se afastar, indo até a parte contraria da academia onde os mais experientes treinavam.

Eu fiquei o dia todo ali, treinando. Descansava por alguns minutos, me alongava, comia alguma coisa e então voltava a treinar.

À noite, todos já haviam ido embora, ficando apenas eu e Eddie para trás, guardando os equipamentos, mas logo ele foi embora também.

Eu havia acabado de pegar minha mochila quando vi que Dimitri socava um dos sacos de areia com força. Eu não havia o visto muito depois que ele me deixou praticamente morta no tatame.

Dando um sorriso brincalhão, eu deixei minha mochila cair do meu ombro e fui até ele quando notei a força como ele socava o saco.

— Dia ruim? – Perguntei, não obtendo resposta – Bem, eu acho que você tem o ano todo ruim, a década também. Eu diria século, mas você não é tão velho assim. Quero dizer, você tem o humor do meu avô, mas não acho que tenha mais de 80 anos como ele.

Dimitri parou por um momento me olhando, tentando decidir se eu falava sério ou não.

— Seu avô ainda é vivo?

Eu perdi o sorriso. Bem, eu não conheci meu avô e nem ao menos sabia se ele ainda estava vivo, mas piadas realmente não tinham que ser verdade absoluta. Eu me lembrei de que foi exatamente para evitar perguntas desnecessárias que eu menti em minha ficha.

— E você por acaso tem família? Aposto que não. Obviamente você tem mãe, eu vi as fotos em seu escritório. Ela e mais algumas mulheres, mas, eu quero dizer, esposa e filhos? Certamente não! Você é tão chato que não deve ter nem ao menos namorada.

Eu não queria ter soado tão maldosa, mas as palavras saíram antes que eu pudesse controla-las. Ele ergueu uma sobrancelha para mim, daquele jeito legal, não parecendo realmente ofendido com minha declaração.

— Está se oferecendo para o cargo?

Eu sabia que meu queixo poderia estar encostando no chão, então eu fechei minha boca e pisquei, confusa, enquanto ele me olhava fixamente. Dimitri havia flertado, era isso? Não. Com certeza não! Balançando a cabeça, eu assumi que era apenas uma provocação então sorri.

— Desculpe, não namoro homens mais velhos com idade para ser meu pai.

Dimitri revirou os olhos, pegando uma garrafinha de água que estava no chão perto dos seus pés.

— Sou sete anos mais velho que você, apenas isso.

Eu dei de ombros. Não queria ter mais detalhes sobre ele.

— Dane-se. Bem, estou indo embora. Vejo você amanhã, camarada.

— Espere – ele chamou quando eu comecei a me virar para partir – Eu a levo em casa. Não quero que você leve uma surra no meio da noite.

Eu o olhei confusa. Não estava tão tarde e não era como se tivessem malucos nas ruas dando soco nas pessoas.

— Quem disse que eu vou levar uma surra? – eu estava quase indignada com a falta de confiança nele em mim.

Dimitri parou, me olhando, e então deu de ombros.

—Oh, bem, se preferir a frase correta é "não quero que seja estuprada". Se sentiu melhor?

Eu ponderei. Aquele era um ponto. Eu realmente não estava pronta para voltar a pé para casa, de qualquer forma.