Menina

Capítulo 1


Antes de conseguir respirar o suficiente para escrever isso que você está lendo agora, eu tive que suportar muita coisa nessa vida. Não digo que ela foi injusta comigo, penso que eu é que fui injusta com ela. Desde cedo tive de aprender a lidar com a angústia de sofrer com a dor dos murros que eu insistia em dar em pontas de facas, com a perda do leite derramado, com a teimosia que eu depositava em tentar ressuscitar, não coisas mortas, mas coisas que nunca haviam vivido. Hoje sou uma adulta, com boa situação financeira, com um bom apartamento, com uma boa aparência. E ainda assim, a garota que fui não foi completamente enterrada. Ela ainda chora dentro de mim.

A minha história você deve conhecer. Se estiver lendo essas palavras em algum lugar onde existem várias histórias, sobre o mesmo casal, que vem do mesmo lugar de onde eu vim. Em poucas dessas histórias, meu sofrimento é expresso devidamente. Por que o brilho dos principais, apagam meu brilho, que talvez nem exista. Então resolvi falar por mim mesma.

Meu nome é Meiling Li. E fui ao Japão quando era apenas uma garotinha, pois sentia muita falta de Syaoran lá na China. A verdade, é que mesmo quando estávamos em Hong Kong, ele era muito distante de mim. Não era exatamente uma companhia com quem eu mantinha uma boa conversa. Eu falava, ele escutava, e era basicamente isso. Por mim estava tudo bem, eu o amava. Nunca pensei na hipótese de que ele poderia se apegar a outra pessoa que não fosse eu. Pois era eu que estava sempre do lado dele, e que fazia tudo por ele. Eu iria até o céu, iria até o inferno, se ele o quisesse. Bastaria uma palavra. Mas quando cheguei ao Japão...

Então eu sabia que ia acabar uma hora ou outra. Todos os sonhos que eu já havia tido e todos os meus planos, todos morreriam e era algo inevitável, inquestionável. Eu conseguia sentir, prever. Não quando ele se aproximava do Yukito, nem quando fez novos amigos na escola. Porém quando ele estava capturando as cartas junto com a Sakura. Ah, a Kinomoto. Ela era perfeita para ele, eu sabia, desde o começo. Era uma menina doce, forte, mas sensível ao mesmo tempo. Tinha a capacidade de usar magia, e os dois agiam de uma forma tão... Harmoniosa! Eu tentei, eu fiz tudo o que eu pude! Mas tudo dava errado, eu fazia tudo errado. E insistia em tentar segurar Syaoran, tentar prendê-lo a mim, não perder ele...

Foi uma questão de tempo até que o próprio notasse o que já existia há muito tempo. Acredito que o destino já sabia, e tentava me contar que ele nunca me pertenceria. Eu fingia que não era comigo. Eu via os olhares dele para ela. E quanto eu chorei! Chorei tudo o que uma garota suportava chorar! Porém sobrevivi, como sabia que faria. Eu sempre sobrevivo. Mesmo sem querer, eu sobrevivo.

Quando eu finalmente o perdi de vez, meu mundo não desabou. Eu encontrei nas palavras refúgio, e encontrei outros sentidos para a minha vida. Uma parte de mim continuava podre, era uma parte que eu arrastava por onde ia, estava morta. Eu poderia ter encarado de uma forma melhor, mas minha mente não permitia. Ela insistia em me trazer cenas, e cenas e mais cenas. Que me faziam rir, me arrepender. Eu comecei a me preocupar com meus estudos. Com a minha vida. Eu notei que na China não havia espaço para mim, surpreendentemente. Aos meus quinze anos, ainda o tinha em minha mente, mas ele não estava mais lá ao meu lado. As fotos dele espalhadas pela mansão Li, ainda traziam muito a presença dele. E ele ligava muito, havia sempre notícias dele. Eu resolvi sumir de vez, conversei com a minha mãe, que não gostou muito da ideia, mas a convenci com argumentos sãos, maduros e razoáveis, e saí do país. Fui para a Europa, Inglaterra. Onde moro atualmente.

Na Europa eu estudei, e fiz amigos. Vários amigos. Não era uma pessoa triste, posso dizer que aos dezessete anos e meio eu já havia deixado as olheiras para traz, e na Inglaterra já em plena adolescência, eu era animada e vivia em festas. Minha mãe ligava toda semana para cá, Syaoran ligava mais que ela. E isso aos poucos se tornou uma pedra no sapato. Eu não precisava mais dele e não queria que ligasse. Mas não poderia dizer isso para ele, pois não era tão verdade assim. Em algumas festas eu bebia, bebia demais e era comum que eu perdesse controle sobre mim mesma. Era algo que eu resolvia sozinha. Acordar em outro lugar totalmente estranho, com outra pessoa estranha, tornou-se comum. Não que eu estivesse me drogando, ou transando sem camisinha. Eu não tinha certeza sobre a camisinha, mas a parte das drogas é realmente verdade. Não me tornei suicida, porém adotei um outro estilo de vida. Mais liberdade, menos preocupações. Eu ocultava isso da minha família, é claro, eram muito tradicionais, até demais. Eu não me tornei tão rebelde quanto o leitor provavelmente pensa. Isso era apenas nas noites, de dia era uma pessoa controlada, estudiosa, talentosa. Descobri meus dotes artísticos, e usei eles para me livrar de todas as minhas aflições.

Mas os bons tempos não duraram para sempre – acho que nunca duram. Apesar de começar a encarar a vida de um ângulo mais positivo, quando terminei o ensino médio, virei uma pessoa noturna. De dia estudava e trabalhava, quando chegava em casa, apenas tomava banho e saia novamente. Voltava cedo – geralmente três horas antes do horário em que deveria acordar para a faculdade. Minha maquiagem era boa, as olheiras não eram visíveis. Comecei a me acostumar a dormir pouco, e já conseguia manter meu ritmo normal. Quase normal, é melhor dizer. Minha produtividade no trabalho era realmente boa, desde que ninguém chegasse perto de mim. Eu mataria por pouco naqueles tempos, por muito pouco. A falta de descanso resultou em pouca tolerância, para qualquer coisa. Comecei a me tornar insuportável para as pessoas mais próximas, e minha mãe já começava a perceber minha falta de paciência nos telefonemas. Syaoran nessa época não ligava com tanta frequência – ou eu não estava em casa para atender na maioria das vezes. Ele reclamava quando nos falávamos, eu contornava muito bem as perguntas sobre meus hábitos, Syaoran sabendo de alguma coisa, era minha mãe e a China inteira sabendo também. Eu já havia me tornado uma cidadã londrina praticamente, não voltaria para meu país por nada. Ou quase nada.

O quase nada implicava poucas coisas. Uma delas era se eu por acaso engravidasse. Em Londres abortar era difícil. Encontrar remédios ou qualquer coisa parecida para isso era complicado. Na própria mansão Li, havia um local onde se guardava ervas e outras coisas. Sempre soube das histórias sobre mulheres que abortavam filhos antes do casamento. Eu o faria sem que ninguém soubesse. Outra coisa que me faria voltar, era se eu – por algum milagre sobrenatural – encontrasse alguém com quem me casar, então regressaria, para cumprir as tradições da família. O mais trágico dos motivos que me enviariam de volta para minha terra natal, era a morte de alguém próximo. Como minha mãe.

O maior choque de minha vida.