Melinyel

Capítulo 06


Elora tropeçou novamente na escada.

Murmurou alguns palavrões enquanto se equilibrava; olhou para trás preocupada, mas por sorte não havia ninguém por perto para presenciar uma visão tão digna de pena. Ela sacudiu a cabeça tentando inutilmente não visualizar a cena pelos olhos de outra pessoa: uma meia humana com os cabelos revoltos e embolados, enquanto meio penteado ainda persistia firme no lugar; com o vestido arruinado pela lama e com rasgos na bainha, tentando caminhar o mais silenciosamente possível enquanto sobe as escadas com uma das mãos apoiada na parede. Sim, devia ser uma cena um tanto quanto engraçada para quem estava assistindo.

Ela olhou frustada para os degraus acima, nunca reparara como a escada é grande... Seria um longo caminho.

Um forte trovão ecoou pelos salões, fazendo-a dar um pulo de susto. A tempestade havia chegado. Elora segurou a barra do vestido suspirando pesadamente e continuou seu caminho escada acima, neste momento arrependeu-se de não ter pedido que Tauriel lhe acompanhasse. Se a elfa estivesse com ela, já estaria em seu quarto a muito tempo.

Pelo menos esse episódio serviu para ensiná-la a não tentar acompanhar o ritmo dos elfos, os quais tem uma enorme resistência ao vinho. Enquanto Elora já estava meio tonta, com as bochechas mais rosadas e rindo de coisas que ela não se orgulha; Tauriel continuava no controle completo. Elora até chegou a imaginar que ela falaria sobre o misterioso anão mas Tauriel não tocou no assunto. Elora não gostava de vê-la com aquele olhar triste, mas tinha que ser paciente. Tinha certeza que a elfa lhe falaria quando estivesse pronta.

Após mais tempo do que ela se orgulharia, Elora chegou ao quarto; encostando-se na porta ao fechá-la. Fechou os olhos por um momento pensando se seria muito ruim dormir na banheira, certamente não teria forças para ir até a cama após um banho quente. Estava com sérias dúvidas se teria forças para caminhar até a banheira, em primeiro lugar.

Emel não estava mais no cômodo, provavelmente já tinha ido providenciar seu jantar.

Elora deixou-se afundar na banheira enquanto sentia todos os músculos doloridos relaxarem na água morna; ouvia a chuva pesada que caía sobre a floresta e agradeceu por Tauriel tê-la achado. Caso contrário estaria perdida no breu do pântano e completamente ensopada. Ela fechou os olhos por um momento e se viu novamente entre as árvores, correndo sozinha na escuridão enquanto as criaturas tenebrosas a perseguiam. Elora ouviu sussurros macabros chegarem aos seus ouvidos, junto com o som das presas estalando.

Percebeu que eram as aranhas que estavam falando mas não conseguia entendê-las, as vozes eram chiadas e gélidas. Elora sentiu as lágrimas rolarem pelas bochechas, assim seria o seu fim: sozinha na escuridão. Não haveria Tauriel para ajudá-la, ninguém viria ao seu socorro.

Já estava prestes a desistir quando avistou um brilho pálido à frente. Forçou as pernas a correrem mais rápido, a luz foi tomando a forma de uma árvore cheia de frutos. A grama ao seu redor era tão verde quanto suas folhas e minúsculas flores brancas espalhavam-se ao redor. Elora sorriu, sabia que se chegasse perto da árvore estaria a salvo. Estava quase alcançando-a quando sentiu seu pé ser puxado.

A menina acordou assustada, sentando-se rapidamente na banheira. A água, antes serena como um espelho, balançava fervorosamente em pequenas ondas ao seu redor. Não sabia quanto tempo havia cochilado, o banho já estava frio e a chuva ainda caía forte lá fora. Levantou-se sem dificuldade, a tontura já havia diminuído. Colocou sua camisola e sentou-se em frente ao espelho para desembaraçar o cabelo. Já estava na metade quando viu Emel entrar no quarto pelo reflexo do espelho à sua frente.

A elfa entrou em silêncio, o que era bem incomum; ela sempre foi falante. Parecia perplexa.

Elora virou-se para ela, pousando a escova prateada na mesinha ao seu lado.

— Sua presença foi solicitada pelo rei... para acompanhá-lo durante o jantar. - Emel sorriu ao ver a expressão chocada da menina. - É uma grande honra.

— O que? Porquê?- Cada terminação nervosa de seu corpo havia acordado e estava em alerta.

Seu nervosismo pareceu trazer de volta toda a náusea, sentiu as mãos tremerem.

— Ora, o rei não precisa dar explicações. - Emel caminhou em direção ao armário. - Mas fiquei tão surpresa quanto você, nos últimos tempos tem preferido fazer as refeições sozinho em seu quarto. - A elfa ficou com a expressão triste. Claramente o humor e a reclusão do rei estavam preocupando o reino.

Thranduil estava jogando, era a única explicação a que Elora podia chegar; sentiu-se como um ratinho assustado indo para uma armadilha.

Emel pegou dois vestidos e posicionou-os à frente dela. Quando a menina não esboçou nenhuma reação Emel sacudiu-os levemente, a elfa estava visivelmente animada.

Como ela poderia animar-se com uma situação dessas, Elora não conseguia imaginar. Pelos céus, ela estava indo para uma emboscada!

Elora encarou os dois, pareciam mais modelos para festas e banquetes do que para uma simples refeição comum.

— Eles são muito exagerados para um jantar, não? - disse Elora.

— Não é esperado nada menos do que isso quando se está na presença do rei, ainda mais quando se é outro membro da realeza. Vou prepará-la como a princesa que é. Agora escolha um.

Elora olhou novamente para os dois, escolhendo o que lhe parecia mais simples. Um modelo aveludado todo azul escuro, acinturado com a saia esvoaçante e mangas largas e transparentes. Uma fina faixa prendia algumas flores azul-claras ao lado na cintura. Emel terminava de trançar seu cabelo quando ouviram uma batida na porta. Era Herenvar.

Antes de sair Elora olhou seu reflexo no espelho; uma imagem muito diferente da figura enlameada de antes. Passou a mão levemente pelo tecido do vestido sentindo sua maciez, nunca havia colocado nada tão fino e caro em sua vida. Se lhe falassem em Alórien que dentro alguns meses estaria vivendo entre elfos e sendo tratada como uma nobre, Elora teria se desmanchado de tanto rir. Após chamar a pessoa de louca, é claro.

Mas o mais espantoso para ela, era que neste momento, olhando sua imagem refletida, ela se sentia como uma princesa.

Herenvar pigarreou e, com a confiança restaurada, Elora seguiu-o para o corredor.

— Atrevo-me a dizer que está muito bela esta noite, minha senhora. - O elfo disse enquanto apontava a direção com o braço.

— Agradeço o elogio, Herenvar.

Elora sentia-se desconfortável. Não poderia continuar caminhando como se nada tivesse acontecido, ela precisava desculpar-se. Quando já estavam sozinhos nas escadas Elora tocou em seu braço, parando-o.

— Devo-lhe um pedido de desculpas. Sinto muito por qualquer inconveniente que eu tenha lhe causado com meu atos impulsivos.

— Não deve se preocupar com isso. Não posso julgá-la pois também sou jovem e sei como é agir impensadamente. - O elfo encarou o vazio à sua frente, amuado.

— Fala de Emel? - Elora perguntou sem controlar a indiscrição. Herenvar assentiu levemente.

— Todos somos imprudentes em algum momento. Felizmente podemos aprender com estas situações e evitar futuros constrangimentos.

— Sim. Mas mesmo assim, peço desculpas.

O elfo inclinou a cabeça, assentindo.

— Sentirei falta de sua companhia, minha senhora. Os dias nunca foram monótonos após sua chegada. - Herenvar tinha a expressão tranquila, até um pouco divertida.

— Não fará mais minha guarda? - Elora foi pega de surpresa.

Se tinha que ter uma segunda sombra, que pelo menos fosse ele e não outro elfo. Já havia se acostumado com sua presença e passar por todo o processo novamente seria desgastante.

— O rei dispensou-me desta tarefa, é a última vez que devo escoltá-la. Oficialmente, pelo menos.

— Regressará para a patrulha da floresta?

— Em algum tempo. Primeiramente voltarei ao meu treinamento; em alguns anos poderei solicitar novamente uma audiência para a guarda. - ele orgulhou-se.

Elora assentiu pensativa, ele falava de anos como se fossem horas. Ela tinha quase certeza que nunca se acostumaria com esse jeito de encarar o tempo.

Mas ficou feliz por Herenvar. Pelo menos o elfo investiria sua energia em algo que realmente o agradava.

— Você sabe quem será designado para mim? - ela perguntou.

— Infelizmente não.

— Bom, não tem importância agora. Pensarei nisso pela manhã. - Elora sacudiu a mão, espantando o pensamento. Tem que concentrar-se em um problema de cada vez, do contrário enlouqueceria. - Mas não pense que se livrará de mim tão facilmente, até minha partida ainda vou perturbá-lo. Não deixarei que se acostume novamente com os dias monótonos. - Ela lhe sorriu.

— Ficarei honrado, minha senhora. - Ele sorriu.

Eles voltaram a caminhar e Elora torcia as mãos nervosamente.

O elfo a olhou de soslaio.

— Não deve preocupar-se antecipadamente. - Ele comentou.

— Não é algo que posso evitar. Já imaginei mil versões de como esta noite terminará e devo lhe dizer que nenhuma das perspectivas me agrada.

— O pessimismo não a acalmará.

— Sim, mas preferiria não ter de lidar mais com um rei tão... - Elora percebeu que havia falado demais quando Herenvar parou de caminhar, encarando-a.

Ela havia falado besteira. Por mais que o elfo lhe fosse cortês, ele não era como Emel ou Tauriel. Não podia fazer insinuações sobre o rei em sua presença.

— O pré julgamento é um véu que se estende na frente de nossos olhos, impedindo-nos de ver toda a verdade. Não seja tão rápida em suas conclusões sobre o caráter de ninguém, especialmente de nosso rei. - disse Herenvar, com a expressão tranquila.

— Perdão, meu nervosismo fala por mim. - disse Elora.

Herenvar aceitou as desculpas e voltou a caminhar. Elora estava curiosa e já que o elfo parecia não se opor ao assunto algumas perguntas não fariam mal. Ele notou sua hesitação, já sabendo o que estava em sua mente.

— Seus pensamentos estão tão altos que consigo ouvi-los.

— Consegue mesmo fazer isso? - Ela alarmou-se, pensando em tudo que já passou em sua mente enquanto ele estava por perto.

— Não, mas suas expressões são bem claras. - Ele sorriu levemente. - Pergunte-me. Prometo que nada do que falarmos será repetido.

Elora pensou novamente se seria sábio ficar bisbilhotando a vida alheia desta forma, mas esse era um momento precioso em que ela poderia descobrir mais sobre o elfo que lhe trazia tantos sentimentos conflitantes. E já que estava indo para uma provável batalha, pelo menos iria armada.

— Por que o rei é assim, Herenvar? - Ela perguntou finalmente. - Parece tão frio e distante, inexpressivo como se... não tivesse mais um coração.

O elfo parecia refletir sua resposta.

— Venha, vou lhe mostrar. - Ele mudou de direção e pediu que Elora o seguisse.

Ele a guiou até um corredor mal iluminado, não parecia ser muito usado e não havia ninguém por perto. Passaram por uma pequena ponte de pedra, em seguida atravessaram um arco de madeira adornado com pesadas cortinas carmesim chegando a um grande hall. O espaço era amplo e meio vazio, apenas alguns sofás e poltronas se encontravam no centro do cômodo.

Elora já havia percebido que o espaço era destinado para a apreciação das paredes. Eram cobertas por quadros e tapeçarias. Os elfos posavam majestosos e imponentes, pinturas tão belas que pareciam poder criar vida a qualquer momento. A grande maioria possuía os mesmos cabelos claros e olhos azuis de Thranduil.

— Este é o Salão das Eras. - a voz de Herenvar ecoou pelo cômodo. - Toda a família real desde nosso primeiro líder.

Herenvar caminhou até parar em frente a um dos maiores quadros. Um elfo loiro estava em pé, seus olhos azuis cristalinos tinham um brilho conhecido, vestia uma túnica cinza enfeitada com jóias brilhantes no peito, como um grosso colar, e uma capa da mesma cor estava sobre seus ombros; sua mão estava pousada protetoramente no ombro de uma elfa de expressão amável. Ela tinha os cabelos tão longos que as pontas não podiam ser vistas na pintura, a cor dos fios era do mesmo tom quase branco de Thranduil; ela estava com um vestido vermelho-escuro com pequenas flores espalhadas pelo tecido.

— São os pais dele? - Elora perguntou quase sussurrando, não queria perturbar a paz da sala. O elfo afirmou com a cabeça.

— Lhe apresento suas majestades rei Oropher e rainha Aeriel. - Herenvar ficou em silêncio, também admirando a tela a sua frente.

— Ela é linda.

— Sua beleza inspirou muitas canções e até hoje ela é lembrada como uma das mais belas elfas que já caminharam sobre esta terra. - Ele colocou cruzou as mãos nas costas, pensativo. - Eram governantes justos, apesar de outros reinos os retratarem como severos. Sempre colocaram seu povo em primeiro lugar, por isso quando perceberam o grande mal avançando, Aran (rei) Oropher uniu-se ao exército de Lórien e liderou a hoste dos elfos silvestres à batalha contra Mordor na Guerra da Última Aliança. Ele era bravo e justo, mas também independente e orgulhoso. Ele liderou um ataque precipitado, antes que o Alto Rei Noldor, Gil-Galad, tivesse dado o sinal para avançar. Ele subestimou o poder do inimigo. Aran Thranduil também estava na batalha em Dagorlad e viu seu pai perecer no primeiro ataque, assim como quase todo seu exército. As perdas e os horrores da guerra o mudaram, dizem que ele não olha para o sul, em direção à Mordor; e quando o faz uma sombra cai sobre seu rosto. A rainha Aeriel decidiu seguir para as terras imortais pouco tempo depois da morte do antigo rei.

— Ela deixou-o sozinho? - Disse Elora.

— Ao final da segunda era ele já estava casado e... ela também não era a mesma.

Elora sentiu a boca abrir em surpresa.

— Ele é casado? - Ela perguntou. Imaginando quem se casaria com Thranduil; ele era bonito, Elora tinha de admitir, mas seu temperamento não era dos melhores. Talvez não fosse de todo o ruim quando era mais novo.

Por algum motivo, ela sabia que o rei nunca tinha sido o tipo jovem cheio de vida que sai em busca de aventuras. Ele cresceu como herdeiro do trono, e tinha de portar-se como tal.

— Infelizmente ela faleceu poucos anos depois. Todos os que são antigos e testemunharam os dias da rainha são proibidos de falarem sobre o assunto. Dizem que nem o próprio príncipe tem conhecimento sobre os eventos que levaram à morte da mãe.

— E-ele tem um filho? - Elora sentia a cabeça rodar. Era muita informação. - E aonde ele está?

— Cunn (príncipe) Legolas partiu logo após a batalha dos cinco exércitos. O encontrará em Rivendell.

— Aonde está o retrato deles? - a menina sentiu uma enorme curiosidade sobre como seria a elfa que conseguiu atrair a atenção do rei.

— Não há retratos da rainha, e o príncipe partiu antes que o seu fosse feito.

— Então, o príncipe nunca soube como a mãe era ou o que aconteceu com ela?

Herenvar assentiu. Ela pensou em seu próprio pai; até pouco tempo atrás também não sabia muito sobre ele. Elora refletiu sobre o que o elfo havia lhe contado, havia muita informação para ser assimilada. O passado de Thranduil era sombrio e marcado por perdas. Ela não perdoou seu comportamento, mas pôde começar a entender a reserva dele perante uma estranha. E o mais triste, ele se lembrará de suas perdas até o fim dos tempos.

A vida imortal perdia cada vez mais o brilho para Elora, ela não suportaria conviver para sempre com toda essa dor. E nem podia imaginar como ele o fazia.

Herenvar havia voltado a caminhar e já estava próximo à ponte quando Elora percebeu sua falta. Ela olhou em volta uma última vez antes de ir embora e seu olhar se prendeu sobre uma passagem no final da sala.

— O que tem além do portal? - ela perguntou.
— A sala de música. Como tem outra entrada, ninguém costuma acessá-la por aqui.

Elora volta a segui-lo em silêncio. Herenvar tomou gosto pelo assunto e continuava falando sobre as lendas de seu povo, mas Elora não prestou atenção em suas palavras. De vez em quando acenava com a cabeça, não queria ser rude mas não tinha lugar em seus pensamentos para outra coisa a não ser Thranduil. Durante todo o tempo ela criou um pré conceito sobre ele, sem ao menos tentar entendê-lo ou ver as coisas sob seu ponto de vista. Ele tinha todo o direito de ficar desconfiado, afinal ela era uma estranha - até para seu tio, com quem encontrara no meio do caminho. Sem a intermédio de Elrond, tinha certeza que Thranduil não permitiria que uma forasteira entrasse em seu reino sem um interrogatório completo.

Passaram pelo grande salão de banquetes, cuja parede lateral era aberta em grandes arcos de madeira dando acesso à um pequeno bosque ao lado da base da montanha. Herenvar despediu-se, deixando-a na entrada de uma pequena sala. Elora olhou ao redor; estava sozinha.

Na pequena sala havia uma enorme mesa de madeira polida com dois lugares montados - o da cabeceira e o assento à sua direita. O ambiente era bem iluminado e também possuía um portal, mas este ainda dava para o interior da montanha, dando acesso a uma paisagem particular. Após descer os poucos degraus, Elora caminhou sobre a fina camada de grama que tentava crescer até a borda do lago cristalino, onde se formavam leves ondulações pela forte chuva que entrava pelas aberturas na montanha. Olhou para o alto e pode ver de relance o brilho pálido de algumas estrelas quando um trovão iluminou o céu. Este devia ser o lago no qual deságua a cachoeira perto dos aposentos reais.

Ela abaixou-se devagar e tocou o chão, ainda estava um pouco nauseada e cair no lago não seria nada bom para sua autoestima no momento.

O lugar seria lindo se conseguisse florescer. Imaginou a parca grama crescendo verde e saudável junto com flores de todas as cores, quando o jardim estivesse saudável poderia ser um refúgio para os animais da floresta. Ela sorriu, feliz com a ideia, e surpreendeu-se quando desejou estar ali para ver isso acontecer. Ver a floresta triste e doente mexia com ela de uma forma que ainda não conseguia entender.

Thranduil já estava em pé no portal da sala há algum tempo, observando-a. A menina corria os dedos levemente pela grama como um carinho, enquanto sorria para o lago.

— Cuidado para não cair na água, duvido que queira arruinar outro vestido.

Elora virou-se, levantando de rompante, o que a fez dar um passo para o lado para se equilibrar.

Thranduil tinha uma fina tiara prateada em sua cabeça; e vestes da mesma cor que reluziam conforme ele se movimentava. Elora encarou-o também, comparando-o em sua mente ao brilho pálido de uma estrela. Sentiu as bochechas queimarem, ainda devia estar sob o efeito do vinho para criar esses pensamentos irracionais sobre ele.

— Um por dia é o suficiente, majestade. - forçou-se a falar.

Ela desviou o olhar novamente para o lago quando viu que ele caminhava em sua direção. O rei parou em seu lado, em silêncio, com as mãos cruzadas nas costas e ficou observando a chuva atingir a superfície do lago.

— Espero que tenha acalmado seu temperamento. - disse Thranduil. - Detestaria perder um dos meus pratos favoritos para buscá-la novamente.

— Isso não se repetirá, lhe garanto... majestade. - Não iria pedir desculpas, ele também tinha um pouco de culpa na sua fuga. - No entanto, se ainda tenho o direito de lhe solicitar algo, peço que acabe com minha agonia e me diga logo qual será minha punição.

— Rebelde e impaciente... Uma combinação perigosa para uma dama, não acha? - ele virou-se para olhá-la quando Elora riu discretamente.

Pelos céus, não fora uma boa ideia beber todo aquele vinho! Ela fechou os lábios controlando-se e em seguida respondeu-lhe.

— Não sou uma dama convencional, até alguns dias atrás era uma simples aldeã que vendia ervas e plantas no mercado da cidade.

Ele continuou encarando-a por alguns segundos até que virou as costas e voltou a caminhar para o cômodo iluminado. Elora pôs-se a segui-lo.

— Não vejo porque eu deveria ceder aos seus desejos quando você mesma esforçou-se tanto para pôr-se nesta situação.

Thranduil percebeu que a menina fixou o olhar no chão. Ela reconsiderava suas ações? Estaria arrependida de seu comportamento atrevido e quase selvagem? Ele duvidava muito. Elora não havia pedido seu perdão, mas ainda sim ele via sua testa franzida em preocupação. Isso fez com que Tranduil revesse seus planos; manteria a humana sob seus olhos.

A humana mostrava coragem, estava preparada para assumir seu castigo e ele surpreendeu-se novamente. Com seus milhares de anos, Thranduil havia aprendido a ler facilmente os outros, seus desejos e temores, mas essa pequena continuava a surpreendê-lo. Ela o intrigava, não havia como negar.

O rei viu-se tentado a pressioná-la mais, apenas para ver o que faria em seguida. Após anos trancado na fortaleza em Mirkwood ele não tinha muitas distrações, e ela definitivamente deixava sua mente ocupada.

Elora irritou-se quando percebeu a verdade nas palavras de Thranduil. A única culpada pela sua situação, era ela mesma.

Quando entrou no cômodo, o rei já estava sentado à mesa enquanto uma elfa lhe servia uma taça de vinho. Quando Elora sentou-se, a mesma serviu-a sem perguntar se ela queria ou não. A menina aceitou sem reclamar, mas a última coisa que gostaria de ver no momento era o líquido escuro que a encarava de sua taça.

A elfa serviu os pratos iniciais e posicionou-se ao canto da sala. Elora ficou nervosa, ela ficaria ali durante toda a noite? A menina não queria nenhuma testemunha espalhando pelo reino sua conversa com o rei, sabe-se lá como a noite terminaria.

— Devo parabenizá-la pelo treinamento de seu cavalo. - Thranduil deu um leve gole em sua taça.

— Randír? - ela surpreendeu-se com o assunto inesperado.

— Poucos humanos conseguem despertar tanta lealdade em seus animais.

— Randír não é treinado, tentei ensiná-lo algumas coisas mas ele é muito cabeça dura. Ganhei-o alguns anos atrás, já adulto, de um viajante.

— Ele foi ao meu encontro na floresta e guiou-me até vocês.

A menina surpreendeu-se com a escolha do cavalo, sabia que Randír era inteligente mas porque de todos os elfos do grupo de Tauriel que estavam mais próximos ele foi até Thranduil?

— Somos amigos. - ela deu de ombros. - Randír sabe que eu faria o mesmo por ele.

— Você costuma ter essa forte ligação com os animais? - Elora sentiu um genuíno interesse em sua pergunta.

— Por que pergunta?

— Elrond mencionou que você foi afortunada com dons especiais, mas que ainda não sabe seu patrono.

— E está tendo sucesso em suas suposições?

— A comida não está do seu agrado? - ele olhou para seu prato intocado.

— Estou apenas sem fome. - ela ainda estava com o estômago embrulhado, mas comeu uma garfada de seu prato.

— Reflexos da visita à adega esta tarde? - Elora arregalou os olhos. - Sei tudo o que acontece em meu reino, senhorita.

Não aguentando mais a situação, nem a morna cordialidade inesperada dele, Elora deixou o garfo ao lado do prato e resolveu ir direto ao ponto.

— Por que estou aqui, majestade?

— Seu tio pediu que ficasse sob minha proteção.

Elora fechou os punhos com força. Ele estava forçando sua paciência, mas não perderia a calma. Não cairia em seu jogo.

— Não falo disso. Por que estou aqui dividindo a mesa com vossa majestade?

— Por que eu quero. - ele falou com os olhos fixos no dela, Elora sentiu um arrepio correr suas costas e suas bochechas esquentaram ainda mais. - Não seria de serventia nas masmorras, observá-la é muito mais interessante.

— Então minha punição será fazer-lhe companhia? - ela não estava acreditando. Estava fácil demais.

— Se prefere enxergar desta forma. Decidi lhe dar um voto de confiança, sua guarda pessoal está suspensa mas você está proibida de sair dos limites do reino.

— Com todo o respeito, acho que deve repensar; majestade. Sou apenas uma camponesa em um vestido bonito. Não sou uma companhia digna de sua nobreza. - ela desdenhou.

— Concordo. Mas no momento é você que está aqui.

Ele levou a taça novamente aos lábios. Elora também bebeu, como um reflexo. O vinho era mais adocicado e descia facilmente pela garganta.

A elfa tornou a encher sua taça quando trocou os pratos.

— Você disse ter suposições sobre meu patrono, mas não me disse quais eram.

— Eu já tenho certeza. - disse convencidamente.

— E vossa majestade não pretende me contar. - Elora afirmou, já sabendo sua resposta.

A menina rolou os olhos, segurando-se para não rir novamente. Era impossível a forma como ele a tirava do sério! Thranduil realmente parecia se esforçar para lhe arrancar uma resposta amarga. Como ela não queria dar este gosto à ele, tratou de comportar-se.

Elora levou novamente a taça à boca e surpreendeu-se quando viu que já estava novamente na metade. Quando bebera o vinho? A elfa encheu novamente seu copo agilmente. Ela pousou a taça, receosa.

Tinha alguma coisa errada, Elora sabia.

— Não estou me sentindo muito bem, acho melhor eu me retirar. - Elora parou de levantar-se quando Thranduil fez um movimento com a mão.

Ele falou uma palavra na língua complicada e a elfa saiu do cômodo deixando o jarro de vinho cheio entre eles sobre a mesa.

— Não sabe que é rude levantar-se da mesa antes do rei? Seu desprezo pelas regras e incontestável.

— Perdão majestade, mas são tantas que não consigo lembrar-me de todas. - ela disse sarcástica engolindo seco. De repente o cômodo parecia bem menor. Desejou que a elfa voltasse, a perspectiva dela contar à todos seus erros subitamente era melhor do que ficar sozinha com o rei.

Sua garganta ficou seca, ela bebeu um longo gole da taça mas arrependeu-se assim que pousou-a na mesa: errou por pouco a borda, quase soltando-a sobre o chão.

Thranduil cerrou um pouco os olhos ao ver o movimento.

— Regras são necessárias para criar a ordem. - ele recostou-se na cadeira. - Deve estar feliz, sua estadia em Mirkwood está chegando ao fim.

— De certo modo, sim. - ela respondeu sem pensar, as palavras saíam sozinhas de sua boca. - Posso não conhecer Lord Elrond muito bem, mas estou com saudade dele; e quero me encontrar logo com o mago istari que conheceu minha mãe. Tenho muitas perguntas para ele. Mas... no fundo tenho um pouco de medo. - Elora encarou o prato à sua frente concentrada, seus pensamentos estavam nublados mas a força dentro do peito forçando-a a falar permanecia forte.

— De que?

— Não me encaixar. Gosto daqui, - ela olhou ao redor - do jeito rústico e, atrevo-me a dizer, meio indomável de tudo e todos. Desde o brilho das quedas d'águas à tarde, até os pequenos desenhos talhados nas paredes. Tudo que sei sobre minha metade élfica, aprendi com Emel e Tauriel. E... pelo que ouvi, Rivendell é diferente em muitos aspectos. No fundo sentirei falta daqui, de Emel, Tauriel, Herenvar e até... - ela parou de falar de repente, sentindo o rosto corar mais ainda. Até suas orelhas estavam quentes.

Céus, mais um pouco e ela falaria o nome dele. Elora nunca admitiria que sentiria falta dele em sã consciência. O que estaria acontecendo? Não havia bebido tanto para perder o controle e confessar seus temores. Elora olhou para sua taça de vinho.

— Você colocou alguma coisa na minha bebida.

— É a pergunta que quer fazer?

— Não é uma pergunta.

— Inteligente. - um sorriso perigoso apareceu em seu rosto. - É um soro natural, muito utilizado para extrair a pura verdade até da mente mais fechada. Funciona muito bem em humanos.

— Não é muito nobre de sua parte. - Elora quase rosnou. Ela sabia que haveria uma armadilha.

— Devia ficar orgulhosa, a maioria não consegue perceber.

— Você realmente é inescrupuloso.

— Palavras perigosas.

— E verdadeiras.

— É tudo o que tem a dizer? - ele ajeitou-se na cadeira, chegando mais perto ao apoiar os braços na mesa.

Elora preparou-se para despejar novamente sua ira sobre o elfo. Mas olhou seu rosto sério e pálido encarando-a de volta. Ele sempre estava sério, nunca havia visto um sorriso verdadeiramente alegre nele. E Thranduil era tão bonito, seu sorriso seria igualmente perfeito. Ela lembrou-se das histórias que Herenvar lhe contou, e sentiu um pouco de pena.

— Eu... - Ela continuou encarando-o, procurando as palavras em seus pensamentos nublados. - Acho que perdeu sua fé na humanidade, por conta de tudo o que viu e fez com o passar dos anos. Se trancou aqui, em sua própria tristeza, e deixou de importar-se com o mundo lá fora. - Elora inclinou-se em sua direção. - Mas apesar de tudo, não acho que seja de todo o mau. É apenas muito antigo e mal humorado.

Thranduil mantinha o rosto rígido e impassível. Elora sustentou seu olhar até que ele deu um leve sorriso e levantou-se da mesa, acenando-lhe com a cabeça.

Quando viu-se sozinha, a menina deitou a testa na mesa. Sentia a tensão em seus ossos; estava cansada. Ficar muito tempo perto dele nunca era fácil. A elfa retornou e começou a retirar a mesa, Elora desejou-lhe boa noite e foi para o quarto.

Aparentemente o soro não prejudicou sua agilidade pois em pouco tempo já estava em sua camisola sob as cobertas macias de sua cama. Sentia a letargia do sono tomar seu corpo e nem os trovões conseguiam tirá-la de seu torpor. Elora fechou os olhos esperando a escuridão, porém viu-se em uma campina. Não havia ninguém por perto, a não ser um passarinho azul que rodeava-a piando feliz. A menina sorriu e ergueu o dedo para que o pequeno animal pousasse, no entanto ele continuava voando ao seu redor. Elora perguntou o que o ele queria, mas o passarinho continuava voando sem preocupações. Assim que ela ergueu a mão para pegá-lo, tudo ao redor apagou-se e ela caiu na escuridão.