Caitlin suspirou pela décima segunda vez e apoiou o rosto em uma das mãos, completamente entediada. Poderia comer os amendoins que Barry ganhara de brinde quando buscou o jantar deles, mas àquela altura da madrugada isso também não a interessava mais.

— Se suspirar novamente, vou te jogar para fora do carro.

O velocista comentou em tom baixo no banco do motorista, sem desviar os olhos da casa que vigiavam, metros à frente, para não perder qualquer movimentação. Ela franziu os lábios e respirou mais fundo, apenas voltando a encarar o mesmo ponto que Barry: a janela iluminada de Jean Harkness.

Ainda não sabiam como ela agia, mas tinham a teoria de que a jovem de olhos verdes e longos cabelos crespos não possuía total controle sobre os poderes ou mesmo sequer sabia como usá-los. Jean podia absorver o oxigênio que a rodeava em um raio de, ao menos, 20 metros, pelo que puderam calcular na última vez em que ela agiu.

Então, devido ao comportamento mais desesperado que suspeito da garota vinham a monitorando para entender suas intenções e como seus poderes funcionavam, pois um convite para recrutá-la para o time era uma opção. Entretanto, notaram que a garota passara a sair de casa somente à noite para evitar grandes multidões e, provavelmente, acidentes.

Por isso, lá estava Barry e Caitlin na madrugada do mês de Janeiro mais frio da história de Central City, aguardando que Harkness fizesse qualquer movimento, suspeito ou não. Não podiam simplesmente abordá-la e convidá-la para o que poderia compreender como uma seita. Seria completamente estranho e, com o passar dos anos, entenderam que o que faziam não era visto com bons olhos por todos. Apesar de boas intenções, ainda se tratavam de metahumanos, que trabalhavam à parte da lei.

— Isso seria interessante, visto que, se eu te chutasse sentiria bem mais a temperatura negativa do lado de fora.

Comentou displicentemente, aproveitando o espaço do painel do carro para apoiar os pés e cruzar as pernas, se ajeitando da maneira mais confortável quase deitada contra o banco. Se Barry se mantivesse atento como parecia, talvez pudesse cochilar. Ainda não sabiam como proceder com alguém como Jean, por isso decidiram vigá-la em duplas, que se revezavam entre si.

Apenas observou com uma sobrancelha arqueada o pequeno sorriso silencioso se repuxar o canto dos lábios dele, tão consciente quanto ela de que não era completamente imune ao frio, mas devido a Frost se tornava bem mais resistente a ele. Não havia como compartilhar os mesmos genes da outra e não o ser.

Meneou a cabeça, os dedos brincando com a toca de lã antes de suspirar novamente e bater as unhas contra a porta do carro. A própria doutora parou ao notar o comportamento ansioso, passando apenas a torcer os dedos no próprio colo. Seria mais interessante se não estivessem cansados demais do dia corrido no laboratório e na delegacia, pois assim poderia conversar sobre qualquer coisa, mas até isso parecia exigir um esforço.

— Pare. – Ele estendeu o braço e segurou suas mãos juntas, impedindo que seus dedos continuassem a demonstrar o nervosismo. – Está me deixando ansioso.

Caitlin revirou os olhos mostrando as duas mãos à Barry, indicando que pararia, e as escondeu em bolsos separados no casaco pesado também de lã negra. Ele, então, se inclinou para ligar o rádio em um volume baixo. Muitos anos antes, combinaram que seus gostos musicais não eram nada similares e, por isso, não usariam suas playlists pessoais quando estivessem juntos.

Àquela hora, tocava uma balada romântica de Bob Dylan, por isso, apenas o olhou, acompanhando o momento em que começou a distraidamente quase sussurrar, cantando baixinho. Sabia que ele detestava cantar em público ao mesmo tempo em que era uma pessoa extremamente musical, pois não fazia nada sem um fone de ouvido.

O tempo fizera bem a Barry. Os traços estavam mais marcados, como a boca mais tensa e um eterno ponto de interrogação num lugar específico da testa, mas não havia nada ao redor dos olhos e nem mesmo os cabelos castanhos mostravam pontos em branco, apesar de já conseguir enxergar um fio branco ou outro na barba que, vez ou outra, deixava crescer.

Embora tivesse o efeito da idade retardado, como ela, Barry não era o mesmo. Haviam amadurecido, passado por mais coisas do que poderiam se lembrar, vivido altos e baixos, adquirido experiência. Agora, quando olhava para trás, percebia como tomavam decisões impulsivas, sem pensar no time ou na cidade em nome de tanta emoção e adrenalina que os percorria, porque eram jovens e desejavam tudo. No pacote, recebiam junto todas as partes dolorosas, as consequências das escolhas impensadas e da falta de plano à longo prazo.

Não era possível viver sem perspectiva de futuro, um dia de cada vez, enfrentando um vilão a cada semana e deixando isso para trás. Conforme foram chegando à tal conclusão, notaram que tudo fazia parte do pacote do que iam se tornando aos poucos e, por isso, eram melhores como equipe e pessoalmente.

— Você não está cansado? – Perguntou após deixá-lo aproveitar a música, despretensiosamente desenhando algo abstrato no vidro da própria janela fechada.

— De monitorar há quatro dias uma stripper, que se autodenomina Abbey Road? Sim, absolutamente. – Caitlin sorriu brevemente.

— Não, não é disso que estou falando. Eu quero dizer... Não está cansado de tudo isso? – Ele se voltou à doutora, franzindo o cenho brevemente. – Nós vigiamos a cidade por... O quê? Vinte anos?

— Um pouco mais, sim. – Barry apoiou a cabeça contra o banco, acompanhando atentamente seu raciocínio.

— Às vezes fico pensando... Cisco está certo, não podemos fazer isso para sempre.

Afirmou em tom baixo, consciente que era um assunto delicado para ele, pois há apenas uma semana o engenheiro comunicara que passaria a viver na Terra 2 em definitivo, devido a um pedido de Jesse. O pai dela era incapaz de cuidar do S.T.A.R. Labs de lá há algum tempo e não conseguia mais conciliar a ciência, a velocidade e o fato de ter sido mãe recentemente. Além disso, fator decisivo para o amigo deles fora o fato de querer uma vida mais tranquila, sem metahumanos, sem riscos de vida, sem o dever da responsabilidade da vida de milhares de pessoas nas mãos.

— Então...? – Ele deu de ombros a incentivando a continuar, no que Caitlin o encarou em resignação. Barry sabia muito bem onde queria chegar, apenas fazia rodeios. Assim, ele apertou os lábios e suspirou em óbvia contrariedade. – Cait, é claro que penso que haverá um momento em que terei de aposentar o Flash, mas... Definitivamente, não será agora. Porque está... Porque resolveu entrar nesse assunto? Você está cansada?

Notou o tom passivo-agressivo e meneou a cabeça certa de que seria mais sábio dispensar a discussão, afinal ele estava mal humorado desde o anúncio de Cisco e ainda não haviam conversado a respeito.

— Eu não sei... Não tem a impressão que todos parecem estar buscando novos rumos, conquistando algo diferente, enquanto continuamos nesse ciclo vicioso que o Flash exige? – Terminou de maneira cautelosa. – Iris está se casando com Tony, Cisco está indo embora, Ralph já foi há muito tempo e o fato de Cecile agora fazer do time é uma mudança para ela, não para nós. Eu apenas... Esqueça, é apenas algo que... Passou pela minha mente.

Voltou sua atenção para a escuridão do subúrbio precário do lado de fora, tentando enxergar algo, ainda que começasse a nevar, acompanhando os flocos de neve imediatamente precipitarem inicialmente de forma tímida diretamente contra o para-brisa do veículo mal iluminado pelo poste há alguns metros de distância.

Em meio ao silêncio tenso dentro do carro, retomou a atenção concentrada na casa ainda iluminada de Jean Harkness, que agora aparecia na janela para, também, acompanhar o fenômeno. Contudo, no instante em que a neve começou a cair mais forte e caoticamente, ouviu a voz de Frost, avisando-a que parasse.

Às vezes, sem que pudesse impedir, coagia a outra a usar seus poderes, apesar de não se encontrar no controle de seu corpo – o que era um pouco sujo. Não descobrira como isso funcionava exatamente, mas tinha certeza que se tratava de algo relacionado ao seu emocional e, se não era Frost a ter o controle, isso significava que Caitlin precisava se acalmar ou deixar que a outra viesse à tona.

Respirou fundo, tentando controlar a sensação fria enquanto acompanhava os flocos de neve se findarem assim que encontravam a superfície do vidro do para-brisas, sentindo o peso do olhar analisador de Barry sobre suas feições.

— O que você faria? – Ele continuou mais calmo, quase receoso naquele tom que sempre a desarmava. – O que tem vontade de fazer?

— Esse é o problema, eu... Ainda preciso descobrir. – Mordeu em uma ansiedade claramente atípica. – Talvez apenas esteja em uma dessas crises de meia-idade ou... De TPM.

Ele riu brevemente, como que descartando as hipóteses, pois Caitlin não tomava qualquer decisão de maneira irracional e, de alguma forma, Barry sempre sabia quando ela estava de TPM. A convivência diária os fizera completamente conhecedores um do outro e alguma privacidade fora perdida com a intimidade, mas não se importava: gostava de receber, sem aviso prévio, chocolates ou cappuccino ou sua torta de nozes favorita nessa época.

— Ei. Me deixe saber quando isso acontecer, okay? – Barry levou uma das mãos ao seu rosto fazendo com que o olhasse, ainda que a contragosto. Os olhos dele eram persuasivos demais para que mantivesse a postura distante por muito tempo. Um dos dedos, costumeiramente mais quentes que a temperatura normal dela, segurou o lábio inferior que ela mordia, soltando-o da tensão de seus dentes. Concordou silenciosamente, notando-o olhar ao redor. – Sua tempestade de neve já está terminando.

Pelos vidros, Caitlin notou que os flocos de neve, assim como os ventos que os traziam, tinham realmente diminuído bastante, mas também percebeu, fixando os olhos no pontinho escuro e encolhido seguindo pela calçada mal iluminada vários metros à frente, que Jean Harkness havia realmente decidido sair, provavelmente motivada pelo fato de que ninguém se aventuraria a sair de casa numa noite de neve.

— Olhe, alvo em movimento.

Tirou as pernas do painel e Barry se ajeitou em seu próprio banco, aguçando os sentidos imediatamente para que passassem a segui-la à distância.