Megavi - Outras Vidas

1455 – A Ronda da Noite


St. Albans, 1455

De todas as guerras, talvez a pior seja mesmo a guerra civil. Uma peleja que coloca irmão contra irmão, vizinho contra vizinho e que faz com que antigos amigos se tenham que encarar olhos nos olhos com ódios recém-nascidos enquanto se esventram, só pode ser a pior das calamidades.

Uma guerra civil é sempre uma destruição que vem de dentro para fora, criando cicatrizes que não podem sanadas.

No início da segunda metade do século XV a Inglaterra era um país dividido em dois. Após o reinado de um rei literalmente louco, a fractura se deu dentro da família real, dividida entre duas facções rivais. Foi por conta do embate e da luta pela posse da coroa entre as casas de York e Lencastre que metade do país ardeu e que a outra metade pegou em armas para lutar.

Cada uma das casas era representada por uma rosa, de cor branca para os York e de cor vermelha para os Lencastre, mas nenhum deles tinha a delicadeza ou sensibilidade de uma flor cultivada.

Foi uma pena ninguém se ter apercebido que, para reinar, é necessário garantir que ainda exista um país e súbditos para o habitar. Continua a ser uma pena que a ganância dos homens seja cega, surda, mas não muda.

A Guerra das Rosas começou com a batalha de St. Albans, em 22 de Maio de 1455. Ricardo, Duque de York e o seu aliado Ricardo Neville, Conde de Warwick, derrotaram as tropas da casa de Lencastre, comandadas por Edmundo Beaufort, duque de Somerset, que viria a perecer na batalha.

Isso seria o que a História reteria. Dos muitos mortos e feridos na peleja e dos poucos que deles ousaram cuidar, a História se iria esquecer.

Os únicos fidalgos a abrirem a porta de sua casa para prestar auxílio perante a tragédia foram os Parker, aliados da facção York. Lord Jack Parker podia ser muito rico em termos monetários, mas era muito mais conhecido pelo seu carácter e pela sua cultura, que ficavam muitas léguas à frente de todos os outros cavaleiros da corte.

Seria engraçado como continuariam a ser os ditadores e os assassinos de milhões aqueles cuja história seria contada de geração em geração. Um homem bom como Jack Parker seria apenas lembrado por aqueles que com ele privaram de perto. Longe de querer fama, para ele isso já seria o bastante.

Os últimos anos da vida de Lord Parker tinham sido dedicados a ver crescer a sua única neta, Lady Megan, órfã de pai e de mãe depois de um naufrágio tenebroso.

Tinha sido uma ocupação que tomaria o tempo de todo um exército. A travessa Megan era maior do que a vida, correndo com tanta celeridade pelo castelo que todos os criados a achavam omnipresente.

Ora ela estava experimentando vestidos na sala de costura, ora corria pela cozinha roubando doces enquanto era seguida pelas suas aias mais ligeiras, ora já ela estava no picadeiro piscando o olho aos cavaleiros que se exercitavam.

A loira podia ter um corpo franzino, mas enchia com a sua presença um espaço maior do que todo o condado. Livre, leve e solta, era um regalo para os olhos vê-la dançar em todos os bailes, captando a atenção de toda a audiência com movimentos delicados, ainda que energéticos.

Nesta vida quase tudo se compra, mas também tudo se paga. Lady Megan seria para sempre apreciada como uma obra de arte requintada, mas encarada como uma cabecinha oca, vazia de pensamento próprio, ainda que digna de ostentar uma tiara como um modelo que se exibe num leilão.

O que é um momento final para uma vida é o momento inicial para outra.

Contrariando quem a queria catalogar como um bibelot de porcelana demasiado frágil para agir, quando a peleja estourou Megan demonstrou que era feita de mais do que só de fitas e laços de seda.

No meio daquela guerra ela se viu convertida não só na castelã do castelo Parker e da fortificação adjacente, como sobretudo na enfermeira general do número crescente de feridos que lhe entravam porta dentro.

Desde o início do conflito, Lord Parker tinha feito questão de abrir as portas do castelo a todos quantos precisassem de ajuda, sem discriminar entre cores políticas.

“Uma vida é tão preciosa quanto qualquer outra.” – fazia ele questão de explicar à neta que assentia com lágrimas nos olhos enquanto o abraçava.

Os meios eram limitados e o pessoal escasso. Apenas um médico tinha aguentado trabalhar incansavelmente dia e noite para tentar segurar à vida aqueles que dela fugiam.

Agora era ele a tentar fugir dos horrores que tinha visto. O peso da responsabilidade nos seus ombros tinha sido tão elevado, que era agora o clínico quem lutava contra a doença de loucura.

Com os olhos esbugalhados de quem não consegue dormir, ele se deixou cair na cadeira da enfermaria, friccionando com força os dedos pelos cabelos, arrancando tufos ruivos no processo.

Dr. Vander tinha feito tudo o que considerava ser certo, mas se culpabilizava sentindo que tinha falhado no processo. Agora nada mais importava.

Considerando que ser responsável não lhe tinha valido de nada, Dr. Vander caiu num riso histérico. Pudesse ele começar de novo, nunca teria aceitado aquele caminho. Para quê ser responsável e correto quando tanta gente lhe tinha morrido nas mãos sem ele os poder ajudar?

Teria sido preferível ter passado os seus dias numa embriaguez figurativa e literal, jogando tempo fora em vários nadas vazios de responsabilidade e dor. Talvez ainda estivesse a tempo de o fazer.

Ele acabou acordando dos seus devaneios quando Lady Megan deixou cair a mão no seu ombro, pronta para o substituir durante o turno da noite. Tinha sido incrível como uma aristocrata de alta estirpe como a loira, habituada a nem sequer ter que fazer a própria cama, tinha aprendido tanto sobre enfermagem e medicina num período tão curto.

O mais sábio sempre tinha sido Lord Parker quando afirmava que Megan só precisava que lhe dessem uma oportunidade. Quando a teve, ninguém conseguiu parar a loira.

– Nessa enfermaria estão quase todos estabilizados. - explicava o ruivo, pronto para ir tentar dormir para o seu quarto - O único problema que você vai ter vai ser o soldado do quarto dos fundos. Ele já não deve passar dessa noite.

Um arrepio atravessou Lady Megan de alto a baixo. Não iria ser o primeiro soldado que lhe iria morrer nas mãos. Mas aquele não era um soldado qualquer.

– Qualquer coisa me chama. - se despediu Dr Vander, controlando pelo canto do olho os doentes daquela enfermaria.

Megan fez o mesmo, mas rapidamente os seus pés tomaram a direcção do quarto dos fundos. Sendo o seu ocupante um soldado que tinha combatido pelos Lencastre e estando a enfermaria ocupada por soldados York, tinha sido uma prudência aquela separação.

A porta de madeira rangeu um pouco quando Megan entrou no quarto e, estando a vela do lampião quase no fim, restou apenas à loira afastar ainda mais a portada da janela, de modo a ser a luz da lua cheia a iluminar aquele espaço.

No catre, o doente continuava num sono agitado por uma febre que não tinha cedido com nenhum dos tratamentos administrados. A infecção inicialmente limitada à perna já se tinha alastrado demasiado.

A loira molhou uma compressa e a colocou com carinho sobre a testa do paciente que agonizava e que mais uma vez reagiu ao seu toque.

Era já o quarto dia desde que ele tinha sido levado até ali, mas Megan ainda não o tinha visto recuperar completamente a consciência. Aqui e ali, ele tinha dito algumas frases desconexas, com certeza fruto da febre alta.

– A rosa caiu e o sol foi embora…- gemeu ele com os olhos amendoados ainda fechados deixando passar algumas lágrimas.

Um soldado numa guerra quase nem tem identidade, quanto mais um nome.

Aquele tinha. Davi era um camponês nascido, criado e limitado às redondezas de St.Albans. A pobreza tem dessas coisas.

Desde que tinha saído do ventre de uma vassala, também ele se tinha tornado num vassalo de um senhor Lencastre. Uma rosa pode ter muitos nomes, mas continua sendo uma rosa.

E o menino cresceu trabalhando de sol a sol, fazendo aquilo que lhe mandavam por ser aquilo que lhe tinham dito ser certo.

Quando chegou a hora do embate entre York e Lencastre, Davi se viu com um tosco machado na mão e a indicação para matar tantos vizinhos quantos conseguisse, seguindo cegamente as ordens e o estandarte da rosa encarnada.

Numa guerra que se desenrolava corpo a corpo era impossível aos carrascos não verem a vida a fugir dos olhos das suas vítimas. As mãos de Davi ficaram manchadas por sangue inocente, mas também ele queria sobreviver àquele massacre.

Davi já nem sabia porque lutava. A guerra tem dessas coisas. Meia dúzia de homens entram em conflito por razões mais ou menos pessoais, económicas ou territoriais e não hesitam em sacrificar os seus peões como se de um inocente jogo de xadrez se tratasse. Ao ser atingido por uma flecha, Davi tinha sido abandonado caído em combate tal como um cavalo é abatido quando deixa de poder correr.

Perdido no tempo que corria contra ele, Davi teve apenas flashes de consciência enquanto era transportado nem ele sabia bem para onde.

A única coisa que ele sabia era que se sentia seguro ali, quando sentia uma mão suave afagando a sua face e um cheiro a rosas de verão lhe entrava pelas narinas sem pedir licença. A imagem difusa da figura de uma mulher loira no seu campo de visão tinha-lhe ficado gravada na mente, mas ele não tinha ainda atribuído um nome à sua salvadora.

Quando ele tinha frio, alguém colocava um cobertor de espessa lã sobre ele e o aconchegava na cama. Quando ele tinha sede, alguém lhe fazia chegar ao lábios água fresca, as mesmas mãos que lhe davam sopa quente às colheradas, soprando com um desvelo de mãe, para lhe encher o estômago vazio ou que, com uma esponja, lhe davam banho e limpavam as feridas.

Não fossem as dores insuportáveis que sentia, Davi teria experimentado um sentimento de felicidade plena apenas com aqueles desvelos.

Quando a febre subia, alguém lhe cantava ao ouvido aquilo que ele achava que eram trovas que se cantavam às crianças. Ele não tinha a certeza. A mãe dele tinha morrido antes de ele poder memorizar aquelas canções.

Era outro canto, o do cisne, o que o afligia naquele momento. Lutando para abrir os olhos, Davi se sentiu voltar ao mundo quando finalmente reconheceu a figura diante de si:

– A neta do Lorde Parker…

A enfermeira acabou sorrindo perante o reconhecimento do seu paciente:

– Megan. Tá na hora de você começar a me chamar pelo nome.

A mente dos dois fugiu ao mesmo tempo para o mesmo momento de um passado recente.

A primavera tinha chegado naquele dia. Aquele ano tinha sido anormalmente quente e os prados já estavam cobertos por grama verde e fofa, daquela que dava vontade de tirar os sapatos e enfiar os dedos dos pés.

O sol brilhava num céu azul cerúleo com uma ou outra nuvem branca que parecia algodão doce e o canto dos pássaros já se fazia ouvir.

Era a época da renovação da vida. Nos pomares das redondezas começavam a despontar as novas folhas e flores e dos casulos irrompiam borboletas coloridas.

Aliás, era um verdadeiro exército de borboletas, o que voava em círculos naquele prado enquanto Davi seguia pela estrada carregando um pesado feixe de lenha aos ombros.

O capataz bem o tinha avisado para não regressar sem aquela madeira, mas o estômago do jovem roncava. Afinal, já estava a pé desde a madrugada, trabalhando incessantemente, e ainda não lhe tinham dado sequer um naco de pão para enganar a fome.

Atrás dele, no fundo da estrada, ele viu uma charrete descontrolada que não dava sinal de abrandar. O estilo de condução e a rosa branca pintada na frente do veículo denunciavam a origem da condutora.

A loira só se podia tratar da neta de Lorde Jack Parker e as garotas que a acompanhavam as suas aias.

Davi suspirou, sem grande força para reagir. Aquela doidinha dirigia a charrete como se fosse apagar um incêndio.

Lady Megan tinha ouvido falar num campo que tinha produzido morangos antes do tempo deles e, decidindo fazer daquilo uma aventura, tinha arrastado as suas aias numa corrida para adquirir a sua fruta predilecta.

Levianamente, a loira nem se teria apercebido ter passado por cima de uma grande poça lamacenta resultando nisso quase atropelar Davi, não tivesse a charrete ficado com uma roda presa.

Hey, you. – apontou ela para Davi com a majestade de uma rainha no trono - Resolva isso. Quicky, go!

Davi se controlou para não dar uma resposta torta. Mas aquela tontinha não tinha visto que, como um boi, ele estava marcado com a rosa vermelha dos Lencastre na túnica?

Aqueles senhores eram todos iguais. Arrogantes, petulantes, egoístas. Vivendo à larga à conta da exploração dos outros. Tão cegos que nem conseguiam reconhecer os próprios criados.

– Vai demorar o dia todo, silly boy? – perguntou ela ironicamente, sentindo um arrepio com a forma como aqueles olhos escuros a encaravam.

Megan não estava habituada a que a observassem assim e aquela dignidade contida de Davi a fez sentir vergonha pelo que tinha acabado de dizer.

Aquele camponês iliterato tinha uma postura mais honrada do que a maior parte dos homens da corte e nem tinha precisado abrir a boca para o demonstrar.

Sem palavras, o pobre moço tinha conseguido dizer-lhe tudo o que estava pensando e Megan percebeu que não abonava nada a favor da figura dela.

Pela primeira vez na vida, a loira se questionou como seria viver do outro lado, sem o conforto da vida que ela levava no castelo do seu Grandpa.

Quite a revelation para se ter apenas por conta de um par de olhos castanhos numa tarde de primavera.

Não escapou a Davi os comentários que estavam a ser sussurrados em código e aos risinhos entre as aias de Lady Megan. Ele bem podia imaginar o que elas estariam dizendo.

Atirando o feixe de lenha para o prado, Davi engoliu o orgulho e empurrou sozinho a charrete, para a libertar daquela lama, acabando por cair de cabeça naquela chafurdice quando o veículo se soltou com um solavanco.

Estourou o riso entre as aias de Lady Megan. Sem sequer agradecer, a loira puxou pelas rédeas, dando sinal aos cavalos para seguirem viagem.

Davi ficou ali parado, imundo da cabeça aos pés, quando percebeu que ainda por cima tinha cometido a imbecilidade de colocar a lenha em cima de uma poça de água oculta pelo gramado. Aquela madeira estava completamente inutilizada e ele iria ser chicoteado por isso.

Megan acabou parando a charrete quando já estava fora do campo de visão de Davi. O seu coração estava apertado com uma dor que lhe era estranha. Seria aquilo a que os outros chamavam de arrependimento? Não, só podia ser mesmo culpa do modo estranho como aquele garoto a tinha encarado.

– Está tudo bem, Milady?- perguntou solicitamente uma das suas aias, colocando uma rosa branca no seu cabelo.

Retirando a rosa, Lady Megan a atirou para a estrada, onde minutos mais tarde seria encontrada por Davi.

Yes, tudo vai ficar bem. – respondeu ela pensativamente.

Eles nunca mais se tinham voltado a ver até ao momento em que, ferido, Davi foi levado para o castelo Parker e foi imediatamente reconhecido por Megan.

Quando na triagem o Dr Vander o quis colocar imediatamente de lado, o médico encontrou uma oposição veemente na senhora do castelo:

No, ele fica e vai ser tratado. Eu tomo conta dele.

Era a primeira vez que ela se responsabilizava assim por outro ser humano.

Foi à cabeceira de Davi que a loira acabou passando a maior parte do tempo nos dias seguintes. Cada pequeno sinal de melhoria do doente era motivo de esperança para a sua enfermeira. De cada vez que a doença parecia avançar, crescia também na loira a vontade de continuar lutando pelo enfermo.

Eles tinham tido apenas aquele momento, naquela tarde de primavera. Tinha sido o suficiente para mudar uma vida.

A força de um instante não se pode pesar como a um quilo de laranjas, nem medir como a um metro de um tecido fino.

Como peças de um dominó encostadas umas às outras, basta um toque para causar um efeito borboleta e deixar que da onda de caos venha a emergir a luz.

Iluminados pela mesma lua, Davi e Megan ouviam o piar do mocho que tinha pousado na janela, enquanto a loira examinava a ferida debaixo das ligaduras.

Estava completamente necrosada. Megan escondeu a desesperança sorrindo para o seu paciente desperto, enquanto recolocava as ligaduras.

Ele percebeu. Nos últimos tempos, Davi tinha visto demasiadas mortes para não entender o que Megan não lhe quis dizer por palavras.

Também ele não sabia que palavras deveria escolher para aquele momento. Palavras de agradecimento e reconhecimento pela loira, talvez. Ele achava não ter feito nada de assinalável para deixar como última mensagem ao mundo. Nunca lhe tinham ensinado as palavras certas para aquela ocasião.

Segurando o braço de Megan, o pedido de Davi acabou sendo outro:

– Solta o seu cabelo para mim, por favor.

Se ele ia morrer ali, ele queria morrer vendo o sol, vendo uma última imagem de algo verdadeiramente belo que o aconchegasse para o sono eterno.

De costas para a luz da lua que lhe entrava pela janela, Megan acedeu ao pedido. Soltando o cabelo apanhado, ela o desfez da trança e um mar de fios loiros lhe emoldurou a face que sorria.

Nenhuma lua poderia rivalizar com aquela imagem. Davi se sentia como alguém que chega a casa depois de uma longa viagem e se deixou levar por aquela sensação de paz.

Se ele pudesse voltar àquele dia de primavera, àquele verde prado agora queimado pelo calor da batalha, talvez tivesse visto Megan de uma outra forma. O que ele não teria dado por uma segunda oportunidade, mas parecia que o destino lhe tinha roubado tempo sem pedir licença. Seria assim um pedido tão exigente ter uma nova chance?

Constatando a ausência de respiração daquele bom moço, Megan fechou os seus olhos e, inclinando-se sobre ele, ela o beijou suavemente nos lábios que estavam ficando frios, aquecendo-os ilusoriamente com a vida que corria dentro de si.

Maybe another day. - suspirou a loira - Talvez a gente se volte a encontrar outra vez, silly boy.