Medo Bobo

Aquela morena - as aparências enganam


Bom, essa história começa no primeiro dia do meu último ano no ensino fundamental. Era um daqueles dias lindos de sol, porém frios. Optei por usar minha jaqueta de couro vermelha, que já esquentava o suficiente. O resto da roupa eu coloquei correndo, peguei o que vi primeiro e vesti rápido porque meu despertador tem algum problema comigo e esquece de despertar. Passei uma maquiagem básica, coloquei a mochila em um ombro e saí correndo pra não perder o ônibus.

Cheguei toda atrapalhada e entrei rápido. Um minuto mais tarde e eu teria perdido o ônibus. Todos me olhavam como se eu estivesse atrapalhando algo que estava acontecendo, como quando chego atrasada na aula e ficam me observando até me sentar. Procurei um assento vago e sentei no mais próximo que encontrei, apenas tentando desviar aqueles olhares de mim.

De todos que me olhavam, uma garota em especial me chamou atenção. Estava sentada lá no fundo. Ela não me olhava com desprezo como as outras pessoas. E ela não me olhou só naquele dia. Todo dia ela ficava me encarando do momento em que eu subia na geral até o momento em que eu descia no terminal. Sempre tentei sentar o mais longe possível dela. Era assustadora a forma com que ela me olhava. Me encarava sem medo, nem percebia que eu observava isso. Me olhava de um jeito diferente, ela parecia estar pensando em mil coisas ao me observar e aparentemente eu era o motivo desses pensamentos.

Ela tinha longos cabelos escuros como a noite e olhos castanhos como avelãs. Além disso, constantemente usava preto, ou qualquer outra cor escura. Fatos que faziam com que eu me assustasse ainda mais com ela. Digamos que, com a expressão séria, ela não parecia ser uma pessoa lá muito amigável. Mas estranhamente quando ela percebia que eu a olhava, ela abria um pequeno sorriso no canto da boca. Muito bonito por sinal.

O assento ao lado dela estava livre, eu pude reparar, mas preferi sentar ali na frente, ao lado de uma senhora que parecia muito fofa. Ainda na tentativa de desviar os olhares de mim, foi o lugar livre mais perto que encontrei. Eu achei que conseguiria ficar em paz escutando minhas músicas. Não me importaria em conversar com a senhora se fosse um assunto aceitável mas ela não me deixou escutar minhas músicas porque ficou me falando sobre o quão “vagabunda” era a sua nora. Eu não quis ser rude, então acabei sendo obrigada a ouvir. Dei graças a Deus quando chegamos ao terminal, onde eu descia para pegar o próximo ônibus que me levaria até a escola.

No dia seguinte eu consegui chegar mais cedo no ponto e até esperei por algum tempo. Vi o ônibus chegando, sinalizei e pude ver aquela mesma garota me encarando, estava com a cabeça apoiada na janela e abriu um sorriso quando me viu. Eu ficava cada vez mais assustada. Agradeci porque dessa vez a senhora estava sentada ao lado dela, dormindo. Queria ter dado essa sorte quando foi comigo. Me dirigi até o fundo do ônibus, onde encontrei um lugar vago. Minutos depois desci no terminal, como sempre.

Dali em diante, todos os dias eu subia na geral, descia no terminal, a garota continuava me encarando e a senhora incomodando algum pobre coitado que sentasse ao seu lado.

Como sempre fui muito preguiçosa, eu procurava por assentos livres e não considerava ficar em pé como opção, até porque eu estava diariamente dolorida devido aos alongamentos forçados nas aulas de ballet. Por alguns dias eu dei a sorte de sempre ter alguém sentado ao lado da garota estranha. Mas em uma segunda-feira aconteceu diferente. Haviam apenas dois lugares vagos. Ao lado da senhora, ou da garota. Tive que refletir por alguns instantes e decidir se correria o risco de ter que ouvir o quanto a nora da mulher era ruim para o filho ou se enfrentaria meu medo e sentaria ao lado da garota que me encarava diariamente. Eu já sabia que ficar ao lado da senhora era uma tortura. Nada contra idosos, amo eles, mas aquela mulher só reclamava e eu já tenho meus próprios problemas pra me preocupar. Optei por sentar com a garota e descobrir quão ruim seria. O que posso dizer é que foi estranho. Ela ficou me olhando, aparentemente tentava falar alguma coisa, puxar assunto, mas não o fazia. Saí o mais rápido que pude quando chegamos ao terminal, estava me sentindo pior a cada minuto. Acho que ela nem percebeu minha saída, ficou perdida em seus pensamentos e tentativas mal sucedidas de contato.

Na terça-feira, para a minha “sorte”, eu tive que tomar a mesma decisão. Senhora ou garota. Ainda tinha uma terceira opção. Ficar em pé e não precisar lidar com nenhuma das duas. Foi a que eu escolhi, bem melhor e muito menos estranho. Parei perto da porta e fiquei ali até chegar no terminal e descer novamente. Como em todos os outros dias, eu tive aulas de ballet durante à tarde. Mas dessa vez, durante o ensaio, meu parceiro de dança me deixou cair no chão em um dos saltos e eu acabei tendo que ir para o hospital. Passei o resto do dia lá pra descobrir que rompi o tendão. Saí do local quando já era tarde, então na quarta-feira tive que achar muletas e uma daquelas botas pretas, era isso ou gesso. Ainda fui na ótica pra mandar fazer uma nova armação para meus óculos, já que a minha quebrou na queda. Acabei tendo que faltar na aula.

Na quinta-feira eu já tinha as muletas e a bota. Fui com a armação dos óculos remendada porque a nova só ficou pronta depois de algumas semanas. Precisei acordar mais cedo porque dava muito mais trabalho pra me arrumar usando aquela porcaria e andar também era difícil. Saí bem mais cedo do que normalmente, fui para o ponto e pouco tempo tempo depois o ônibus chegou. O garoto ao meu lado fez a gentileza de sinalizar pra mim. Entrei com dificuldade, mas dei meu jeito. Procurei por algum lugar vazio e não encontrei. Ninguém pareceu se importar muito com minhas condições. Apenas aquela garota, que foi muito gentil cedendo seu lugar pra mim e me ajudando com os materiais e muletas. Eu não esperava por isso, mas ela era muito querida. Passou a fazer isso todos os dias, durante todo o tempo em que usei aquilo, sempre com boa vontade e um sorriso estampado no rosto. Ainda me ajudava a descer do ônibus no terminal. Eu ficava muito grata, mas só conseguia agradecer com um sorriso tímido. Assim como no dia em que me sentei ao seu lado, ela parecia tentar falar alguma coisa, puxar assunto, mas continuava não fazendo. Apenas ficava me olhando com os pensamentos longe.

Eu parei de me assustar com isso e resolvi apenas agradecer por ter alguém que me ajudasse. Era muito difícil ter que carregar tudo sozinha quando eu voltava para casa e ela não estava lá. Nessas horas eu passei a dar valor à bondade e boa vontade dela, que aparentemente fazia tudo isso sem motivo algum, apenas por ser uma boa pessoa que enxerga o problema dos outros e ajuda como pode.

Em uma quarta-feira, estava chovendo muito e fazia frio também, eu me atrasei e acabei esquecendo de colocar o casaco. Estava usando apenas a blusa de uniforme da escola. Fui até o ponto o mais rápido que pude e consegui chegar a tempo. Subi com certa dificuldade porque estava tudo muito escorregadio. Como sempre, ela me ajudou. A garota usava um sobretudo de lã batida preto. Admito que fiquei com inveja daquele casaco. Além de lindo, era quentinho. Depois de me sentar, eu comecei e tentar esquentar meus braços, passando as mãos rápido por eles. Ela percebeu e me ofereceu seu casaco. Eu queria muito aceitar, mas por educação recusei. Não poderia deixá-la com frio. Ela já era gentil demais comigo. Bom, recusei de início. Porque ela me lançou um olhar amedrontador que decidi não ignorar. Aceitei na tentativa de fazer com que ela parasse de me olhar daquele jeito. Ela parou. Quando cheguei no terminal eu acabei esquecendo de entregar o casaco à ela. Foi até melhor. Assim eu levei pra casa, lavei e pude devolver limpo para a dona.

Na quinta-feira eu fui preparada para lhe entregar de volta o casaco e agradecer pela gentileza. Mas ela não apareceu. Na sexta-feira eu fiz o mesmo. Levei o casaco na intenção de devolvê-lo para sua dona e novamente ela não apareceu. Fiquei preocupada e acabei não relaxando muito no fim de semana. Apenas pensava no que teria acontecido para que ela não comparecesse, ela sempre estava lá.

Na segunda-feira eu fui no médico no horário da aula, então obviamente não encontrei com a moça. Finalmente recebi a notícia de que não precisava mais usar aquela bota que ultimamente só servia para me incomodar. Junto com ela, as muletas se foram também. A nova armação dos meus óculos também já tinha chegado e eu estava completamente inteira de novo.

Nesses cinco dias que não a vi, um sentimento estranho tomou conta de mim. Eu tinha um certo medo de que ela nunca mais fosse aparecer. E se eu nunca mais visse aquela garota? Não sabia o porquê, mas essa possibilidade me assustava, e muito. Eu que não fui na segunda-feira, mas nada me garantia se ela tinha ido ou não. Isso me assustava demais.

Na terça-feira eu pude voltar a acordar um pouco mais tarde, ou no horário normal, já que agora eu não tinha mais aqueles empecilhos estúpidos. Dessa vez eu não esqueci minha jaqueta vermelha. Caminhei até o ponto na esperança de subir no ônibus e encontrá-la lá. Levei o casaco.

Não pude evitar de abrir um enorme sorriso na cara quando vi que ela estava lá sentada e sozinha. Com o casaco em mãos, segui em sua direção. Parecia que a felicidade corria em minhas veias. Lhe entreguei o sobretudo assim que me sentei ao seu lado.

Nunca tínhamos trocado muitas palavras. Apenas frases curtas, objetivas e agradecimentos. Então decidi que, já que ela aparentemente não conseguia, eu iniciaria nossa primeira conversa “normal”. Comecei com um inevitável “Oi” animado e continuei com:

— Muito obrigada por me emprestar seu casaco, você não sabe o como me ajudou - ela pareceu surpresa - eu lavei pra você, estava encharcado e todo sujo. Obrigada mesmo! - ela abriu um lindo sorriso, imagino que foi porque eu fiz o que ela tentava fazer há muito tempo

— Por nada, foi um prazer! - ela sorriu

— Eu trouxe na sexta-feira, mas assim como na quinta, você não apareceu. Por que não apareceu?

— Eu peguei um resfriado

— Ah meu Deus! Me desculpa, você me deu seu casaco e ficou sem nada - como fui estúpida e egoísta

— Não me agradeça. Fico feliz em ter evitado que você adoecesse.

— E então adoeceu para que isso não acontecesse comigo? Quem faz isso? - realmente, ela foi muito gentil

— Ué, eu faço.

— Eu nem sei seu nome, você nem sabe meu nome. Mas mesmo assim, você me ajudou todos os dias e ainda se “sacrificou” por mim. Eu não sei porque você fez isso, mas obrigada, muito obrigada - fez-se um silêncio enquanto ela sorria pra mim - a propósito, meu nome é Emma, Emma Swan - eu comecei a estranhar a demora dela pra responder. Parecia estar perdida em seus pensamentos quando eu a chamei para a realidade - ei!

— Oi? - falou confusa

— E você, qual seu nome? - perguntei entusiasmada

— Ah sim, desculpa - sorri tímida, imaginando no que ela estava pensando e podem me chamar de louca, mas acho que era em mim. - É um prazer Emma, que nome lindo o seu! - sorri novamente, imagino que minhas bochechas coraram nessa hora. Eu pude sentir quão quentes elas estavam - Regina Mills. Meu nome é Regina Mills - ela disse confiante e eu me peguei pensando no quão lindo era aquele nome. Logo depois imaginando porque meus pensamentos sobre ela tinham mudado tanto e porque agora ela parecia ser alguém tão importante pra mim. Não consegui responder, apenas sorri.

A garota que antes me dava medo, agora me trazia alegria. Estar ao seu lado bastava. Assim a gente percebe como as primeiras impressões são ruins. Não me lembro de quantas vezes estive certa nas primeiras impressões que tive de todos aqueles que conheci no decorrer da vida. Acredito que não me lembro porque aconteceram poucas vezes, talvez até nenhuma, porque não consigo nem citar um acontecimento específico para exemplificar.

Ela começou a me ajudar e a me mostrar quem realmente era. Eu tomei a iniciativa de tentar puxar algum assunto que viesse a ser uma conversa e quando eu fiz isso, eu percebi que ela era muito diferente do que eu imaginava, que ela era uma pessoa boa.

Então, foi o fim daquele medo bobo.