Me Procure Quando Precisar

Amiga para todas as horas


“O Doutor é o porto seguro de muita gente, mas quem poderia ser o dele?

Em um dia inesperado, Belle escolheu assumir esse papel...”

Acordei animada aquela manhã. Sai correndo pelos corredores e adentrei na sala de controles da TARDIS, abraçando um Doutor pego de surpresa. Ele era alto, moreno, de cabelos compridos sob os ombros. Com essa aparência, às vezes eu brincava dizendo que se parecia com aqueles bustos de Beethoven.

Digo "com essa aparência", porque eu sei sobre as regenerações do Doutor. Nunca presenciei uma, mas sei que acontecem e porquê. No fim das contas, eram tantos rostos já que o Doutor às vezes se referia a eles como números. Seguindo esse raciocínio, o meu Doutor atual equivalia ao Oitavo.

—Eeei! O que foi isso Bell?-me perguntou, quando me joguei sobre ele.

—Só vim dizer BOM DIA CAPITÃO! -brinquei. -Dormiu bem?

—Como um anjinho.

—Mentiroso. Você nem pregou os olhos que eu sei! Ouvi você fazendo bagunça tarde da noite.

—Ah, droga, você me pegou. -ele sorriu de uma forma descontraída, passando o braço em volta de mim. -O que é preciso fazer para conseguir te passar a perna?

—Hum... -fingi pensar no assunto. -Acho que paredes a prova de som seria um bom começo.

Ele riu.

—Vou providenciar. -e caminhou para o outro lado do painel, mais uma vez concentrado em sua tarefa... seja lá qual for.

—O que você está fazendo?

—Estou canalizando uma pequena parcela da energia da TARDIS para tentar fazer a torradeira elétrica voltar a funcionar.

—Nossa. E isso não é perigoso?

—Não. É apenas prático. Vamos, fique aí e observe, você chegou bem na hora do teste! -ao ouvir isso, já me posicionei de forma que não pudesse ser atingida por estilhaços, caso o pior acontecesse. Bem... era uma possibilidade.

Colocando um par de luvas para isolar as mãos, o Doutor conectou uma primeira presilha (ligada por um fio), na torradeira e por último conectou a presilha que sobrou no painel de controles. Não deu nem tempo de piscar. Instantaneamente, uma explosão se seguiu, causando fumaça e nos fazendo tossir.

—Incrível. Você está realmente se superando -brinquei, enquanto ele abanava o ar com as mãos, afastando a fumaça.

—Droga. Vou ligar os exaustores. -o Doutor apertou um botão, mas nada ocorreu. Percebi que ele ficou meio embaraçado com isso. -Ok. Eu já volto. Espere aqui e não toque em nada... Ou as coisas podem ficar potencialmente caóticas!

Ele se retirou da sala de controles, me deixando sozinha.

—"Não toque em nada", essa é boa. Até parece que eu ia tocar em alguma coisa... -então parei, quando subitamente uma tela se acendeu sozinha. -Ué... eu não fiz isso. -olhei de um lado para o outro, depois voltei minha atenção de novo para a tela. O conteúdo parecia ser um arquivo recém acessado, como uma guia de Internet que fica aberta e ao mesmo tempo minimizada, oculta por trás de um descanso de tela ou qualquer outra coisa desimportante. Naquele instante, a coisa parece que saltou para a tela inicial, chamando minha atenção.

—O que é isso? -acabei não me contendo e acessei o que quer que fosse. -Oh meu Deus. -sim. Era uma seqüência de registros de antigas companheiras. Eu sabia que nunca fui a primeira, mas WOU. Haviam tantas...

O pior era que eu sabia que algum dia nosso tempinho juntos de curtição acabaria. Algum dia, o Doutor iria embora e eu teria que seguir sem ele.

Isso era possivelmente a maior verdade sobre ele e ao mesmo tempo a mais dolorosa.

Observando a tela com atenção, me peguei refletindo. Só havia uma forma de evitar que o Doutor algum dia me dispensasse...

***

—Bom, e acabou o tour -disse sorridente ao sairmos pela porta. Eu havia acabado de mostrar minha casa para ele. Eu morava sozinha, e ele sabia disso, mas no tempo todo em que nos conhecemos, ele nunca havia entrado para conhecer o ambiente. -O que achou da minha casa, Doutor?

—É incrivelmente agradável. Eu particularmente curti a vibe -sorriu pra mim.

—Que bom -assenti, me encostando no batente.

—Então, vamos? Pronta pra mais uma aventura na TARDIS? -ele estendeu a mão, certo de que aquilo apenas tinha sido uma pausa casual. Porém, eu não segurei sua mão. -O que foi Belle? Está tudo bem?

—Sim. Está. É só que...

—Vamos. Você sabe que pode me contar qualquer coisa.

Suspirei.

—Eu decidi parar, Doutor. Parar com as viagens.

Ele me encarou, surpreso.

—É sério?

—Sim. Acho que já deu o que tinha que dar. Foi maravilhoso e eu amei cada segundo, mas não podemos negar que esse momento chegaria cedo ou tarde. Por que não hoje então?

Ele escutou com atenção e assentiu ao fim de minha explicação.

—Tudo bem. Se é isso que deseja.

Eu sorri.

—É sim.

—Bom... -houve uma pequena pausa. -Então... acho que isso é um adeus -ele me olhou, um pouco instável.

Para sua surpresa, neguei com a cabeça.

—Não. Definitivamente não é um adeus.

Ele me encarou, agora traços de confusão dando as caras em seu semblante.

—Mas... você não disse que não quer mais viajar ?

—Eu disse. Mas não significa que não vou querer mais vê-lo.

Um novo tom de confusão o consumiu. Ele provavelmente ia dizer alguma coisa, mas eu acabei falando primeiro:

—Você e eu seguiremos caminhos diferentes de agora em diante. Contudo, quando alguma coisa der errado, quando precisar de uma segunda opinião sobre algo, quando estiver sozinho, precisando conversar com alguém, ou quando simplesmente quiser ouvir uma palavra amiga... você virá me procurar. E eu estarei aqui para o que precisar -falando isso, abri sua mão e entreguei a ele um papel dobrado. Ele não deu muita atenção para o papel a princípio, pois tinha os olhos brilhantes cravados em mim. Respirando fundo, lancei um último sorriso para ele e entrei, fechando a porta.

Ao fazer isso, encostei minhas costas na parte interna da porta, enfim deixando as lágrimas rolarem.

Eu não sabia se meu plano funcionaria. Nem mesmo sabia se o Doutor iria me procurar no futuro... Só podia esperar agora que o melhor se sucedesse.

Do outro lado da porta, o Doutor leu o bilhete.

"Me procure quando precisar.

Você sabe o endereço décor."

***

Passaram-se meses desde então. E de repente, já fazia um ano desde minha conversa com o Doutor na porta de entrada.

Em mais um dia comum de minha vida, eu havia levantado e começado a fazer o café. Tinha colocado música como de costume. Aquela manhã íamos de ABBA e Queen, juntos e misturados.

Mais ou menos entre "Bicycle Race" terminar e o começo de “Mamma Mia”, a campainha tocou. Eu ajeitei meu cabelo e fui atender.

Quando abri a porta, lá estava um homem alto, com pouco cabelo, olhos azuis, nariz e orelhas relativamente avantajados e uma jaqueta de couro bem maneira. Olhei para ele por alguns segundos, então perguntei com meu melhor sorriso:

—Olá, posso ajudá-lo?

—Você pode, Bell. Na verdade, seria muito bem vindo agora. -e sorriu pra mim. De alguma forma, aquele sorriso me soou familiar.

—Desculpe, eu te conheço de algum lugar, não conheço? Devo conhecer, pois você sabe até meu nome...

Ele sorriu ainda mais.

—Belle, sou eu. O Doutor.

Meu queixo quase caiu.

—AAAH! MEU DEUS! DOUTOR! VOCÊ VOLTOU! EU SABIA QUE VOLTARIA! -o abracei forte, então me recompus, colocando uma mecha atrás da orelha, tentando não soar uma doida varrida. -Hum... De alguma forma eu sempre soube.

Ele segurou meus ombros.

—Me serve um café, suco de laranja, qualquer coisa?

—É pra já! –sorri, já o puxando para dentro.

(...)

—Francamente -comentei enquanto servia cappuccino para ele. -Você é doido de não ter pedido ajuda durante a Guerra do Tempo! Se eu fosse você, teria arrumado um exército próprio ou igualmente... -então parei, pois percebi que ele estava triste. -Ai minha nossa... eu te magoei. Fui cruel, né? Muitas pessoas devem ter morrido e eu aqui falando besteira...

—Todos morreram -ele disse de repente, me deixando estarrecida.

—Não... espera, como assim todos? Você está aqui... deve ter sobrevivido mais alguém.

—Não sobreviveu. -ele negou, sem me olhar nos olhos. -Bell, meu povo se foi. Você é a primeira que eu visito desde que a guerra acabou. Durante esse período, eu estive o tempo todo em Gallifrey, lutando, resistindo... e no final... acabei tendo que tomar uma decisão horrível. Definitivamente a pior de todas. -seus olhos estavam cheio de lágrimas agora.

Não consegui me conter. Afastei a cadeira e corri até ele, abraçando-o.

Aquele não foi um dia fácil. Conversamos muito e eu o fiz entender que, apesar de sua perda, ele não poderia se punir para sempre sobre isso.

No final, nos despedimos e ele partiu, me prometendo continuar sendo o Doutor, e seguir em frente do jeito que fosse possível.

***

Meses se passaram depois do nosso último encontro.

Era uma tarde agradável de setembro e eu havia tirado o dia para fazer um delicioso pudim com cobertura de claras em neve e gelatina de morango (sim isso é comestível e existe).

Estava na fase final do doce, curtindo meu CD do Kid Abelha, quando simultaneamente a campainha tocou.

—Já vai! -avisei, limpando as mãos no avental e correndo até a porta.

Ao abri-la, me deparei com um homem alto, moreno, de cabelo bagunçado, olhos castanhos, costeletas, terno, gravata e tênis juvenis.

—E aí? -ele disse, sorrindo pra mim com as mãos nos bolsos. -Como vai a vida, “BeBell”?

—Hã... vai indo -sorri, enrubescendo um pouco. CACETA QUE HOMEM LINDO. -Desculpa, mas eu te conheço? Tomara que sim... porque aí você pode ficar mais um pouco -acrescentei sem me dar conta de que possivelmente estava babando.

—Ah, me desculpa! Eu sou tão distraído... é que eu me regenerei. Sou a versão nova do cara das orelhas. –brincou, apontando para si próprio.

—DOUTOR! -levei as mãos ao rosto. -Meu Deus do céu, você tá um gato! -exclamei espontânea, deixando-o levemente sem jeito. Meu alvoroço foi tamanho que bati o pé, desengonçada, num vaso perto da porta e quase escorreguei.

—Calma Bell, não desmaia não Hein? Eu sou bonito, mas não é pra tanto -ele fez uma acrobacia para me segurar. Eu acabei rindo da situação.

—Ai desculpa... Que vergonha. Parece até que me joguei propositadamente em cima de você...

Ele ergueu uma sobrancelha.

—Não se entregue com tanta facilidade. Assim perde a graça.

—Ei! -dei um tapinha descontraído em seu braço. Ele sorriu pra mim e aproveitamos a proximidade para nos abraçar.

(...)

Nooossa um pudim com cobertura de claras em neve e gelatina de morango! -me encarou. -Eu ADORO esse doce. Você vai ter que me dar a receita.

—Ah, nem por cima do meu cadáver -retruquei.

—Ah, por favor, não seja cruel. Eu gostaria de fazer um pudim desses qualquer dia na TARDIS...

—É, e explodir o fogão junto seria bem conveniente –provoquei, entregando um pirex de vidro com pudim para ele e convidando-o a se sentar comigo na mesa.

—Hummm. Nossa, isso está divino. –ele disse provando meu pudim, então apontou a colher para mim. –Se você não me der a receita eu vou tomá-la a força.

—Gostaria de ver você tentar, magrelo. –dei risada. Ele me encarou.

—Você continua abusada né?

—E você continua espaçoso... Quem foi que falou que podia colocar seus tênis fedorentos na minha mesa arrumadinha?

—Fedorentos? Cê cheirou eles por acaso?

—E você cheirou? –devolvi a pergunta. Ele semi-cerrou os olhos pra mim.

—Garota chata –resmungou, tirando os pés da mesa. –A mesma chatonilda de sempre.

—O mesmo convencido de sempre –rebati.

Nos entreolhamos, então, comemos mais pudim.

—E falando em garota... Posso saber quem você tá tentando impressionar? –perguntei com um sorriso torto no rosto. O Doutor quase engasgou.

—Impressionar? Como assim?

—Ah, pára. Você tá todo arrumadinho, aposto que até escolheu esse rosto com cuidado na hora de regenerar, pra ficar bonitão pra alguém –ele ergueu as sobrancelhas grossas pra mim. –Vamos, pode me contar. Eu sou ou não sou seu porto seguro?

O Doutor comeu mais um pouco de doce.

—Tá legal. Tem essa garota... –um sorriso se abriu em seus lábios durante a menção, e ele rapidamente procurou refúgio no prato do pudim, fingindo ser a coisa mais interessante no ambiente. –O nome dela é Rose Tyler.

—Hummm... Nome legal. –encorajei-o. –E como ela é?

—A Rose é uma mistura de rosa e amarelo... e também tem um pouco de castanho, por causa dos olhos.

—Poxa, nunca vi descreverem melhor uma mulher –brinquei, fazendo-o rir. –E ela é bonita?

—Bem... –ele começou, mas então parou. –Bom, senhoras e senhores, comunico-lhes que a história acabou.

—O QUE? Mas mal havia começado! –protestei indignada. –Ah, qual é? Me conta maaais...

—Sem chance. Pudim é meu combustível. Sem pudim, sem história. –ele me encarou, dando um peteleco no pirex de vidro. Quando me dei conta do que ele estava fazendo, levantei, levando as mãos nos quadris.

—Nossa, como você é espertinho né? –dei risada, apanhando seu pirex.

—Eu? Eu sou um doce de pessoa.

—Sei. Você é um viciado em doce, isso sim! –estendi-lhe o pirex novamente, cheio de pudim.

—Quer que eu continue a história ou não?

—Por favor. –tornei a me sentar.

—Bom, onde eu tinha parado?

—Você não me respondeu se ela é bonita.

—Ela?

—A sua namoradinha.

O Doutor quase engasgou de novo. Assim que voltou a me encarar, deparou-se com a minha cara de danada profissional.

—Que é? Por que tá me olhando assim?

—Por que você tá apaixonado —anunciei. –Awwwn!! Tá sim! Tão xonadinhooo!

—Ah, pára. –ele corou um bocado. Eu corri até ele e o abracei por trás do encosto da cadeira. Num ato ousado, ele ergueu a colher e sujou meu nariz de pudim, ao que eu retribui sujando-o também. Nós dois rimos sem parar depois disso. Nossa conversa então se estendeu até escurecer. Lá pelas dez horas, ele foi embora.

***

Já fazia quase dois anos que eu não o via. O Doutor. Ele sumiu depois de nosso último encontro com pudim. Já fazia algum tempo que eu me arrependera de não ter-lhe dado a receita; Espero que no fim, tenha dado tudo certo com a tal de Rose Tyler.

Eu já estava preparada para ir dormir, quando inesperadamente a campainha tocou. Corri descalça mesmo para a sala de estar e atendi a porta, de pijama e tudo.

E lá estava ele. O mesmo homem do dia do pudim, só que não mais tão animado quanto naquele dia. Na verdade... parecia estar sentindo dor.

—Doutor? –arfei. –O que aconteceu? Você está machucado?

—Bell... –ele arfou, caindo e desmaiando em minha frente.

—DOUTOR! –corri para ajudá-lo.

***

—Shhhh Calma... –o Doutor estava deitado em meu sofá, num estado quase que delirante, mas ao mesmo tempo choroso. –Ei... Consegue olhar pra mim? –pedi com jeitinho, já que ele parecia não querer tirar os olhos do teto. Porém, quando lhe pedi, ele respirou fundo e olhou pra mim. Abri um sorriso para ele, ao mesmo tempo que colocava um pano úmido em sua testa. –Muito bem, garoto. É bom saber que está consciente. Agora... se sente confortável para me contar o que aconteceu? Não estou te forçando, só gostaria de saber como posso te ajudar...

—Ninguém. Ninguém pode me ajudar –ele fungou.

—Por que está dizendo isso? Você me procurou. Obviamente está com problemas. E eu estou aqui. Farei tudo que estiver ao meu alcance para te ajudar.

—Eu... sinto tanto –ele tocou meu braço. Imediatamente, lágrimas escorreram por seu rosto.

—Do que está falando? –eu segurei sua mão.

—Eu te abandonei. Eu disse que voltaria, mas descumpri a promessa. Eu... eu tentei me convencer de que não precisava voltar. De que não precisava mais te encher com as minhas besteiras... Mas as coisas não aconteceram como eu esperava –soluçou. Eu comecei a secar as lágrimas dele com meu polegar.

—Não precisa se desculpar. Você tem sua vida e eu tenho a minha. Nós concordamos que não havia problema de demorarmos a nos ver...

O Doutor cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar sem freio. Meu coração se partiu diante daquela cena.

—Ei... não... por favor, não chore –retirei o pano úmido de sua testa e dei-lhe um beijo, puxando-o então para mim, em um abraço improvisado. –Por favor.

Quando nos separamos, ele parecia inconsolável.

—Bell, eu a perdi –soluçou, entrelaçando os dedos em minha mão. –Eu perdi a Rose. Deixei que ela ficasse presa em uma realidade paralela... Não consegui impedir... eu...

—Shhh... Calma –sussurrei, cobrindo-o com uma manta. Ele estava com febre. Ou pelo menos estava muito quente. –Tente ficar calmo, está bem? Sofrer assim não ajudará...

—Mas não foi só ela... Martha Jones. Eu a fiz sofrer também com um amor não correspondido. Eu devia ter vindo conversar com você antes quando perdi a Rose, mas fiquei tão triste, tão revoltado, que não tive cara para aparecer aqui assim...

—Doutor... –acariciei seus cabelos. –Fique calmo. Você está aqui agora. Isso é o que importa.

—E teve a Donna... eu tive que apagar suas memórias sobre mim e as aventuras que tivemos. Baguncei o mundo dela e depois tirei tudo o que ela mais amava. Isso foi injusto, eu sei, mas tinha que ser feito... E a Jenny... minha filha Jenny, criada por uma máquina através de extração de DNA... Ela também se foi –chorou magoado.

—Vem aqui, você tá precisando de colo –falei, decidida, sentando-me no sofá, de modo que ele se encostou em mim e eu o envolvi com meus braços. Senti que ele precisava daquele contato. Ele tinha passado por muita coisa. –Prontinho. Você vai ficar melhor agora. –garanti, tornando a cobri-lo com a manta.

—Me perdoa por ter sido um amigo horrível. Me perdoa...

—É claro que eu te perdôo. E você não é horrível. Você é o melhor amigo que eu tenho. –reforcei, dando-lhe consolo e carinho. O Doutor silenciou por alguns instantes, ao menos diminuiu o ritmo do choro, mas então ele gemeu de leve, projetando o corpo ligeiramente para frente, num espasmo inesperado. Quando olhei seu rosto de novo, ele estava contorcido em uma expressão de dor.

—Ei... o que foi? –perguntei, reparando que ele tinha as mãos apertando o estômago. –Você está com dor? É aqui que está doendo?

—Não é só dor... –ele arfou, a cabeça apoiada contra meu peito. –Bell, eu vou me regenerar de novo.

—O que? Mas... não pode! Quero dizer... Por que? O que aconteceu?

—Não importa. Só... me ajude. Por favor. Fica comigo, Bell. –lágrimas desenfreadas começaram a escorrer de seus olhos. –Por favor... Eu... eu não quero ir... –soluçou, ofegante. Ele estava assustado, triste e com dor. É claro que eu não o deixaria sozinho naquele estado, nem em um milhão de anos.

—Pode contar comigo, tá? Eu vou ficar com você –Beijei seu rosto, segurando firme suas mãos. –Você não vai ter que enfrentar isso sozinho. Não se depender de mim.

***

Ia ser uma noite longa. Em algumas vezes, permanecemos em silêncio, apenas abraçados; em outras, isso não era suficiente, pois as dores do Doutor pareciam aumentar de intensidade, só para atormentá-lo.

Em uma dessas situações, eu comecei a cantar, para tentar acalmá-lo.

—“Eu tava triste, Tristinho! Mais sem graça que a top-model magrela na passarela / Eu tava só, Sozinho! Mais solitário que um paulistano, que um canastrão na hora que cai o pano / Tava mais bobo que banda de rock, que um palhaço do circo Vostok...” –cantarolei baixinho. – “Mas ontem eu recebi um Telegrama... Era você de Aracaju ou do Alabama...”

—Que canção maluca é essa? –ele perguntou, me encarando. Por mais que estivesse sofrendo, eu pude vê-lo se esforçar para dar um sorrisinho.

—É só uma música que eu conheço. Está gostando?

—É, até que parece boa.

—Quer que eu continue? –ele assentiu pra mim, fechando os olhos. Eu então sorri e continuei a distraí-lo como podia.

***

O Doutor mudou durante a noite. Nós dois já estávamos dormindo quando aconteceu. Acho que o Doutor nunca teve uma regeneração mais tranqüila. Eu dei a ele todo o suporte de que ele precisava, e ele ficou bem no final.

Quando aconteceu, eu acordei, com o brilho da energia regenerativa refletindo em meu rosto, e por isso, acabei presenciando o processo finalizar. Ele agora tinha um rosto diferente: continuava moreno, porém, tinha muito mais cabelo. Estava dormindo, portanto eu não podia ver seus olhos, mas imaginava que fossem bonitos e intensos como sempre. Ele também tinha um queixo um pouco mais avantajado, mas que o deixava com um certo charme, na minha opinião. Como eu disse, um rosto diferente, mas ainda o mesmo homem. O meu Doutor.

Com lágrimas nos olhos, dei um beijo em sua testa.

—Durma bem, Doutor.

***

O sol já tinha nascido quando deixei o Doutor dormindo tranqüilamente no sofá e fui para a cozinha, fazer o café. Liguei o rádio bem baixinho enquanto adiantava as coisas. Porém, pouco depois de ter preparado as torradas, fui surpreendida pelo inconfundível som da TARDIS decolando.

Corri desesperadamente para a sala, onde encontrei a manta caída no chão e a porta aberta. Senti como se o mundo estivesse desacelerando ao meu redor. Devagar, me abaixei e apanhei a manta. Abraçando-a contra o peito, observei o ambiente externo através da porta aberta: não havia sinal da TARDIS e nem do Doutor.

Ele se fora, sem nem se despedir.

***

Atualmente, praticamente dois anos depois disso, é onde eu me encontro agora. Hoje é uma tarde quente de quarta feira e eu estou me sentindo um caco, graças a um telefonema revoltante, onde levei um pé na bunda do meu namorado. O idiota me trocou por uma vadia com seios grandes, dá pra acreditar?

—QUE ÓDIOOOO! ARRRR! –arremessei coisas pelos ares. –SERÁ QUE NUNCA VOU CONSEGUIR ARRUMAR UM NAMORADO DESCENTE?? INFERNO! –praguejei, pegando o rádio para arremessá-lo também, mas então parei no ato e refleti. Ao invés de destruí-lo no impulso, coloquei minha playlist e dei play na música IDGAF da Dua Lipa.

Já estava me acabando de cantar, mandando meu ex para o quinto dos Infernos, quando a campainha tocou. Meu rosto devia estar irreconhecível de tanto que chorei aquela manhã. A maquiagem provavelmente estava borrada, deixando meus olhos parecendo os de um panda. O cabelo estava desarrumado e minhas roupas não eram as mais apresentáveis. Eu usava uma blusa larga que deixava aparecendo a alça do sutiã e um shorts curto, sem contar os chinelos de dedo no pé. Porém, mesmo assim abri a porta, não sei o que estava pensando.

Well, Boy, I don’t give a FUCK!—cantei, botando toda a minha mágoa e ódio na performance, então me deparei com a cara surpresa de um Doutor. O mesmo Doutor que anos atrás estava gemendo e chorando no meu sofá. Digo, a versão regenerada daquele Doutor. Praticamente o queixudo de topete e –agora era possível vê-los –olhos verdes. E uma roupa completamente ridícula: pra começar, gravata borboleta, suspensórios, camisa, casaco teed com cotoveleiras, calça justa, e pra concluir, uma bota. Pensando bem, nós dois estávamos ridículos.

Por uma fração de segundos, nos encaramos sem dizer nada (possivelmente, ele se recuperava do susto de me encontrar naquele estado, enquanto eu tentava recuperar minha dignidade –ou no caso só o que sobrara dela).

—Hã... Tudo bem, Bell? –ele perguntou, bestamente.

Eu continuei parada, encarando-o.

—O. Que. Você. Faz. Aqui? –fui pontuando cada palavra; meus olhos soltando faíscas.

—Eu vim te visitar. Não é isso que os amigos fazem?

—Amigos? AMIGOS SOMEM DE MANHÃ SEM NEM SE DESPEDIR, DEPOIS DE UMA NOITE DESGASTANTE E PSICOLOGICAMENTE EXAUSTIVA!? –bati nele. Sim, eu estava furiosa por muitos motivos naquela tarde de quarta feira.

—AU! AI! –ele se encolheu, esfregando o braço depois que me afastei. -Tá legal... Eu estava confuso na época. Me desculpe. Fui um idiota e mereci isso.

Merecia coisa muito pior!—vociferei, batendo a porta na cara dele. O Doutor ficou parado lá por alguns instantes. Tornei a abri-la, agressivamente. –Como é, não vai entrar?

—Você bateu a porta na minha cara...

—“Você bateu a porta na minha cara”—repeti com uma voz de falsete. –Ah, fala sério! Você é um homem ou o que? Se quer me ver, arrombe a porta! Arranque ela do lugar! Destrua as dobradiças! Não é possível que todos os homens tem que ser uns imbecis...

—Desculpe, não estou entendendo... Você quer que eu tire sua porta do lugar, é isso?

O encarei com incredulidade, então bufei e dei-lhe as costas, voltando ao interior da casa. Dessa vez a porta ficou aberta e o Doutor, após mexer as mãos de modo inquieto, esperou uns três segundos do lado de fora, antes de entrar e me seguir.

—Uau. Você redecorou? –sorriu, observando algumas coisas que estavam jogadas pelo chão, provavelmente imaginando que estavam lá de propósito. –Eu gostei do que você fez com esse lugar... parece mais desorganizado do que nunca! Finalmente você tomou jeito Belle!

Me atirei no sofá, olhando pra cima.

O Doutor rapidamente se juntou a mim, sentando-se ao meu lado.

—O que aconteceu? Imagino que redecorar a casa seja uma mudança e tanto, mas redecorar a si mesma...? Oh, não, não, não, isso é imperdoável! Você tem um rosto tão bonito, Belle... Porque fazer uma maquiagem tão... –então parou de falar, percebendo meu olhar fuzilador. –Adorável. –terminou, disfarçando. Eu voltei a encarar o teto, rabugenta e ele esfregou as mãos. –Como é, ainda servem café aqui? Seria uma boa uns biscoitinhos também agora pra quebrar o gelo...

Não sei o que aconteceu. Comecei a chorar de repente. O Doutor imediatamente se empertigou.

—O que? Está chorando? Mas porque está fazendo isso? Ah... não, não chore. Foi a piada? Ela não foi tão ruim assim, foi? Nhó... –ele me puxou para um abraço. Eu rapidamente retribui. –Pronto, pronto. Coitadinha. Eu cheguei em má hora, não foi? O Doutor burro e nada sentimental... –ele fez carinho em meus cabelos e minhas costas. Nos separamos um pouco depois, e ele secou as lágrimas de meu rosto usando os polegares, como eu fiz anos atrás com ele. –Prontinho, amor. Assim está melhor, não é? Agora só falta um sorriso. –e sorriu para ilustrar. -Vamos lá! Eu sei que você é perfeitamente capaz disso!

Acabei rindo da cara de bobo dele.

—É! Muito bem! Minha garota esperta! –tocou a ponta de meu nariz, beliscando logo depois minhas bochechas. –É assim que se faz!

—Você se tornou um maluco entusiasta –sorri.

—E você gosta disso, não gosta? Diz que gosta! Vai, diz! –me fez cócegas. Fiz de tudo para me desvencilhar das mãos ágeis do Doutor, mas era inútil. Logo eu comecei a escorregar do sofá, e quando dei por mim, nós dois caímos no chão. Ele, claro, veio por cima de mim. Nossa queda só não foi mais feia graças às almofadas que já estavam no chão, por causa da minha crise histérica de mais cedo.

—Ai, caramba, me desculpa! Você está bem? –o Doutor entrou em pânico ao ver o que havia feito.

—Estou. Só me ajuda a levantar. –ele assentiu, e fez mais do que isso. Me pegou no colo e me levou para dar um passeio pela sala. –Ei! O que é isso? Tá treinando pra carregar uma noiva é?

—Talvez. Sabe, eu tenho uma amiga chamada Pond, que vai se casar, mas imagino que a tarefa de carregá-la caiba ao marido, Rory, e não a mim –divagou. –E você, pretende se tornar uma noiva algum dia?

Balancei a cabeça.

—Não mais. Depois dessa última desilusão de hoje, acho que nunca mais quero ter um relacionamento.

O Doutor me colocou imediatamente no chão.

—Espera... Quer dizer que tudo isso... sua sala, você... tudo está de cabeça pra baixo porque você está sofrendo?

Eu o encarei.

—Pensei que tinha entendido ao ouvir a música que eu cantei quando abri a porta –e passei direto por ele, me sentando no braço do sofá. –A verdade é que acabou. Eu fui trocada. Descartada como uma embalagem velha de salgadinho.

—Mas você não é substituível -ele me alcançou rapidamente, ficando de joelhos para poder olhar em meus olhos. –E sabe disso.

—Hã. Eu sei? –ri em tom irônico, baixando os ombros logo em seguida. –Eu me sinto tão mal, Doutor...

Ele então segurou minhas mãos, e descansou a cabeça no emaranhado de dedos entrelaçados sob minhas pernas.

—Você não tá sozinha nessa. Você sempre me ajudou, Belle. Sempre esteve lá pra mim... Tá na hora de retribuir o favor. –e, sorrindo, apontou a chave sônica para meu rádio. Imediatamente, a música do Zeca Baleiro, “Telegrama” começou a tocar.

Eu tava triste, Tristinho...

Eu olhei para o Doutor, pasma. Ele sorriu pra mim.

—“Mas ontem eu recebi um telegrama, era você de Aracaju ou do Alabama...” –cantou, me fazendo lembrar daquela noite, em que ele regenerou e eu cantei essa música para distraí-lo da dor.

—Você lembra disso! –exclamei, ficando imediatamente com lágrimas nos olhos. Mas dessa vez, eram de felicidade.

—Você cantou pra mim quando eu mais precisei... e quer saber... Eu entendi a mensagem. –e aumentou o volume.

Dizendo: Nêgo sinta-se feliz, porque no mundo tem alguém que diz: Que muito te ama!
Que tanto te ama! Que muito muito te ama, que tanto te ama!

—Vem! Vem! Vamos dançar! -ele se levantou, me puxando para dançar. Rindo, eu aceitei.

Por isso hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado, de bater na porta do vizinho e desejar bom dia, de beijar o português da padaria...

Meu Deus, aquilo era um sonho virando realidade! Nunca nos divertimos tanto juntos... O Doutor fez uma dança engraçada, que chamava de “a dança da girafa bêbada”, enquanto eu fiz meus passos particulares, balançando bastante o corpo e meu cabelo. No fim, ele pegou minha mão e me guiou numa dança a dois, onde ficamos bastante próximos. Rodopiamos e rodopiamos no mesmo lugar... até que caímos no sofá, tontos e dando risada.

E então, subitamente aconteceu. Ele estava deitado ao meu lado, estávamos rindo, então nós dois paramos e nos contemplamos de um jeito diferente... Devagar, o Doutor se inclinou em minha direção e eu automaticamente fechei meus olhos. Nossos lábios se tocaram e nos beijamos.

Não foi o tipo de beijo relâmpago... nós até que curtimos um pouquinho. Começou um pouco contido, é verdade, mas conforme eu fui retribuindo, o Doutor rapidamente passou as mãos em volta de mim, me puxando para mais perto dele. Eu segurei seu rosto com carinho, enquanto nos beijávamos. Quando abrimos os olhos novamente, ambos pareciam estar radiantes.

—Hey, isso foi legal –ele disse, sorrindo, um pouquinho embaraçado. –Não foi?

—Foi maravilhoso! –reforcei, sorrindo largo. –Aaah, eu quero mais de onde veio esse beijo...—cantarolei, agora brincando com sua gravata borboleta e me esticando para voltar a beijá-lo, porém, ele segurou minha testa com a palma da mão, me impedindo de prosseguir.

Só se me der a receita do pudim com gelatina—enfatizou, um sorriso travesso nos lábios.

O encarei, perplexa.

—Ora, mais será possível? –ri, dando-lhe um tapinha descontraído no braço. –Tá, vai. Eu te dou a receita.

Vivaaa!—ele comemorou, me abraçando e rodopiando comigo. -Aí sim! Top de linha!

—Você é completamente maluco! –tive um ataque de riso. Logo ele me colocou de volta no chão e sorrimos um para o outro. –Sabe, tem bolo na cozinha, caso queira.

—Você sabe muito bem que eu nunca resisto aos seus doces! Porééém... –ele me puxou para perto. –Talvez eu prefira levar um papo com a moça dos doces, agora...

—Hum... Interessante escolha de palavras –mordi o lábio, passando os braços ao redor de seu pescoço. –Tem algum doce especial que gostaria de pedir? Brigadeiro, pavê... uns beijinhos talvez?

—Hum –o Doutor refletiu um pouquinho. –Gosto da idéia dos beijinhos.

Abri um sorriso.

—Então é pra já. –disse, e nos beijamos.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.