Maré de Sangue

Prólogo - Juktar


A taverna tremia pelo tilintar dos copos dos presentes enquanto a música preenchia o lugar, as dançarinas faziam seu espetáculo e a luz, embora fraca, dava uma sensação aconchegante ao local. Apesar do frio que fazia do lado de fora, essa noite em Nortúndria estava aquecida pelas canções de aventureiros e pelos corpos das elfas que rodeavam o local em busca de corações preenchidos de moedas para roubar. Eu podia ouvir a cada passo que dava em meio à neve o toque suave do alaúde e a voz estridente do goblin taverneiro que dizia:

–Venham! Venham! A noite é muito longa para estar do lado de fora!

Realmente... A noite era longa e eu não possuía dinheiro suficiente para comprar uma mera cerveja, minha capa desgastada não seria o suficiente para me aquecer nessa noite. Minha respiração ofegava e meu peito parecia explodir.

– Maldição, que péssima hora para não ser respondido pelos espíritos do fogo! – murmurei.

Eu sabia como a taverna estava. Já havia tocado meu alaúde muitas vezes em seus palcos de madeira. Mas a minha aparência agora era irreconhecível e meu alaúde virou objeto de barganha para me sustentar. Minha barba voava com o vento, branca graças à neve. Meus músculos já cediam e eu lutava para me manter de pé, pois se deixasse meu corpo cair dormiria ali mesmo e congelaria lentamente.

Porém ao franzir os olhos vislumbrei uma porta aos fundos, aquilo não estava lá da última vez. A taverna estava uma confusão, e uma fila enorme se estendia pelo lado de fora.

Consigo entrar sorrateiramente, imaginei. Cheguei perto da porta e disse com uma voz rouca e trêmula.

– Espíritos d-das águas, enviem-me um pouco de seu p-poder.

Um pequeno brilho iluminou minhas mãos e recebi o suficiente para encher uma delas. Eu estava fraco demais e ao ver aquilo minha fé se estilhaçou. Mas ao olhar novamente para minha mão percebi a velocidade com que aquela água estava se cristalizando. Sem hesitar coloquei essa quantidade na fechadura da porta e depois de alguns segundos ouvi um pequeno estalido. Abri lentamente a porta. Ela rangeu tão alto que eu pensei que a música havia parado por alguns instantes. Olhei para trás e ninguém estava ao redor, continuava a ouvir à distância o alaúde e as batidas dos pés e mãos acompanhando o ritmo da canção. Bruscamente abri a porta que fez um som estridente e entrei no local.

Estava tudo escuro, mas a sensação de não ser atingido pelo vento cortante era indescritivelmente tranquilizadora. Retirei meu tapa-olho que deixava um de meus olhos acostumado à escuridão, justamente para esse tipo de cenário. Conseguia ver vultos, apalpei pela parede e percebi ao tocar em uma garrafa que estava em um tipo de dispensa com muitas bebidas. Isso é péssimo, deduzi ao pensar que com certeza passariam ali esta noite. De repente, uma luz surgiu me deixando cego imediatamente. Coloquei a mão em meu rosto e recuei, derrubando algumas bebidas no ato.

– Ora, ora... Isso que dá um xamã tentar bancar o ladino! Droga, Juk! Essas bebidas são caras sabia?!

Não acreditava no que ouvia, era algo inesperadamente familiar.

– Senob?! Pelos elementos, você quase termina de me matar. – Comecei a recuperar a visão lentamente e percebi que a luz vinha de uma lanterna feita à mão, cheia de velas, ele estava me esperando. – Não lembrava que você estava tão acabado assim, que infernos, o que houve com o seu olho?

– Não mude de assunto Juk! Acabei de encomendar outro novo se quer saber, e é tão estranho assim um mero renegado como eu expandir os negócios?

Lembrei-me nesse momento que quando toquei na taverna de Senob arrecadamos muito dinheiro, faria mesmo sentido ele ter se mudado das Clareiras para esta taverna. Enquanto absorvia a informação ele voltou a falar.

– Apesar de que não sei se estou fazendo o melhor negócio, aquele goblin maldito está me enganando, tenho certeza! Se você não fosse teimoso em querer viajar por aí, poderíamos estar ricos! Olha sua situação agora...

Levantei-me, bati as mãos na roupa para tirar a poeira e torci a capa encharcada de bebida.

– É, me meti em maus bocados. Mas Senob, você me conhece, não consigo ficar parado. Aliás, não sei nem como me reconheceu com essa barba maldita, deixe-me passar a noite aqui, por favor.

Ele estendeu com aquela mão desfigurada uma pequena faca dentro de uma tigela de madeira com água para mim e disse:

– Eu te vi a distância, esse seu jeito de andar cambaleando sempre te denuncia – disse enquanto sorria - faça a barba e venha tocar essa noite! Você tem muito o que trabalhar para pagar essas bebidas que derrubou. - Apontou para o chão todo molhado - É um prazer te ver novamente, Juk, mas tenho que voltar lá para cima, me avise quando estiver pronto que arrumo um alaúde para você.

Era muita informação para digerir, mas eu teria um tempo para pensar sobre isso. Senob deixou a lanterna e subiu os degraus sorrindo. Ele estava mesmo horrível, mas acho que para um renegado isso era o comum. Eu sempre fui muito desconfiado para passar qualquer lâmina em meu rosto, por isso peguei alguns cacos de vidro das garrafas que caíram e lavei com água cedida pelos elementos. Agora levemente aquecido era extremamente mais fácil usar minhas energias. Após fazer à barba, sequei toda aquela bebida caída com minha capa velha e enrolei ela com os pedaços de vidro dentro. Deduzi que já que estava toda rasgada e encharcada, não teria mais utilidade. Aproveitei então uma fresta de uma janela ao lado da porta para me desfazer dela.

Era muita sorte eu ter encontrado Senob ali, não nos falávamos a quase vinte dezenas e havia sido em outro continente. Mas estava pronto, e até um pouco animado para pegar em um alaúde novamente, sentir o ardor da bebida em minha garganta e ouvir as conversas nas tavernas. Subi os degraus, já aquecido pela excitação de encarar o público e com a aparência bem mais satisfatória.

Ao subir os degraus à música aumentava gradativamente, comecei a encaixar meus passos com o ritmo de “Orgulho do Leão”. Chegando ao piso superior era muito agradável poder ver os mais diversos níveis de felicidade que só uma taverna pode oferecer. Boa música, excelentes histórias, companhias agradáveis e uma saborosa comida, todos esses elementos se uniam de modo a formar um complexo ambiente perfeito e revigorante. Comida.... senti um cheiro delicioso de porco temperado com ervas e mel, rodeado de batatas que estava sendo servido em uma mesa próxima. Só então me dei conta de que estava com muita fome. Meu delírio por aquele prato foi interrompido por uma mão em meu ombro.


– Aquela mesa é bem afastada, acho que consigo um pedaço disso para você se for para lá – disse Senob rindo – seu alaúde está no banco, vá se preparando enquanto esses amadores tocam. Eu te conheço Juk, hoje a noite renderá o dobro com você aqui! – Após dizer isso me empurrou levemente em direção a uma mesa, isolada da multidão, escura. Estava muito cansado para pensar se deveria realmente ir, apenas me sentei, instintivamente peguei o alaúde e comecei a afiná-lo. Aquela sensação era incrível, pegar o alaúde novamente, meus dedos deslizavam de maneira suave para não roubar o ritmo da música que tocava no local. Ajustei a corda inferior, mas não estava do modo como eu queria. Entrei numa zona de concentração para poder, em meio a todos aqueles sons variados, me focar apenas nas cordas do alaúde. No entanto saí da zona ao ouvir uma conversa numa mesa ao lado.

– Ele está aqui, eu o vi desembarcar! – disse o anão com uma cara de assustado.

– Mentira Turk! Não sabem quantos boatos surgem ao redor desse cara? Não se sabe nem com certeza se ele existe! – Um homem mais novo disse, logo após tomar uma caneca de hidromel.

– Todas as lendas têm um pouco de verdade... O que sabem sobre esse homem? – Um Pandaren de outra mesa se pronunciou.

A esse momento minha atenção estava totalmente voltada para essa conversa, todos sabem que para um cantor as lendas são como a pedra bruta de uma joia valiosa.

– Dizem que ele matou os pais! E bebeu o sangue deles! – Disse um Orc, claramente alterado pela bebida.

– Não seja idiota, ele foi raptado por piratas quando criança! Os Vela Sangrenta moldaram um rei para destruir seus inimigos e conquistarem os mares, dizem que quando pequeno esse homem já apontava as direções marítimas corretas se deixado sozinho. – Disse o anão.

– Mas ele não é dos Vela Sangrenta, ele adotou os princípios da Cruzada Escarlate agora! – Um dos mortos-vivos que comia porco na mesa maior disse tremendo.

Sem perceber a conversa havia tomado todo o local, algumas pessoas começaram a sair ao ouvir o boato de que esse homem estaria por ali. Eu estava tão focado que um pedaço suculento de porco fora servido e já estava frio em minha mesa.

– Almirante ou Pirata?! Que diferença faz, ele que apareça por aqui que o cortarei em pedaços. Deve ser alguém imbecil para se juntar a uma organização falida. – Gritou um Worgen na multidão. - Diga o nome desse infeliz!

Nesse momento a música parou, eu saí de um mundo de rimas e acordes para me deparar com Senob implorando para o Worgen que parasse, a taverna estava ficando vazia. Um conto antigo dizia o poder de se chamar um nome; e tanto Senob como muitos ali acreditavam nele. Lembro-me bem de ele ter feito isso várias vezes com canções que eu apresentava sobre os mais diversos ladrões e assassinos de Azeroth. Parece que esse simpático taverneiro não havia mudado, eu estava me preocupando à toa, era a minha vez de retribuir tamanha gentileza que me ofereceu por cantar no palco.

Pedi licença ao Tauren calado que não havia entendido o motivo de Senob sair bruscamente e ao sentar, respirei fundo. Minha mão começou a compor uma sinfonia complexa e em instantes aqueles que estavam saindo voltaram alegres e batendo palmas, as dançarinas voltaram a entreter os convidados e gradativamente o clima na taverna se estabilizou. Senob olhou pra mim com um sorriso aliviado. Ao subir tocou em meu ombro e sussurrou.

– Você é incrível Juk... Isso que nem começou a cantar, acho que vou aproveitar isso. - Disse enquanto sentava em uma cadeira próxima.

Eu estava repleto de nostalgia, feliz por aproveitar de boa bebida e tocar em uma taverna novamente. Dizem que as tavernas são o oásis dos aventureiros, e essa é a mais pura verdade. Porém quando se entra no mundo da música, seu corpo não conhece limites, e antes de perceber estava revirando os acordes negros que produzi antes.

Em uma noite fria o mar
Estremece aqueles que o navegar
Empilha, mata, rouba e bate
Nas suas veias corre sangue escarlate

O silêncio foi surgindo gradativamente, mas eu não o notei.

O órfão treinado pra ser rei
Ao vê-lo silêncio farei
Sua ganância escaldante
Se é pirata, ou almirante?

Senob se levantou, todos me olhavam, aterrorizados.

Nos mares do inverno surgiu
Ninguém espera seu sinal
A bandeira negra então subiu
Tremam ao verem seu final
Que virá das mãos do terror vil
O almirante Vat...

Minha voz foi interrompida por um chute na porta, seguido por uma explosão ensurdecedora. Eu senti um leve som agudo em meu ouvido, a explosão fora alta demais. Ao olhar para o meu lado direito em meio a fumaça vi um grande buraco no palco, era como se tivessem feito um túnel por entre ele. Senti um leve toque em meu casco e me virei para olhar o que era. Quão arrependido fiquei de ter olhado naquele momento, se eu somente tivesse fugido, se não tivesse me aventurado em acordes negros demais para minha compreensão. Em meus pés jazia a cabeça de Senob, separada do corpo, com seu único olho negro me encarando como que me suplicando para que eu parasse de cantar. Em meio a fumaça ouvi uma temível risada.

– HAHAHAHARRRR! Mortos-Vivos não servem para nada mesmo, escória repugnante. Se não tivesse tentado interromper a música do jovem polvo ainda deixaria que vivesse até o final da noite. Termine essa desgraça de canção maldito ou explodirei mais coisas por aqui!

O que eu havia feito? Meu corpo estava paralisado, enquanto a fumaça baixava podia ver um vulto. Em sua frente às mesas em uma linha reta estavam destroçadas, com corpos por todo canto. Estava tudo escuro, as lanternas apagaram com a onda de ar provocada pela explosão. A única fonte de luz era a lua que iluminou a carnificina no chão da taverna e um demônio em forma de homem parado na porta ao lado de um objeto de metal. Aquilo era... Um canhão!

– Seu polvo de estrume com cólera...TERMINE!

Essa voz como que em um gatilho ativou meu senso de sobrevivência, eu corri imediatamente para o piso inferior, enquanto a fumaça ainda abaixava. Bati com força o ombro na porta que se despedaçou, apenas para dar de encontro com um dos tripulantes, um humano gordo da minha altura com uma arma apontada diretamente para meu rosto.

– Fim da linha, enfrente seus inimigos frente-a-frente e com honra seu rato de convés!

Nesses momentos os instintos falam mais alto, não me sentia mal por descartar a honra de tal maneira. Fugir... Meus pais me cuspiriam no rosto se soubessem que fiz algo tão deplorável. Mas a vida me ensinou cruelmente que honra é uma ilusão, criada para despertar o desejo de ir à batalha e morrer sem culpa. De fazer o inferno parecer mais agradável. Nesses momentos de vida ou morte você se depara sem honra e implorando para viver um pouco mais. Eu nunca fui de implorar.

– Eu vivo... Sem honra! – Disse enquanto chutava a minha capa coberta pela neve que enrolou no braço direito do homem, prendendo-se graças aos cacos de vidro. Me inclinei imediatamente, ouvindo o ensurdecedor disparar da pistola. O primeiro tiro acertou meu braço esquerdo. Clamei em meio à dor. – Espíritos do fogo, atendam ao meu chamado!

O braço do homem começou a arder em chamas. O fogo se alimentava com a bebida que envolvia a capa. Com um movimento rápido prendi a capa em sua cabeça , queimando minha mão no processo. Meu braço estava inutilizável, sem pensar corri em direção oposta. Corri, corri, até ficar ofegante demais para continuar. A uma distância razoável ainda consegui ouvir, em meio aos gritos estridentes do homem que queimava, a voz rouca e atemorizante do capitão.

–QUEIMEM ESSA ESPELUNCA!

Eu precisava ir mais longe. Ele me perseguirá? Pensei. Não fazia a mínima ideia de como reagir a tudo aquilo, de como digerir o que houve e de qual seria meu próximo passo, decidi caminhar até ter a razão suficiente para tomar uma decisão. E em meus passos cambaleantes somados ao brilho da taverna ardendo em chamas, o dia amanheceu.

Ajoelhei-me, chorando de raiva após andar por um bom período. Distribuía golpes de desgosto na neve branca. Estava desolado. No entanto, nesse momento senti o toque de alguém em meu ombro. Eles me alcançaram Imaginei. Porém, ao me virar notei que era o Worgen que estava na taverna. Ele me disse, enquanto me levantava apoiando meu braço em seu ombro.

– “Eu vivo... sem honra?” Sábias palavras, mas você ainda teme que fugir seja sinônimo de covardia, não é mesmo? - Eu não respondi, ele então continuou. – Eu lhe digo hoje jovem que aquele que não sabe recuar é o verdadeiro covarde, tem medo de assumir que há poderes além de sua compreensão. Não há motivos para hesitar quando se tem a oportunidade de fugir. Venha comigo filho, pois existe o dia da caça... E o dia do caçador.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.