Eu não devia ter ido lá, não devia ter interferido. Aquele garoto. Ele não deveria estar vivo agora. E por ter salvado a sua vida, sei que estarei em uma grande encrenca.

– Liz, desça já aqui! - ouço a voz do meu pai gritando lá da sala.

Suspiro. Até imagino onde isso vai dar.

Não fui à escola hoje. Se eu pudesse, não iria nunca mais. Apesar de tudo o que meus pais fizeram por esta cidade nojenta e pelo mundo, as meninas da minha escola simplesmente me odeiam. Não tenho amigos.

Minha mãe me contava sobre como conheceu meu pai. Ela também não tinha amigos. Mas papai ficou ao lado dela. E mesmo quando mamãe fez dezesseis anos e minha avó do mal disse que ela não poderia ficar com meu pai sem matá-lo, mamãe não desistiu. E aqui estamos nós. Aqui estou eu.

Desço as escadas lentamente. Meu pai está lá, à minha espera. Sua expressão é de preocupação. Conheço-a bem.

– Aconteceu um acidente agora há pouco, Liz, aqui perto. Por incrível que pareça, um homem saiu completamente ileso. Não se sabe o que causou o acidente. Mas o importante é... Você tem alguma coisa a ver com o fato do rapaz ter saído ileso dali?

Meu pai me encara, querendo arrancar a resposta de mim. Mas estou tensa demais, não posso falar. Como explicar o seu instinto em proteger aquele rapaz? Como dizer que simplesmente sentia que ela precisava salvá-lo?

– Liz Duchannes Wate. Onde você esteve durante esta noite? Por que suas roupas estão sujas de terra?

– Ethan, o que está havendo? - ouvimos a voz da minha mãe vinda da biblioteca, e logo depois ela aparece.

– Houve um acidente perto da bifurcação, L. Um rapaz saiu sem nenhum arranhão, mas o carro dele está completamente destruído.

– E o que Liz tem a ver com isso?

Os dois olham para mim, claramente esperando uma resposta.

– Eu... - tento falar.

– Liz, você sabe que não pode interferir assim na vida de alguém - diz minha mãe.

– Eu sei, mãe. Eu não ia para lá. Mas algo estava me chamando. Cheguei na mesma hora que o acidente aconteceu. Alguma coisa... ah, isso é tão constrangedor!

Minha mãe olha para o meu pai. Com certeza, eles estavam tendo uma conversa mental, algo que só existe entre eles dois.

Mamãe é uma Natural, o maior ser da Luz que existe. No dia da sua Invocação, a Lua não apareceu. Minha avó Cataclista, Sarafine, o maior ser das Trevas, estava lá para fazer mamãe ir para o seu lado. Sarafine tentou matar meu pai, mas minha mãe usou um feitiço (que há tempos atrás, havia amaldiçoado toda a família Duchannes) para trazer Ethan de volta. Mas o Livro levou o tio Macon.

– Ethan - disse minha mãe. Aparentemente, ele está tentando discutir com ela.

– Mas, Lena...

– Por favor, Ethan. Depois nós conversamos.

Meu pai deixa de discutir. Olha para mim e sobe as escadas para me dar um beijo na testa. Então vai para a biblioteca. Minha mãe se vira para mim.

– Vamos conversar agora.

*****

Estamos no meu quarto. Mamãe olha para as paredes, cheias de rabiscos. Sei que quando ela era adolescente, Lena gostava de escrever poesia. Herdei um pouco isso dela. Mas prefiro escrever contos.

Sento-me na cama, olhando para a colcha, e mamãe se senta ao meu lado.

– Você pode me contar agora - diz suavemente.

Olho para ela. Ela tinha lindos olhos verdes, mas quando ela fez dezesseis anos, um deles adquire um tom meio dourado. Lembrança da sua luta constante entre as Trevas e a Luz.

Talvez seja assim mesmo. Temos Trevas e Luz dentro de nós. E cada segundo, cada minuto, cada momento, tenhamos que invocar a nós mesmos. Assim como mamãe invocou a si mesma.

Respiro fundo. Eu posso contar com ela. Ela é minha mãe. Ela sabe o que estou passando.

– Eu não sabia do acidente - comecei. - Eu estava deitada aqui, fechei os olhos e então senti algo me chamando. Sabia que era algo importante. Então fui até lá. Quando cheguei, tudo aconteceu. Mas uma voz me dizia: salve-o. Eu ouvi uma voz. Uma voz de garoto na minha mente. Ele estava pedindo ajuda. Eu tinha que ajudá-lo.

Não notei que tinha começado a chorar. Só agora o impacto do que eu tinha feito chegou até mim. Nossa raça não pode interferir nos destinos humanos. Agora o meu caminho seguiria por um rumo desconhecido. E estou com medo disso.

Mamãe olha para mim e me abraça. Mas a tão familiar sensação de segurança que eu sempre tinha quando abraçava meus pais sumiu.

– Vai ficar tudo bem, Liz - mamãe diz, mas percebo sua voz um pouco trêmula.

Nós duas sabemos que, a partir de agora, nada ficará bem.