Mar de Lírios

Nova Tripulante.


Caspian

Três anos haviam se passado até ali. Em mais uma manhã a bordo do Peregrino da Alvorada, observando o mar tranquilo e sentindo o vento fresco, cheguei – pela milésima vez – a conclusão de que aquela sensação insistente certamente se tratava de loucura. Mas, ainda assim, mais do que nunca eu podia sentir – com bastante convicção, asseguro - que ela parecia estar cada vez mais perto de mim do que esteve nesses três anos.

Não era possível, é claro. No entanto, aquela sensação instalara-se em algum ponto muito relevante de minha mente, que insistia nesse assunto apesar da racionalidade. Susana permaneceu em meus pensamentos dia após dia, por todo esse tempo, e, a esta altura, sabia que não se ausentaria. Devo confessar que até tentei, não esquecê-la de fato, porque era sobre-humano, mas fazer-me acreditar que esse sentimento não passara de uma simples atração passageira e que viver com sua ausência seria algo simples ao qual eu logo me acostumaria. Porém, da mesma forma, logo admiti que não seria passageiro e muito menos simples.

A única maneira era prosseguir. Como as obrigações reais impõem, aceitei com mais facilidade encontrar outra pessoa, a fim de acelerar esse processo que não andaria naturalmente. Decidi encontrar alguém para satisfazer as necessidades do reino, uma que fosse tão bela quanto ela, se possível, mas, principalmente, invariavelmente tão boa e gentil quanto Susana. Se, porventura, a moça em questão ocupasse espaço especial em meu coração, melhor seria. Confesso que, talvez por este último motivo, não encontrei. E nem tinha ânimo em continuar a procura. Precisei cansar dessa busca para perceber que se não fosse por Susana não seria por mais ninguém. Eu sei que não a veria de novo, o próprio Aslam dissera que ela não voltaria, isso era suficiente para qualquer pessoa perder as esperanças. Deveria ser o suficiente para mim. Mas não foi.

Descobri bem como dói ficar longe dela e meu consolo são as lembranças, a lealdade ao reino e ao cotidiano, sem contar, é claro, uma viagem por mar vez ou outra. Nos raros momentos em que eu ficava a sós com meus pensamentos, costumava seguir para meu quarto e era inevitável lembrar o sorriso dela, admirar a trompa que mantinha na antecâmara junto com as armas dos outros irmãos – e sentir novamente, ao fechar os olhos, o gosto daquele beijo casto e ligeiro demais. Sabia que estava afundando em um ciclo de auto tortura permitindo-me reviver todas aquelas lembranças, mas como também sabia, era inevitável.

A viagem do Peregrino da Alvorada surgiu em um momento excelente para minha sanidade. O projeto grande de uma jornada a longo prazo requer muitos preparativos, questões que me mantinham bastante ocupado. Quando estavam construindo o navio, decidi que queria a presença de Aslam e dos antigos Reis e Rainhas na cabine principal, de forma simbólica. Os artesãos de Nárnia foram primorosos nos detalhes, trazendo-os a bordo através de pinturas, esculturas e objetos. Prometi a Pedro que guardaria a espada dele por quanto tempo eu pudesse, mas depois que eles partiram, decidi o que logicamente faria independente da promessa: guardei com zelo e estima as armas e demais objetos de Lúcia, Susana e Edmundo, que eram tratados como tesouros do reino. Ninguém se opôs a sugestão de Ripchip e então as armas agora estão aqui na cabine principal, compondo a presença Pevensie junto com as pinturas.

Hoje, completamos um mês a bordo do melhor navio da marinha de Nárnia, na longa e imprevisível jornada a procura dos melhores amigos do meu pai, expulsos de Telmar por Miraz pouco antes de que o derrotássemos e eu recuperasse o trono. Era um dia de clima calmo e agradável, tranquilo, se não fosse aquela sensação sem nexo e cada vez mais intensa. Revisava alguns mapas que Drinian e eu usávamos para o planejamento, quando um brado soou lá de fora.

HOMENS AO MAR!— era Drinian, o capitão. Saí da cabine e corri pelo convés em direção a estibordo, debruçando-me na beira do navio.

Lá em baixo, vi surgir na superfície do mar a pessoa que achei que nunca mais veria. Era ela, com toda a certeza que havia em mim. Como, eu não saberia dizer e sequer houve tempo para pensar. Sem hesitar, pulei para a água. Ela não me viu, provavelmente por causa da luz do sol contra seus olhos, mas viu o navio indo a sua direção e começou a nadar para longe dele, ela era rápida na água, mas eu consegui alcança-la e segura-la pela cintura.

— Calma, te peguei – falei. Ela parou de nadar e olhou para mim.

— Caspian?! – ela sorriu, surpresa, permitindo-me vislumbrar o azul do mar em seus olhos.

— Susana – sorri também.

— Espera. Onde estamos?

— No mar – soltei. Ela me jogou um pouco de água e eu ri. – Vamos para o navio, lá eu explico – nadamos de volta para lá, os marinheiros nos puxaram de volta ao navio e trouxeram toalhas, não poupando os olhares de surpresa – Como chegou aqui? – perguntei a Susana.

— Não faço ideia! – ela sorriu. Parei, observando-a. Como eu senti falta daquele sorriso.

— Não sabe como estou feliz em ter você aqui de novo – abracei-a apertado, porém rápido, apesar da plateia imensa, e fui correspondido. Diversos impulsos lutavam entre si para me conduzir, tinha vontade de tomar seus lábios nos meus naquele mesmo momento, ou enchê-la de perguntas, ou ambos e muitos outros, mas me contive.

— É uma honra tê-la conosco, majestade. – Ripchip fez uma reverência.

— Obrigada, Rip - ela sorriu amplamente - É muito bom estar aqui!

— Homens! – chamei, após subir alguns dos degraus que levavam ao manche – Esta é a Rainha Susana, a Gentil, grande Rainha de Nárnia... Nossa nova tripulante! – acrescentei. Os marinheiros faziam reverências enquanto voltei para seu lado – Venha, eu vou acompanhá-la até seus aposentos. – falei penas a ela e levei-a até a cabine principal.

Susana

— Não temos vestimentas femininas no navio, obviamente – Caspian riu de leve. – Mas pode usar o que quiser, vou apenas pegar algumas peças para mim. – falou, tirando camisas e calças do armário. Abracei a mim mesma, envolvendo-me mais com a toalha, na vã tentativa de acalmar aquele ardor na boca do estômago, quando ele se virou para mim com um sorriso relutante: - Espero que fique à vontade, nos vemos daqui a pouco.

E ele se retirou depois de um rápido olhar demorado, deixando-me a sós. Parece que só então o ar conseguiu ser sentido entrando em meu peito. Olhei em volta, para a cabine do navio, tudo tinha cara e cheiro de Nárnia, de casa. Eu estava de volta, tentando respirar com calma sem ser dominada pelo batuque insistente e eufórico em meu peito, eu estava de volta! Não me pergunte como, pois sequer entendo! No atual estado efervescente em que me encontrava, sentia-me feliz demais para sequer pensar sobre isso. Obrigada, Aslam, obrigada!

Por um momento, mal me movi da posição em que estava quando Caspian saiu. Meu coração e meus pensamentos viajaram pelo mundo inteiro antes que eu pudesse racionar outra vez, graças a um calafrio causado pelo vento e pela roupa molhada. Tinha vontade de gritar, e quem sabe saltar também, embora só pudesse sorrir como aquela alegria que pouco havia sentido nos últimos tempos. Não que estivesse completamente infeliz em meu mundo, mas havia uma alegria que só provinha de Nárnia. Melhor do que isto, somente poder correr para meus irmãos e contar o que acontecia. Dessa vez, no entanto, seria diferente neste ponto.

Sequei-me e busquei por roupas onde Caspian indicara. Vesti uma calça marrom e uma camisa branca, sentindo o aroma da lavagem recente. Aquela roupa de Caspian não serviu muito bem, mas nada que enrolar os punhos e um cinto não pudessem resolver. Encontrei um largo e prendi-o na cintura, penteei os cabelos e deixei-os soltos, busquei pela cabine até encontrar uma caixa de lata pequena e adornada, com linhas e agulhas para acertar a barra da calça. Lamentei apenas ter de ficar descalça por hora.

Enxuta e com a euforia um pouco mais controlada, dei uma nova olhada para a cabine, dessa vez com mais calma. Havia diversas pinturas nas paredes e sorri ao reconhecer a mim e a meus irmãos nelas. Aslam também surgia por ali, imponente e dourado pelo ouro, no ponto em que era impossível não o ver, logo acima da pequena lareira. Logo acima desta e abaixo do Leão, em um suporte de cristal, estava minha trompa. Em outro ponto na lateral do cômodo, abaixo da pintura onde eu era retratada, estava meu arco com a aljava e as flechas. Eu sorri. Havia tantas recordações, tantas histórias gloriosas ali.

— Pode entrar – respondi para a batida na porta, sem olhar para ela ou para quem estava entrando, distraída enquanto sentia a maciez das penas vermelhas em meus dedos.

— Elas ficaram bem em você – ouvi a voz de Caspian. Automaticamente virei para ele.

— Hm... Obrigada. – sorri sem jeito, ajeitando o cabelo atrás da orelha e cruzando os braços em frente ao corpo.

— Achei que ficariam mais largas – brincou.

—Ah, eu dei alguns pontos – dei de ombros. - Espero que não se importe.

—De modo algum. Assim que atracarmos providenciaremos algumas mais adequadas... E sapatos também - Caspian riu, lançando um rápido olhar para meus pés.

Ri também, uma risada fraca e desconcertante, na verdade, suficiente para embarcarmos em um silêncio igualmente desconcertante, sem desviar nossos olhares um do outro. Caspian deu mais um passo em minha direção, fazendo um frio percorrer meu corpo diante de seu olhar hesitante, mas repleto de coisas não ditas. Não consegui olhar para outro lado, ou sequer piscar, apenas respirar e olhá-lo. De uma vez, ele se aproximou o máximo possível.

—Estou feliz que esteja aqui – sussurrou, fazendo meu coração vacilar. Sorri de leve.

—Estou feliz por estar aqui.

Caspian estendeu as mãos até pegar as minhas, envolvendo-as em um toque gentil e cálido que me lançou uma corrente elétrica pelo corpo. Mordi o lábio observando o gesto, antes de olhar em seus olhos novamente. Caspian me observava intensamente, quase como se pudesse ver meu interior por completo. Segurei sua mão com mais firmeza e acabei com o espaço entre nós, abraçando-o. Caspian correspondeu imediatamente, enlaçando minha cintura enquanto eu enterrava meus dedos em seus cabelos e era inundada pelo seu cheiro.

— Senti tanto a sua falta... – ele sussurrou contra meus cabelos ainda úmidos, apertando ainda mais os braços em volta de mim, mantendo-nos colados um ao outro.

— Pensei que nunca mais fosse vê-lo – eu mal continha o sorriso e pude sentir que ele fazia o mesmo. Afastamo-nos apenas o suficiente para olhar nos olhos um do outro. Afaguei a lateral do rosto de Caspian tão próximo ao meu, encantada com seus olhos brilhantes que também refletiam em seu sorriso, alvo em meio a barba por fazer.

Ele se aproximou lentamente, meu coração acelerou à medida que sua respiração estava cada vez mais próxima. Fechei os olhos e senti seus lábios macios chegarem aos meus, um toque cálido, casto e gentil, mais que suficiente para eletrizar meu corpo inteiro enquanto o tempo parava completamente. Ele levou uma das mãos para a lateral do meu rosto, seu calor contrastando com a umidade de meu cabelo. Meu coração palpitava. Por intermináveis meses eu almejei estar com ele novamente e por mais que ninguém me desse esperança, a não ser Lúcia, eu sentia, lá no fundo, que um dia essa dor acabaria. Agora, sentia como se ela nunca tivesse existido, minha alma parecia descansar na calmaria do navio e daquele beijo.

Caspian, então, o interrompeu hesitante e suavemente, deixando-me mais um, dois beijos antes de realmente se afastar. Com os lábios ainda formigando, olhando-o nos olhos outra vez, antes que pudesse perceber, escaparam por meus lábios aquilo que queria ter-lhe dito há muito tempo, o que ficou mais claro e irrevogável para mim em todos aqueles anos afastados.

—Eu o amo... - sussurrei, tão baixo que eu mesma quase não pude ouvir.

Algo no olhar de Caspian mudou, clareou, contemplou, ávido, quando seus olhos encontraram os meus de novo, buscando como se quisesse não ter dúvidas quanto ao que ouviu. Eu desconhecia o que havia se passado em sua vida, ou quanto tempo havia ido embora enquanto estive longe, sabia quais obrigações recaíam sobre ele e os rumos diferentes que podia ter tomado. Não era tola, meu lado racional me convencia, na mais esperançosa fantasia de reencontro, que ele não passaria a vida todo no aguardo de alguém que não voltaria. Mas ali, quando aquela confissão escapou de mim, me dei conta de que o que se passara não importava. Se houvesse qualquer circunstância que nos impedisse, lidaria com ela depois. Precisava ser dito, precisava ser ouvido, e eu não abriria mão desse momento de novo.

— Espero por isso há três anos – Caspian sussurrou, acariciando meu rosto com o polegar e abrindo um sorriso amplo e sincero. Então, ele reiniciou o beijo com mais urgência, aprofundando-o. Por um momento achei que o chão sairia de sob meus pés, ou que eu desfaleceria até ele. Meus dedos mergulharam no cabelo de Caspian, amparando-me e trazendo-o mais para mim enquanto seus braços apertaram mais minha cintura. Aquele frio que antigamente se alojava em minha barriga agora subia pelas costas junto com as mãos de Caspian. Quebramos o beijo por falta de ar, ofegando levemente. Sua testa tocou a minha e ele não se afastou um centímetro sequer.

—Por todo esse tempo, não houve um momento em que eu não a desejasse de volta, ou que a amasse menos – comentou, fazendo-me corar mais. - Temos muita coisa para conversar.

—Com certeza – ri um pouco. Caspian sorriu e mergulhamos em um silêncio novamente, conectados pelo olhar, a euforia do reencontro começava a se acalmar, pelo menos por enquanto.

—Gostaria de ficar mais, mas preciso ir, Drinian está me esperando – disse, um pouco relutante. Assenti um par de vezes.

— Certo – concordei, subitamente desconcertada pelo alvoroço que ocorria em mim.

—Junte-se a nós quando estiver pronta – acrescentou, casual.

—Sim! Claro, irei daqui a pouco.

Ele assentiu, olhou-me mais uma vez antes de deixar um beijo em minha testa e despedir-se em silêncio. Caspian caminhou até a porta, mas parou com a mão na maçaneta, dirigindo-me um último olhar. Aquele sorriso branco e leve se fez presente em rosto outra vez e foi impossível não retribuir. Caspian balançou a cabeça levemente, lambendo os lábios antes sair e fechar a porta. Cobri o rosto com a mão como se o gesto pudesse acalmar, de algum modo, a explosão que estava prestes a acontecer. Permaneci no mesmo lugar porque se me movesse um centímetro que fosse, cairia com as pernas fracas, tinha certeza.

Ofeguei ao lembrar a sensação de seus braços me envolvendo, a carícia dos lábios nos meus, a corrente elétrica ainda percorria cada canto de meu ser. Concentrei toda minha atenção na tentativa de retomar o domínio e a firmeza de meu corpo. Fui bem-sucedida alguns minutos depois e, após conferir mais uma vez minha imagem no espelho para confirmar que tudo estava em ordem, saí da cabine, sendo recebida por cumprimentos gentis, uma brisa fresca que trazia o cheiro do mar, um céu azul límpido e o começo de uma aventura inesquecível.