Mar de Lírios

As Sete Espadas.


Caspian pôs um braço a minha frente, puxando-me levemente para trás de si de forma protetora. Alguns segundos mais tarde, um homem de meia idade usando uma longa túnica folheava o livro que antes flutuava só. Girou até ficar de frente para nós, iluminado à meia-luz no ponto em que estava, encarou-nos indecifrável.

Antes que alguém dissesse ou fizesse alguma coisa, os olhos do homem saltaram para a porta aberta atrás de nós. Caspian não se moveu, mantendo os olhos nele. Eu, porém, ainda segurando o braço de Caspian, olhei para trás devagar. Senti o fôlego escapar de meus lábios quando o vi, parado à porta, imenso e imponente.

—Aslam...! – sussurrei. Antes que eu pudesse notar, já corria até ele, não hesitando um segundo em abraçá-lo. Ele deu aquele rugido suave que mais parecia uma risada.

—Aslam... – Caspian eoou, tão surpreso quanto eu.

—Que bom que está aqui. – disse a ele, ao soltá-lo. Aslam olhou em meus olhos, tão perto e profundo que tudo se fez claro como água. – Você sempre esteve, não é?

—Sim. – respondeu ele, calmo, com o riso ainda dando ares em seu rosto. – Sempre.

Foi inevitável sorrir, mesmo o constrangimento fazendo-me corar pelo que fizemos minutos antes. Ele certamente sabia. Desviei para o seu lado. Até o mago, possivelmente, sabia também. O olhar de Aslam encontrou Caspian, que logo de ajoelhou, curvando a cabeça. Aslam aproximou-se.

—Levante-se, Rei de Nárnia. – disse a Caspian com certa doçura em sua voz. Ele obedeceu e pôs-se de pé. O olhar de Caspian se cruzou com o meu por um rápido segundo, o suficiente para que eu soubesse que havia concluído o mesmo que eu.

—É muito bom vê-lo. – Caspian disse a Aslam.

—Vejo que tem conduzido seus homens em segurança nessa jornada. – Aslam falou-lhe, fazendo uma breve pausa. Seus olhos dourados repousaram no senhor mais atrás. – Então já conheceram o dono desta casa: Coriakin.

Coriakin fez uma reverência profunda e solene a Aslam, fazendo os cabelos brancos e a túnica vermelha reluzirem com o movimento.

—Seja muito bem vindo a esta humilde casa, meu senhor. – a voz de Coriakin era cálida, terna e intensa ao mesmo tempo.

—Como vão seus súditos, Coriakin? – prosseguiu Aslam enquanto o mago se aproximava de nós, silencioso com os pés descalços. – Espero que não o estejam aborrecendo tanto.

—Ora, já estou acostumado com eles. – respondeu o mago tranquilamente. – Embora ainda perca a paciência de vez em quando.

Aslam deu outra risada baixa. Mais próximo a mim, Caspian lançou-me um olhar estampado com certo incômodo, e também alívio por Aslam estar ali. Sabia que a página arrancada do livro devia estar lhe pesando mais do que rochas. Se o mago sabia sobre ela, provavelmente nos cobraria. Deveríamos perguntar a Aslam o que queríamos que aquele feitiço respondesse.

—São pedras sendo lapidadas. – continuou Aslam. – Infelizmente, no caso deles, levará muito, muito tempo. Além disso – acrescentou. – Devo partir.

—Mas já? – perguntei. Com um leve movimento nas orelhas, Aslam olhou-me.

—Não se preocupe – disse tranquilamente. – Preciso avisar Trumpkin, levar notícias a ele. Nosso Caro Amiguinho está muito preocupado sem notícias de seu rei. – olhou para Caspian. – Está contando os dias para seu regresso. – Então olhou para nós dois antes de completar: - Nos veremos em breve.

Com o coração apertado, assenti com uma leve reverência e Caspian fez o mesmo, seguido de Coriakin. Numa despedida silenciosa, Aslam se retirou da sala e desapareceu pelo corredor. Algo me dizia que ele sequer dera poucos passos antes de estar fora do alcance de toques ou vistas.

—Como sempre. – disse Coriakin, divertido. – Jamais domesticado, não é mesmo?

—Acho que acabamos deixando-o visível também. – Caspian disse ao mago, atraindo minha atenção de volta. Coriakin maneou a cabeça.

—Como também fizeram a Aslam. – explicou.

—Quer dizer... – comecei. – Quer dizer que Aslam ficou visível por causa do que recitamos? Como isso é possível?

—Ora, ele sempre está por perto. – continuou o mago. – Mesmo quando não o vemos.

Era perfeitamente verdadeira aquela afirmação. Sorri.

—A propósito – ele voltou-se para nós. – Gostaram do meu livro?

—Certamente. – garantiu Caspian.

—É mesmo impressionante. – acrescentei. Um bocejo tomou o mago.

—Desculpem-me – pediu. – Ficar invisível deixa a gente meio sonolento. – rimos um pouco. – Devem estar com fome.

—Sim, um pouco. Não sei dizer nem que horas são. – concordei. – Mal vimos o tempo passar.

—Bem, aqui a hora da fome é à uma. – disse, com um sorriso gentil. – Por favor, me acompanhem, são meus convidados.

—Será um prazer. – falou Caspian.

Coriakin seguiu na frente em seus passos silenciosos. Pelo corredor, as portas fechadas, os símbolos misteriosos, a decoração estranha, nada mais parecia tão assustador quanto os moradores invisíveis fizeram parecer. Aquilo era realmente intrigante. O mago nos levou até outro cômodo onde havia uma grande mesa. Com apenas uma ordem, a mesa encheu-se de comida, pratos, talheres, e o aroma apetitoso encheu o ar. Não havia percebido o quanto estava com fome até sentir aquele cheiro. Nos assentamos a pedido do mago.

—Sabia que estávamos aqui? – perguntei quando me servi.

—Eu sabia que um dia viria, pelo menos desde que permiti que eles ficassem invisíveis. - respondeu-me.

Havia muita luz naquele cômodo, e eu podia ver nosso anfitrião com clareza. Coriakin tinha feições gentis e amistosas, olhos sábios que diziam que tinha muito mais anos do que parecia. Sorri-lhe de leve.

—Estão gostando? Quis oferecer uma comida menos parecida com a que vêm comendo.

—Está maravilhoso. – garanti. – Obrigada.

—Diga-me, senhor Coriakin – falou Caspian. – Há quanto tempo está aqui?

—Ah, mais tempo do que eu parei para contar. – respondeu humorado.

—Seus súditos sempre foram invisíveis? – perguntei.

—Oh não, não. Invisíveis não, mas teimosos eu garanto que sempre foram. – falou. – Essa história de ficar invisível foram eles que fizeram. Se achavam criaturas belíssimas. Na verdade é uma questão muito delicada. Eu diria que os mudei para melhor, e se os vissem concordariam comigo; mas acharam que estavam tão horríveis que não conseguiam mais olhar uns para os outros. Então a filha de um deles recitou o feitiço e todos nós ficamos invisíveis.

—São tão pretenciosos assim? - impressionou-se Caspian.

—O chefe principalmente.

—E todos fazem tudo o que ele diz. – completei. Coriakin concordou.

—Achei que o senhor era seu líder. – Caspian comentou.

—Oficialmente sim – deu uma risadinha. – Mas já devem ter notado que não me vêem dessa forma.

—Infelizmente. – lamentei.

Os olhos de Coriakin pousaram sobre mim acompanhados de um leve sorriso. Ele fez um único aceno de cabeça, agradecendo em silêncio. Continuamos a refeição e a conversa agradável, como se não nos víssemos há muito tempo.

—Será que o encanto já se desfez sobre eles? – perguntei, após meu último gole.

—Certamente. Agora que terminaram sua refeição podemos ir vê-los. – respondeu o mago, pondo-se de pé. Nós o imitamos.

Um gesto de mão e as travessas e louças sujas desapareceram. Coriakin gentilmente nos conduziu até outro cômodo discorrendo sobre o dia agradável que fazia lá fora. O dia ensolarado iluminava muito bem aquela sala tal qual fazia na do livro mágico. Aquele ambiente, no entanto, era cheio de instrumentos curiosos dos quais consegui reconhecer alguns astrolábios, telescópios, teodolitos. Todos muito bem cuidados, chegavam a reluzir fazendo seus detalhes parecerem muito mais complicados.

Pilhas de livros e papéis cuidadosamente arrumados ocupavam tampos de mesas e assentos de cadeiras ao redor da sala. Os olhos de Caspian percorreram o cômodo com certo deslumbre enquanto o mago se aproximou de uma das enormes janelas ladeadas por pesadas cortinas verde-musgo.

—Vejam só – nos chamou para perto. Conforme nos aproximamos da janela, a visão dos campos bem cuidados do lado de fora foram tomando forma e cores vibrantes. – Ali estão os meus tontos.

Pareciam cogumelos espalhados pela grama e confesso que foi difícil acostumar a vista para que suas formas começassem a fazer sentido. Ao meu lado direito, Caspian os olhava com curiosidade, do lado esquerdo Coriakin os observava com olhos acostumados, porém sempre atentos e sagazes. Então, eles começaram a despertar e a forma confusa em que faziam a sesta logo se desfez, os pés enormes desciam ao chão e os corpos gorduchos erguiam-se.

Não demorou para que saltassem tão alto que nos surpreendeu, enquanto Coriakin apenas deu um risinho baixo. Pulavam cada vez mais alto e o som do impacto no chão reverberava como se o solo tivesse estremecido.

—E pensar que nos fizeram crer que eram feras horripilantes. – Caspian comentou. Eu ri. Senti os olhos do mago sobre nós antes de tornar-se para ele. – Agradecemos por ter nos acolhido.

—Por favor, são meus convidados. – disse Coriakin, pondo uma mão sobre o peito e com um olhar cúmplice. – Faz muito tempo que não recebemos visitas, principalmente de um rei e uma rainha.

A dúvida que se formou em minha mente deve ter transparecido em meu rosto no mesmo segundo, por que Coriakin sorriu para mim.

—Não me olhe assim. – disse ele descontraído. – Aslam não precisava me dizer que eu também estava diante de uma rainha. Basta olhar para os dois. – fez um gesto em nossa direção antes de começar a caminhar para fora da sala. – Mas agora vamos, temos que salvar seus amigos antes que os Tontos os enlouqueçam.

Assim ele sumiu para o corredor. Troquei um olhar com Caspian, recebendo um sorriso gentil em resposta, acompanhado de um olhar caloroso.

—Compreendo perfeitamente o que ele diz. – falou Caspian. Sorri de leve. – Vamos encontrar os outros. – chamou, permitindo um toque suave e quente em minha mão. Um simples roçar da ponta de seus dedos em minha palma, que foi embora conforme Caspian seguiu o mago.

Fui logo em seu encalço. Acho que também compreendi o que o mago dissera, mas algo em mim receava admitir. O alcançamos e seguimos para o lado de fora onde encontramos Drinian, Rip e os outros cercado pelos Tontos. Embora o capitão não fosse de demonstrar sentimento, o alívio que sentiu ao nos ver foi perceptível.

—Majestades! – disse ele e todas as atenções se voltaram para nós. Alguns marinheiros ecoaram a mesma palavra que ele, mas foram abafados pelas vozes dos tantos.

—O Opressor!

—Ela conseguiu!

—O Opressor!

—Isso mesmo! Disse bem!

Eles se afastavam aos saltos a medida que Coriakin se aproximava conosco. Os homens guardaram suas armas.

—Senhores. – Coriakin os cumprimentou.

—Homens! – Caspian apresentou. – Este é Coriakin, Senhor desta Ilha. Uma sequência de pequenas reverências foi executada.

—É o que ele pensa! – disse um dos Tontos, de cabelos ruivos, entre saltitos. – Você nos enganou, mago!

—Eu não enganei vocês! – protestou Coriakin, caminhando novamente em direção a eles que continuavam recuando para longe dele como se fosse contagioso. – Permiti que ficassem invisíveis para sua própria sua própria proteção.

—Proteção?! – protestou o pequeno.

—Opressor!

—Opressor! – ecoaram os demais, saltando para longe.

—Eu não oprimi vocês! – insistiu o mago, ainda caminhando, levando-os para trás apesar dos protestos. Os Tontos então saltavam para trás dos arbustos cada vez mais para trás. O mago lançou o braço em direção a eles e flocos brancos se espalharam pelo ar. – Agora vão!

Isso os fez saltar em volta de um Eustáquio assustado mais ao fundo, fugindo e desaparecendo no jardim. Caspian e eu nos aproximamos dos homens e Coriakin voltou para perto de nós.

—O que era aquilo? – perguntei.

—Algodão. – explicou tranquilamente. – Mas não conte a eles.

Drinian entregou a Caspian e a mim nossas armas, incluindo a espada que Lorde Bern nos entregara e não estava conosco pela manhã. O mago retomou o caminho para a mansão e sinalizou para que o acompanhássemos, pois todos eram seus convidados. Guiou-nos pela escadaria e novamente pelo corredor, sua sua expressão era mais séria e preocupada. Devolvi a aljava para minhas costas.

—Então permitiu que ficassem invisíveis para proteção. – comentei. Coriakin confirmou.

—Parecia o jeito mais fácil de protegê-los.

—Do nevoeiro? – perguntou Caspian. O mago virou-se para ele.

—Do que está por trás do nevoeiro. – Então sumiu para dentro da última sala, a da biblioteca.

Caspian e eu trocamos um olhar antes de segui-lo, parecia que muitas perguntas poderiam ser respondidas por ele. A biblioteca belíssima logo chamou a atenção dos demais, que olhavam para cima e muitas bocas estavam abertas. Vi Coriakin caminhar para o meio dos livros e apanhar dois pergaminhos, ao voltar-se para nós, desenrolando-os amplamente em nosso meio.

Sem dúvida era mágico. Senti meu fôlego sumir quando os dois pairaram sobre o chão, em branco, tendo somente as bordas completamente ocupadas com desenhos que pareciam estar vivos. O som suave de uma trompa foi ouvido, vi meus irmãos e eu sentados em nossos tronos durante o coração. Nos movíamos, eu quase podia ouvir aquela imagem. Mesclada a esta, estava uma representação do duelo de Pedro e Miraz, Caspian soprando a trompa.

—Até que é bem bonito – a voz de Eustáquio quebrou o silêncio. Olhei para ele, contendo o sorriso. Ele ficou desconcertado no mesmo segundo, percebendo que pensara alto demais. – Para um mapa de faz de conta de um mundo de faz de conta.

Alguns grunidos foram ouvidos em seguida

—Meu bom capitão. – soou Coriakin, atraindo a atenção de Drinian que estava de pé do lado oposto. – Teria a bondade de relatar com detalhes sua viagem e tudo o que encontraram desde que zarparam de Nárnia?

O pedido pegou Drinian de surpresa e ele hesitou, lançando um olhar para Caspian. Ao meu lado, Caspian assentiu para ele uma vez, então Drinian pigarreou e começou sua narrativa. Para crédito de Eustáquio, ele não gritou, correu ou demonstrou mais que um arregalar de olhos quando os detalhes começaram a aparecer no mapa. Conforme Drinian falava, os detalhes impressionantes e precisos iam tomando forma nos dois mapas em proporções exatas.

Os detalhes eram tão vívidos que a água e as nuvens que pairavam sobre ela pareciam mover-se com o vento, as ilhas surgiam com detalhes mínimos de tirar o fôlego. Nas bordas, outras imagens apareciam: meu resgate no mar, as Ilhas Solitárias e a luta contra os mercadores, o Peregrino deslizando pelo azul do mar e então a mansão em que estávamos. Quando Drinian terminou seu relato e sua última palavra tomou forma no mapa, Coriakin fez um gesto de mão e mais milhas marítimas apareceram nos mapas até outra ilha surgir, seguida de outra e de uma terceira.

—A fonte de seus problemas – disse o mago. – apontando para a última das novas ilhas. – A Ilha Negra. O lugar que todo mal espreita. – olhou para Caspian. – Pode tomar qualquer forma e fazer seus piores medos virarem realidade. Busca corromper toda bondade, roubando a luz deste mundo.

—Como vencemos isso? – perguntei.

—Vocês devem quebrar o feitiço. – respondeu, seu olhar era tão profundo. Coriakin indicou a segunda espada de Caspian. – A espada que carrega, existem outras seis.

—Já viu todas? - surpreendeu-se Caspian.

—Sim.

—Os seis fidalgos de Telmar. – concluiu Caspian. – Eles passaram por aqui?

—De fato.

—E para onde foram? – perguntei. -Para onde os mandei. – outro gesto de mãos seguiu as palavras do mago e o mapa moveu-se, para a segunda ilha que aparecera, maior e mais viva. Pude ver pássaros voando pelo litoral. – Para quebrar o feitiço, devem seguir a estrela azul até a Ilha de Ramandú.

Conforme falou, um ponto azul brilhante pairou acima das nuvens no mapa, indicando a Ilha.

—Lá devem pousar as sete espadas na Mesa de Aslam. Só então o verdadeiro poder será libertado. – os olhos do mago pousaram em cafa um de nós, como para se certificar de que ouvíamos com atenção. Então continuou: - Estejam alerta. Todos serão testados.

Senti um arrepio subir por minhas costas.

—Testados? – perguntei. Coriakin olhou-me com cuidado.

—Até pousarem as sete espadas, o mal estará com a vantagem. E usará tudo em seu poder para tentá-los. – seu olhar tornava-se mais grave e intenso. – Sejam fortes. Não caiam em tentação. – ele moveu-se e olhou Caspian. – Para derrotar as trevas, tem que derrotar as trevas dentro de você.

Caspian fez um movimento mínimo, apertando a mão em volta do punho da espada, mas permaneceu firme. Coriakin era sempre gentil, porém seu olhar e suas palavras transmitiam perfeitamente a magnitude do que enfrentaríamos.