– O sofrimento é o intervalo de duas felicidades.

Dessas coisas óbvias que se ouve por aí. Corrobora com minha velha teoria de que quando estamos muito felizes, algo ruim vai te puxar o tapete, e que, por essa lógica, algo muito bom virá após uma coisa catastrófica.

Essa é, por incrível que pareça, a teoria otimista. Ou realista. Ou factual.

– Vinícius quem disse.

Dani levanta um livro da pilha que traz na mesa, nos mostra a capa e os autores célebres que compunham a organização de pensamentos soltos. Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, entre outros. Seu Chico, o zelador da faculdade, nosso amigo, aproveitava que era o penúltimo dia de aula para entregar o livro que tomou emprestado da tia da Dani, um livrinho que ela deu uma folheada e, dando atenção a uma página aleatória, leu esta frase.

Ao seu ponto de vista, batia bastante com o fato de ela estar preocupada com uma de suas disciplinas, também no risco de ficar de final. Digo também por eu estar no mesmo barco, assim como diversos do grupo. Professora Silvana esse semestre não decepcionou, pegou no pé de todo mundo e ferrou bonito conosco.

Sorte para as turmas de Dani e Bruno que não tinham aula com ela, mas já sofriam antecipadamente sabendo que iriam penar na aula dessa mulher. Correu até uma piadinha, vinda do Gui (com merecido tapa meu), de que, se eu mudei o comportamento pra melhor de Djane, bem que poderia aproveitar o balanço da coisa e levar Silvana para o mesmo caminho. Ele era outro que estava na corda bamba, esperando pelos resultados que sairiam dali em breve no mural.

Hoje foi nosso último dia no estágio, ambos carregávamos expressões de saudade. Não é todo mundo que pode dizer isso de suas experiências de primeiro trabalho, sorte assim não cai todo dia. Foi uma que a gente agarrou de última, na verdade, se pensar que quase ninguém havia se atentado por essa opção da distribuidora Muniz quando saiu a lista de lugares aceitando estagiários. Só o traste do André que foi lerdo o bastante para se atrasar e ter que ser incorporado ao time junto conosco.

Às vezes me pergunto o que teria sido se tivesse escolhido a empresa de eventos, uma que atua principalmente em casamentos, foi a outra opção na lista em que pensamos. Provavelmente para lá André não iria, e a família de Gui ia dar seu jeito de se infiltrar (que era sua grande preocupação, pois a empresa lidava com clientes da alta elite e isso é razão o suficiente para os pais dele), eu o seguiria, pra pelo menos nos manter próximos já que eu não queria um ramo próximo de Flávia.

Enquanto André se juntaria a outros estagiários, de outras faculdades, que atazanasse a vida de Thiago, eu e Gui não teríamos Iara (ou Filipe). Vinícius não gostou muito no começo por causa de uma possível proximidade que pudesse surgir (e que surgiu, de fato), mas teve que aceitar, afinal, a escolha já havia sido aceita e todos tínhamos que lidar com isso (e eu principalmente com a presença desagradável de André). O que quero dizer é que, apesar dos apesares, foi muito boa escolha.

E que compensou bastante. O relatório que recebi essa manhã, em cópia, do meu supervisor, assim como Aguinaldo (ele me falou mais cedo, todo contente) funcionava como um formulário de entrada oficial para tornar-nos estagiários remunerados na empresa. Era uma ótima notícia! Seria um novo treinamento, sem ligação com a faculdade e dessa vez, produzindo, ganharíamos por isso. Nos restava apenas esperar, saber se seríamos aceitos.

Cheguei a me preocupar, contudo, com minhas advertências descritas no relatório, só que tanto Thiago quanto Iara me disseram para relaxar, que aquilo não era algo que manchava meu currículo. Na realidade, ajudava muito no quesito de saber como eu trabalhava e como isso me ajudava a produzir. Como um tapa na cara de cliente na porta da empresa e uma confusão com documentos poderia promover isso, eu perguntei, claro.

– Você tem potencial, garota. Apenas isso.

Minha preocupação na verdade era sobre aquele velho quesito de privilégios, meu supervisor e Iara bem sabiam. E viram no meu olhar, não tendo necessidade nem de soletrar alto e claro para eles. Me deram pelo menos a certeza que não se tratava de nada disso, nem Filipe nem Iara estavam envolvidos nessa questão para intervir por mim.

Era nosso último dia numa quinta-feira por na sexta-feira ter um encontro com fornecedores e clientes tão importantes que fariam um evento para isso. Como estagiários não contratados, ficamos de fora dessa. Iara parecia uma barata tonta de um lado para o outro toda hora, cheia de coisas para fazer, prazos para bater, reuniões para marcar, organizações para checar, e ficava passando na nossa sala pra se despedir.

Ela se despediu de nós só umas sete vezes do que pude conferir.

Até Thiago parecia um pouco saudoso, foi nos deixar no saguão na saída enquanto conversávamos. Havia criado certa relação com meu supervisor, Aguinaldo nem tanto com o seu, mas era engraçado que ele tinha se ligado ao meu também, lembrando aquele episódio da sobrinha de Thiago, que aparecera do nada no horário do expediente e a gente que teve de dar um jeito para segurar o choro da menina. Bons tempos.

– A felicidade está no sábado, tão próximo.

Retrucou Yuri para o resmungo de Daniela. Estávamos em grande número em duas mesas juntas no pátio esperando alguns resultados. Com a conferência de urgência que alguns professores assumiram, turmas estavam espalhadas pelo prédio e pátio sem aula. Na minha turma seria horário de Djane, mas ela nos liberou logo no começo distribuindo nossas notas e trabalhos, com notas mais razoáveis em relação a uns períodos passados.

Não que o fato de ela ter sido grosseira conosco no passado ter a ver com notas ruins, é só que ajudou muito o fato de a professora ter se disposto a interagir mais, a participar mais até, contribuindo para um bom estudo em conjunto. Antes ela apenas nos jogava conteúdo praticamente. Quer dizer, na sua fase ruim. Houve outras épocas em que ela havia sido boa. Agora tinha se superado.

Alguns professores, por outro lado, optavam por mandar por e-mail a relação de notas, outros, como Djane, preferem conversar com os alunos dentro de sala de aula, pra tirar dúvidas caso haja, mas Silvana nunca largava essa mania (ou devia dizer pragmatismo ultrapassado?) de colocar as notas gerais nos murais.

Já havia dado briga na direção por direitos e privacidade dos discentes, por reclamações variadas. Isso porque havia um sistema online em que todos os professores deveriam postar as notas, mas Silvana (e outros dois professores mais, com quem eu não tinha aula, mas uns amigos como Bruno e Dani sim) era dessas de divulgar as notas às vistas de todos, não tinha jeito. No sistema mesmo, só muito depois. Então ficávamos na espera de sair as folhinhas mais desconcertantes do semestre.

Quer dizer, já tinha pra mim que na matéria dela eu havia ficado de final, não seria uma surpresa. Faltava só saber por quantos pontos. Isso me faria permanecer na semana extra da faculdade, destinada aos alunos que têm uma última chance para resgatar uma nota boa ou ser reprovado. Reprovada eu não seria, disso tinha certeza, minhas outras notas davam uma boa assegurada.

– E nas férias.

Replica Bruno, atento a qualquer movimento na área dos murais. Quase pula quando Luciano, da recepção, sempre o cara que leva as notas, desponta no pátio com folhas e fitas adesivadas em mãos. Uma comoção de alunos se forma ali num último suspiro de expectativa antes de se levantarem.

“E o casamento”, lembro subitamente enquanto observo os outros na correria. Ia ficar por ali mesmo, esperar a poeira baixar antes de ir verificar minha nota, sabia que uns mais exasperados pelas suas situações não aguentavam o suspense. Brincalhona, grito um “vejo vocês na semana que vem!” para os que se levantam e sou recebida com olhares e gestos maldosos, para um gargalhar dos que ficaram ao meu lado, Gui e Flávia.

Havia o casamento do enfermeiro bonito dali uns dias, eu teria que verificar se preciso comprar um vestido logo, mas tenho pra mim de resolver depois dessa parada de notas, pois quero ficar tranquila primeiro. Até lá, ainda tenho um tempinho.

Sávio também permanecera na mesa, porém, era quieto demais para esboçar qualquer coisa ademais quando se tratava de estar próximo a mim. Por causa de Flávia, talvez, ele se mantinha mais presente, afinal isso ajudava no quesito manter os ex-pombinhos numa distância segura.

Acho que tanto essa minha relação dificultosa com Sávio quanto a instabilidade da relação de Flávia e Aguinaldo eram infelicidades esperando boas novas. Boas novas como os pulinhos de felicidade de Dani que visualizamos de camarote.

Se pela lógica minha (ou de Vinícius de Moraes), se estávamos num estágio de sofrimento, dali pra frente viria algo bom. Talvez uma reviravolta boa nas nossas notas, talvez uma explicação adequada aos mistérios que rondam aquele clima meu com Sávio, quem sabe... E é isso, quem sabe, pois não há noção alguma sobre quando uma coisa boa acontece.

Quando surge um apito ao meu celular e vejo o remetente, de primeira acho que é algo ruim. Mas quando abro, com uma coisa revolvendo dentro de mim, até alivio. Anderson dizia:

“Oi, Milena. Preciso falar com vc. É sobre Vinícius, é segredo. Coisa da faculdade, coisa boa. Podemos nos encontrar ainda hj? É importante.”

Me repreendi por quase pensar mal de Anderson, ele era tão bom amigo para meu Vini. O que haveria de ser aquilo? Vini teria aprontado mais uma e Anderson iria entrar no jogo? Seria muito a cara deles... Garotos e suas bobagens, eu acredito.

O caso é que entre ser a velha Milena desconfiada e a nova Milena esperançosa, optei por essa última. Devia essa a eles.

~;~

Eu, como o próprio poeta Vinícius de Moraes, esqueci uma teoria básica: não há nada ruim o bastante que não possa piorar.

É inevitável me sentir desconfortável toda vez que o encontro. Parecia que quanto mais eu queria me ver longe dele, mais assombração me fazia, mais amigo do meu namorado ele ficava. Às vezes era tão mais fácil, conseguia me afastar dos meus medos interiores, conversava de boa com ele. Outras, o nervosismo me batia mesmo. Com um maldito lembrete sobre o que deixo pra trás, que não consigo apagar. Nem rasgar, nem picotar, nem jogar numa lixeira fora de alcance como havia feito com o recado de Sávio que Vini quase leu.

Isso de ficar me livrando de um pra topar com outro eu não mereço. Mas tento relevar. Principalmente depois de ter me comprometido a não pensar mal ou me dispor aos nervos, se o que disse anteriormente pode ser bom pra mim. Ou para Vinícius como prometera na mensagem.

Por todo o caminho eu ia trocando mensagens com ele praticamente.

Vinícius, não Anderson.

Essa noite não poderia me buscar e provavelmente nem me ver, aperreado como estava com uma disciplina de hoje e amanhã, o prazo estava muito curto para um contratempo de última que surgira em seu caminho. Fiquei me perguntando se era sobre isso que Anderson havia mencionado, mas... o que teria eu a ver nesse caso? O que haveria para ser necessário falar comigo?

Bruno me deu carona, me deixou onde pedi, na lanchonete do Celso na avenida de meu bairro. Lá eu tinha um histórico de encontros suspeitos e, ok, uns agradáveis. Esperava que esse fosse um desse último.

Mas minha mente era consciente o bastante de ao menos ter noção de quem estava ali para me fazer engolir a seco. Não deu jeito, meu nervosismo se sobrepôs à curiosidade do chamado. Mais ainda quando Anderson puxou a cadeira antes de se sentar, tomando a minha atenção. Estávamos numa mesa mais afastada, preferi por privacidade.

– Milena.

– Anderson.

Assenti educada, como um cumprimento sem o observar muito. Na verdade eu continuava a dobrar um panfleto pequeno que encontrei sobre a mesa quando cheguei, isso me ajudava a evitar qualquer contato demais com ele. Só que aí ficou um silêncio. Na mesa, digo, pois em junho tem todo tipo de festejo em qualquer lugar e, embora não estivesse tendo um por ali por perto, havia muita movimentação comercial.

Por dentro, meu coração se acelerava sozinho por conta desse suspense. Mais uma vez eu esperava por algo que me aliviasse. Que fosse isso sobre Vinícius. Meu Deus, eu podia implorar por isso, porque Anderson não falava, só me fitava discreto e impassível enquanto eu me forçava a não dar de encontro com o olhar dele.

– Então...?

Anderson apenas se remexeu em sua cadeira, pareceu se esparramar mais ao assento, estava desconfortável. Ele chegou a abrir a boca para pronunciar algo, porém, nada, novamente, veio. Caiu então a primeira ficha na minha cabeça. Não era algo bom.

Definitivamente, quando ergui um olhar receoso para seu rosto, vi que não era algo bom. Hesitei. Era com Vinícius? Havia acontecido alguma coisa?

Droga, por que ele não falava logo?

Incitei apenas, para não demonstrar qualquer desvio.

– Anderson...?

Inspirou profundamente, levou uma mão aos cabelos lisos e claros no processo. Uma mecha sua tornou a cobrir-lhe um dos olhos após o movimento, que era, na realidade, um alerta. Tava começando a me assustar.

– Desculpe, Milena, é que o que tenho a tratar não é fácil...

– Isso eu já percebi. Vinícius... er... precisa de algo?

– Na verdade, não é sobre Vinícius. Tem um tempo que eu gostaria de falar com você...

– Comigo?

– Por um tempo você tava viajando, por outro, eu quem estava fora... Tive que avaliar como poderia abordar isso. E com Vinícius sempre por perto... hã...

Hã o quê, caramba?

Estava a ponto de saltar de meu lugar e puxá-lo pelo colarinho, forçá-lo a dizer algo mais coerente. Havia, contudo, um peso no meu corpo, um que me colava ao assento. Isso sem falar de um negócio esquisito ao estômago, engoli a seco até. Porque... O que era aquele rodeio todo?

Hesitei novamente, por não ter certeza.

– O-o q-que você quer dizer?

E num segundo, o incômodo tomou novas proporções. Pelo modo com que me direcionou uma expressão firme, afirmativo, outra ficha caiu.

Será? SERÁ?

Ó céus, não aqui.

Com os nervos começando a pipocar, senti as mãos suarem, prendi uma na outra. Quando Anderson se debruçou sobre a mesa, que quase saltei para trás por meu alerta máximo, o ar já me faltava. Não importava o quanto vento batesse e levantasse meus fios, o ar parecia me isolar.

Com meras palavras, Anderson terminou de sugar esse ar:

– Eu sei, Milena. De você. Eric. Kevin. Denise. O caderninho da Hello Kitty.

E só não caí por já estar sentada.

~;~

Me vi foi naquela mesma bolha sofrida, sensível por qualquer impacto, qualquer toque. Batem na película e tudo treme ao redor. Me acharam, tremi junto. E não foi para resgate, foi para remexer em tudo, sem se importar com quem estava ali. Uma vez lá dentro, não haveria defesas mais.

Por que agora? O que Anderson queria de mim?

O que esperava ser a verdade? O que esperava ser a resposta? O que acha que resolveria? O que houve com Kevin, afinal?

Não é como se eu não tivesse tentado consertar ou compensar o que passou com as pessoas envolvidas, porque eu tentei. Elas que deliberadamente se afastaram de mim. Eric também o fez. Ele, no entanto, fora o único que ficara, único com quem pude compartilhar da dor, se era a mesma da dele. E mesmo rasgados como nos encontrávamos, seguimos em frente, um passo de cada vez, cada dia por cada dia, decepção por decepção. O que deu pra aguentar.

Entendo porque Kevin se mudara, assim como outros. Imaginava que lá, longe, ele tinha conseguido se restabelecer. Bom, torcia por isso, até Anderson me cuspir que não. Kevin não teve exatamente sucesso nisso.

Apesar de muito determinado, sua abordagem era muito calma.

– Olha, só preciso desse caderninho, ok?

A conversa era muito quieta, por incrível que pareça. Anderson ora e outra, por minha resistência, explodia um pouco, mas logo recuperava sua paciência. Se é que me exigir o que exigiu com certa autoridade poderia ser chamado de paciência.

– Que caderninho? Do que você tá falando? Eric? Kevin?

– Não se faça de boba, eu sei que você ainda o tem.

Acho que sempre vou odiar o fato de ter estado tão perto dele, de nossa pouca ligação, de ele ter me conhecido no passado, e ser esse passado justamente o qual quero que fique obscuro o quanto tempo for preciso. Eu não tinha como consertar sem me envolver, por isso fui deixando, fui me acostumando à sua eminente epifania. Ele poderia nunca ter a tido, assim como ter tido. Teve. Mas percebo que meu ódio é maior por não ter lidado com isso da maneira como deveria.

Praticamente havia me entregado só pelo modo com que reagi. Por mais que tentasse me manter impassível, meu corpo me traía por me encontrar em pânico. Mas não era indefesa. Bom, não totalmente. Discuti, claro, mesmo chocada.

Neguei qualquer coisa que saiu de sua boca.

Isso, porém, em determinado tempo não funcionava mais, ele deu um jeito de me encurralar. Não cheguei a dizer com todas as letras, confirmar suas suspeitas, mas estavam ali nas entrelinhas:

– Não adianta, eu sei que tá tudo nesse caderninho.

– E você acha o quê, que eu ando pra cima e pra baixo com aquilo? Não tô com ele agora.

– Então ainda existe mesmo. Eric não tava muito certo sobre isso...

Foi um blefe...

Foi um maldito blefe! Me jogou verde, colheu maduro. Acabei por dar uma informação de mão beijada para ele!

Tudo era tão confuso e surreal que por um tempo ainda observei se tinha chance de eu escapar. Não, Anderson era grande o bastante para me parar. E mesmo que eu conseguisse, qual seria o ponto? Não dava pra fugir se ele “sabia”.

E que porra de história é essa de ele ter encontrado o Eric?

– Eric? Você falou com ele?

– Claro. Consegui encontrá-lo, as informações ainda estavam nebulosas, eu...

Queria poder subir umas oitavas no meu tom na discussão. O fato de estarmos em um lugar público ao mesmo em que ajudava, atrapalhava. Era uma desgraça de qualquer forma.

– Então esse tempo todo você estava só à espreita?

Isso parece uma ofensa para Anderson, que trinca o rosto irado pela minha insinuação. Ele esperava o quê, afinal, depois de toda sua insistência?

– Não, droga, as coisas só fizeram sentido, me chamaram atenção. Teu irmão e Vinícius comentaram sobre Denise e Eric. Mais precisamente sobre o que Murilo fez em Eric. Onde ele se encontrava. Conectei os pontos, ora.

Me joguei outra vez ao espaldar da minha cadeira, na dúvida de acreditar nisso, apesar de ser bem crível. Era justamente o que eu temi por muito, que alguém falasse algo do tipo por alto e Anderson captasse algo.

– Fiquei na minha, claro, ia dar bandeira pra quê? Eles estavam muito seguros. Depois procurei Eric no salão de dança, não foi difícil encontrá-lo. Não me reconheceu de primeira, mas botei ele contra a parede. Arranquei dele essa do caderninho. Que tá com você. Preciso dele.

A essa altura Anderson já estava bem nervoso. Não era grosso comigo, nem enérgico, apenas exigente. Insistente e teimoso tal qual eu, embora eu ainda desse meu jeito de contornar, enrolar mais. A batalha era dura, e nem por isso eu iria desistir fácil. Bufei por mais uma vez ele requerer o caderninho.

– O que faz te achar que apenas vou passar pra você? Não tem nada a ver com isso.

E aí ele mostrou um outro lado seu, mais calculista para meu horror.

Ele... ele tava me ameaçando!

– É um segredo. Quer dizer que você esconde de alguém... Ora, nem mesmo seu irmão sabe, eu o testei. Quer mesmo que abra minha boca pra ele? Pra todo mundo? Não queria ter que ser essa pessoa, mas se você insistir em não me entr...

Algo por dentro de mim explodiu por vê-lo assim, tão confiante. Eis que fui golpeá-lo, só que ele foi rápido de conseguir me interceptar. Afastou-se da mesa e segurou-me pelo pulso. Firme. Como estávamos numa ala mais afastada, ninguém percebera que eu havia avançado um pouco na mesa. Ou que eu borbulhava em nervos. Ou que Anderson estava também no máximo de seu controle.

Puxei minha mão, ele soltou. Não havia como o atingir, então o jeito era ativar minha autodefesa ao máximo. Me encolhi de braços cruzados, piscava rápido e mantinha me voz firme para não me entregar àquela postura dele. Mesmo que sentisse todo um mal estar, não ia me desfazer perante ele. Seria humilhação demais pra quem achava que eu fazia ceninha.

– Por que você tá fazendo isso?

Anderson desabafa, indignado. Como se tivesse um mínimo direito.

– Pelo meu primo. Kevin. Ele merece um ponto final nisso. Até hoje mal consegue se relacionar com as pessoas porque não confia em ninguém. E ele costumava ser uma pessoa fácil de lidar. Nunca foi mais o mesmo. Agora fala coisas pela metade... coisas sobre Denise. E... não importa. Aconteceu alguma coisa, eu sei. Eric não quis me dar os detalhes... Mas há algo que une todos vocês. E que separou todo mundo.

Ele tá sabendo demais, ainda que não saiba muito.

Apertei os olhos com os dedos antes de tentar enxugar o que começava a descer.

Como eu faria para aquilo parar?

– Nada de bom veio disso, ok? V-você acha q-que não... que eu não tente-ei?

Não importava o quanto eu me sentia mal ou procurava não evidenciar isso, Anderson queria ir fundo naquilo. Havia algo na sua voz, uma determinação fora do comum que ameaçava. Forçava sua entrada naquela bolha.

– Eric mencionou isso. Só preciso do caderno. E aí te deixo em paz.

Quase ri em meio à discussão, até parecia que iria realmente me deixar em paz. Não quando soubesse... Aquela não era a história dele e ainda assim agia desse jeito. Imagina se ele de fato estivesse envolvido.

Como pude cair tão fácil em sua armadilha?

Burra!

– Olha, eu só quero esclarecer as coisas, tá? Isso já foi longe demais.

Explodi mais uma vez, sem, porém, sair do casulo que armei pra mim mesma naquele banco e sem gritar, mas exclamo, exclamo porque preciso. Não tinha mais controle sobre as lágrimas. Nem sobre os soluços baixos que vieram. Ainda assim, não queria sua pena.

– É da minha vida que estamos falando! E isso ficou no passado.

Enfrentou-me e eu rosnei de raiva.

– Se ficou no passado, por que tá tão nervosa?

– Me custou muito deixar tudo isso pra trás.

Ele, por outro lado, se manteve resoluto.

– Então traga de volta. Simples. Só me entregar o caderno.

– Não posso.

– Por que não?

– Porque é difícil, oras. Você acha que sabe das coisas, mas não sabe de nada. Esqueça. Apenas esqueça!

Levantei de supetão, havia escutado o bastante, encerrava aquele embate. Peguei minhas coisas e ele entendeu minha menção de ir embora. Não havia consumo na mesa, então nem o garçom se deu o trabalho de verificar o que acontecia. Anderson, claro, me seguiu. Atravessou a rua junto comigo, que tomava meu caminho para casa a passos duros e rápidos.

Meus instintos só diziam “corre, Milena, corre”. Corre enquanto é tempo.

Só que ele correu junto, se emparelhou comigo.

– Se cheguei aqui, desistir agora é que não vou. Tem algo que vocês estão escondendo, e não é coisa pequena.

Continuei meu duro caminho, ignorei. Fui bruscamente pausada então. Senti um aperto por me segurar no braço, me deslocou para encontro dele quando sua força me puxou para encará-lo. E nem assim eu conseguia, dada às lágrimas que já me cobriam a visão por inteira.

Ele não via o quanto aquilo me machucava?

– Sabia que tinha algo errado! Sempre se esquivando de mim. Ficava mais tensa quando vinha à conversa algo sobre Denise. Ou Kevin. Vai mesmo ficar nervosa toda vez que eu aparecer?

Quase ri novamente, agora por seus esforços de enfatizar que tinha descoberto “tudo”. Eram apenas indícios. Poucos. O que ele esperava com aquilo?

– Meus parabéns por matar a charada. Contente-se com isso, porque é só o que vai conseguir.

Tentei me desvencilhar dele, ele, porém, não me soltou. Não de imediato.

– Isso é sério, eu não tô brincando. Você tem até amanhã pra me entregar esse maldito caderno.

Uma coisa era boa a rua estar deserta. Pude finalmente gritar.

– VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO, NÃO PODE... NÃO PODE EXIGIR NADA!

– Amanhã, Milena. Sabe meu número, me ligue.

Me soltou enfim, me fechei novamente. Quase cuspi nele.

– Não espere por essa ligação.

– Se não significasse nada, seu comportamento seria outro. Assim acho que você tem mais a perder do que eu. Afinal, o que eu sei mesmo? Mas, uma palavra minha, uma dúvida que eu possa plantar... Murilo, Vinícius... alguma preferência?

– Seu canalha.

E foi isso, me deixou. Desnorteada, bagunçada, perdida. Mal via o que estava ao meu redor, reconheci, ao mesmo tempo em que não, o que era minha realidade.

Não dava para ir para casa desse jeito. As pessoas perguntam. Murilo perguntaria. Não haveria respostas o bastante. Não havia, tampouco, para onde fugir. Tive que dar meu jeito de me recuperar, ali mesmo na rua, pelo menos o suficiente para passar batida.

Alívio mesmo me veio quando cheguei à porta de casa, tudo estava sereno. Meu irmão não havia chegado. Me segurando por todo o tempo, tomei meu banho e me tranquei no quarto. Jogada à cama, só queria me enfiar mais e mais ao travesseiro, engolir tudo o que estava sentindo. Dúvidas, medos, mentiras, verdades.

Quando se percebe que não há sentido no que se faz, que não se tem o controle, que outro arquitetara tudo, o que nos domina é mais que pura indignação. É raiva, é dor, é revolta.

Eram esses velhos “amigos” que estavam de volta.