A sogrinha estava mais mansa, ainda que não evitasse ver professor Renato. Ver ela via, responder a ele era outra história. Até que ele não ficara chateado por isso, peguei foi ele rindo escondido quando Djane se sentou na outra poltrona da sala. Eu insistia para a mulher comer algo, ela negava-se a se alimentar. Dizia-se não interessada no jantar preparado por dona Ana.

Ainda bem que a senhorinha não tava lá pra ouvir uma barbaridade dessas.

Então ofereci um sanduíche. Só que não havia pão ou outros mantimentos mais para compor tal, assim pedi para o professor me levar a um supermercado. O mais próximo era perto do escritório de Vinícius. Tudo ali era muito perto, pensei, que sorte a dele. Perto da faculdade, perto de comércios, perto até do hospital. Eu não dava uma sorte dessas. Tudo era de 5 a 10 minutos de carro pra ele. Às vezes menos.

Tivemos que deixar Djane sozinha, já que Vini recebeu um chamado de seu colega para ajudá-lo no projeto (e eu dizia que se eles ganhassem algum prêmio, como foi com o Armando e Murilo, ai deles se ficassem se achando, pois já nos bastava o meu irmão – apesar de que Djane ficaria tão exultante quanto mamãe e Vini poderia fazer o ciúme que ele tanto adora) e Murilo teve que fazer um plantão de última por causa da tal manutenção do sistema. Então era só eu e Renato tomando conta da insistente da Djane que permanecia dizendo que não estava doente e ponto.

– Acha que ela ficará bem sozinha por um tempo?

Renato estacionava o carro no supermercado, atento a um flanelinha que dava as dicas para a baliza.

– O que ela poderia fazer a essa hora? Fugir pra onde?

Ela não ligaria para a polícia, ligaria?

Não demos muitas opções à mulher. Quando Renato chegou, Gui tinha acabado de me dar carona, então meio que entramos juntos – eu e o professor. Com a chave de emergência, nem precisei perturbar Djane de ir abrir a porta. Se bem que do modo como ela se comportava, era bem possível que nos deixasse na soleira, batendo na campainha.

Ao nos ver, ela nos ignorou, ficou passando canal até achar alguma novela. Renato tentou algum contato e novamente ela o dispensou. Não permitiu nem que eu medisse sua temperatura e, para não zangá-la mais, preferi não insistir também. Aí foi o rolo sobre ela não ter jantado, Renato dizendo que ela precisava comer algo, e Djane falava com as paredes.

– Não quero comer.

– Mas, amor, voc...

– Eu não tô falando com você, Carvalho!

Antes que eles começassem outra discussão, intervi. Puxei o celular do professor, que ele havia deixado na mesinha do telefone e chamei a atenção dela:

– E com o celular do Carvalho, você fala, Djane?

O olho da mulher brilhou até, só de interesse.

– Fugir provavelmente não, mas me arrumar uma bela conta de celular, acho que isso ela faz.

Caminhando pelo estacionamento, nos dirigimos para a entrada principal. O professor ora e outra ainda se mostra muito preocupado, mesmo com a situação “sob” controle. Tento tranquilizá-lo ao máximo possível, ao menos fazê-lo relaxar.

– Verdade, o pior que ela poderia fazer era ligar de novo pra minha mãe e matar nós dois numa só cajadada. Por convencer mamãe a me matar e pela conta da ligação interurbana.

– Vale a pena, não vale?

Sinto o aroma gostoso de um caldo de camarão apimentado logo que entramos no estabelecimento. Era daqueles supermercados que têm uma área de self-service e à noite ofereciam caldos e jantares mais amenos. Paro bem na entrada e minha boca saliva como aqueles personagens de desenho animado, pegos pelo aroma delicioso.

Renato percebe que parei no caminho e volta.

– Que foi?

– Saudades de um bom caldo. Mamãe fazia uns pra mim. Sente só esse cheirinho.

Inspiro novamente e com gosto.

– Você quer? Não tem problema, posso te encontrar daqui uns minutos no caixa.

– Pensando bem... aceito. Mas vou com você atrás do queijo. Djane só come de uma marca, não sei o nome, só consigo reconhecer quando vejo.

E assim ele pega uma cesta de compras. Puxo conversa enquanto andamos calmamente pelas seções e nos desviando de pessoas desastradas com carrinhos. Sempre tem umas genialidades que deixam os carrinhos nos lugares mais inapropriados. Me pergunto se deveria ter leis de trânsito nas ruas do supermercado. Evitaria muita confusão.

– Como ficou lá na faculdade? O substituto soube se virar?

– Aham. Acho até que Glorinha se apaixonou pelo cara.

– Mentira!

– Sério! Ela que pensa que num vi. Não vai contar, né?

Renato é dos meus, sabe ser parceiro. Agora eu e ele éramos tão terríveis para Djane quanto eu e Aline para Murilo. Nessa manhã, quando fomos buscar a sogrinha lá no trabalho, Renato fazia tudo parecer como se fosse cena de filme. Embora tivesse todo um porte (e uma causa) de sério, levava aquilo numa boa. Com a força do diretor Fabiano então, não teve discussão. Isso só nos tornou, talvez, mais impossíveis.

Gosto muito do jeitão dele, cavalheiro, engraçado, educado. O cara transparece confiança. Só Vinícius que finge não ver, pois até Murilo torce pelo professor.

– Eu? Pra todos os efeitos, não sei é de nada.

Antes de chegar à seção dos frios, paramos na área da padaria. Esperávamos na fila do pão quando de repente me veio uma dúvida.

– Renato?

– Oi?

– O assunto não deve ser de seu agrado... Mas você sabe algo sobre o caso do professor Bart?

Com um balançar de cabeça em negatividade e todo um ar de decepção, o professor responde com um silvo baixo indignado.

– Ah, sim. Não imagina o quanto de coisa que encontraram sobre ele na investigação do departamento. Aquilo foi só o começo.

– Sério? Nossa, ele deve tá me amando muito agora.

– E quem não amaria tão nobre espírito?

Viu, Murilo, nobre espírito!

– Não sei, tem doido pra tudo.

Já com quase tudo a mão, lembrei de levar algum chocolate também, sob a esperança de acalmar a fera, quem sabe. Renato concordou e nos separamos, ele para pegar o que faltava e eu para ir na área do self-service, combinamos de nos encontrar na fila do caixa de poucas compras.

Assim entrei na fila pequena com minha bandeja, tava de boa pensando longe. Brincava com os talheres enquanto esperava a fila, devagar, se movimentar. Já estava para chegar ao ponto de pegar uma daquelas embalagens de alumínio tipo prato quando a mulher seguinte a mim confirma ao celular que iria até a porta e saiu da fila, esbarrando em mim com a bolsa. E aí...

E aí que eu pude ver quem estava logo mais atrás tentando passar despercebido por mim.

Sávio.

~;~

Caminho de volta muito duvidosa daquela decisão repentina. Sei lá o que deu em mim! Num segundo dizia oi, em outro, já estava cutucando Renato sobre ir sem mim de volta para a casa de Djane. Não tinha uma explicação coerente para isso, pois quando me vi, comunicava que ficaria. Que sentaria e jantaria com um amigo que encontrei e com quem eu precisava muito trocar umas palavras. Era importante. Renato ficou um pouco desconcertado, acho que com receio de invadir minha privacidade, assim eu disse com todas as letras que se tratava de Sávio, isso para tranquilizá-lo apenas, afinal, ele conhecia o cidadão. Logo depois pedi encarecidamente que não comentasse aquilo, que só passasse por cima se alguém perguntasse. Sem comentários ademais, ele só assentiu e cada um tomou seu caminho.

Numa mesa mais distante e numa área mais quieta, Sávio havia se sentado e, preso em seus pensamentos, tinha aquela expressão de que estava fora da realidade. Comia suas torradas e encarava a cadeira em que eu iria sentar. Devagar, eu passava pelos carrinhos de compras das pessoas e observava de longe como ele se comportava e parecia o mesmo de sempre. Quieto e introspectivo, embora ansioso.

Foi tão estranho encontrá-lo assim... meio que do nada. Diferente de Anderson, a um primeiro momento eu não queria me sair. Por sorte não havia mais ninguém atrás dele na fila, pois ficamos um bom tempo só nos encarando e procurando o que falar. Até que eu disse finalmente Oi, e ele devolveu, todo desconcertado. Perguntei como ele estava, ele respondeu que bem, e eu também, logo que ele quis saber. Mais uns segundos de silêncio se deu, e Sávio quebrou quando afirmou:

– Nós precisamos conversar, sabe. Alguma hora dessas...

Assentindo, também quieta, repliquei.

– Sim. Eu tenho... tantas perguntas.

– E eu tenho várias respostas, só esperando uma oportunidade.

De algum modo, Sávio se mostrava confiante. Ali, no local mais improvável do mundo, já não mais improvável assim. Sua vibe sempre foi essa coisa inexplicável, ela transparecia as coisas e me fazia questionar outras ao mesmo tempo.

– Não sei quando haverá uma oportunidade, mas eu queria poder sentar e apenas conversar, sabe? Eu preciso entender isso, Sávio. E-eu...

– Tudo bem, você deve estar ocupada e quand...

Foi tão rápido que pensei que nem deu pra segurar de falar. Minha mente apontava que aquilo era uma chance, de pelo menos começar a ter umas respostas, umas concretas, nem que fossem poucas. Djane ficaria com Renato e não haveria ninguém mais para nos interromper. Não havia o que nos impedisse.

Não havia o que me impedisse.

Então eu propus.

Sinceramente, não sabia onde tava com a cabeça pra dar essa ideia maluca. Tudo só parecia fazer sentido, e de jeito bem estranho, devo acrescentar.

Mas quando paro no caminho e novamente avisto Sávio, inspiro por algo que se remexe dentro de mim. Saudades. Eu sentia terríveis saudades dele, como meu amigo. Um grande amigo. Nem aquela confusão toda pôde dissipar esses meus sentimentos por ele. Uma parte de mim me odiava por isso e a outra... é, a outra era essa que ficava tocada pelas recordações. De como ele era tão bobo e tímido. Extremamente tímido na verdade, e não importava o quanto sua imagem entregasse outra coisa, Sávio vivia embaraçado por coisas tão banais. Até por cantadas. Pelo menos as descaradas de que me lembro.

As cantadas não eram sem razão. Sávio simplesmente tem aquele porte, que deve ter conseguido na época que ficou no quartel, prestando serviço militar. Às vezes esquecia que ele era tão mais velho que eu de tão igual para igual que éramos em nossos papos. De qualquer maneira, ele sempre chamava atenção. Flávia mesmo me confessou no outro dia em que nós discutimos. Já que estávamos sendo tão sinceras, eu fui na cara dura e perguntei se ela já não tinha sentido algo diferente. Como atração. Algumas vezes, dissera ela. Perguntei se naquela vez na praia, na viagem, em que todo mundo assistiu Sávio tirar a camisa despreocupadamente, se ela sentiu. E sim, ela disse que ali foi mais forte. Que ficou no mantra mentalizando o Gui pra não pensar besteira.

Não era só eu então. O cara fazia realmente a gente perder um pouco de sanidade com todo esse... sex appeal? Não tinha pessoa essa que se salvava pelo jeito. Se Flávia, que é mais “certa” (em determinados casos), sentiu, e confessou... Olha, pra mim era um baita alívio.

Aquilo não era errado, bem que algo em meu íntimo me dizia. Não era certo talvez sempre associá-lo ou creditá-lo por sua beleza, como o próprio costuma repudiar e negar toda relação que se baseiam por isso, mas também não era errado voltar a termos algum contato. Não era errado dar uma segunda chance.

Todos nós de vez em quando podemos precisar de segundas, terceiras e até quartas chances. Por que não? O rancor não é melhor caminho e só estraga quem se atrela a ele, eu bem sabia.

E reconhecia neste momento que se eu quisesse respostas, acho que teria de buscar por elas. Por isso, decidida, me aproximo, puxo a cadeira e me sento.

~;~

O jantar transcorria bem, muito bem. Diria até incrivelmente bem. Era como se estivéssemos voltando ao início, quando tudo era tão fácil quanto respirar. Era involuntário. Sávio pode ser um cara muito, muito, muito introspectivo, mas também era desses de lua. Ele se enturmou bem com a galera, só não era muito próximo. Até onde eu sabia, era eu quem andava mais grudada à sua pessoa. Nem com Daniela ele era de tal maneira, mesmo com todos os esforços dela a fim de esquecer o Bruno. Acho que Sávio sempre soube. Ele também consegue captar as coisas no ar.

Era estranho também. Apesar de me sentir mais leve do que das outras vezes – das últimas e tensas vezes – acho que minha cabeça entrava em certo fuso por tentar encaixar peça a peça nesse quebra-cabeça. Não apenas de entender aquela figura de um Sávio na viagem perdido, mas aquele que me deixava muitas reticências. Havia tantos não ditos. Como podia eu não julgá-lo senão pelas aparências de suas atitudes? Era só isso que ele me dava. Melhor dizendo, o que me restava.

Ainda assim, era bom. Era bom simplesmente sentar e a conversa fluir, sem amarras, sem brigas, sem forçar a barra. Algo por certo havia mudado, ou eu ou ele, ou ambos, e era bom recomeçar assim. Era esperançoso.

E era aí, também, onde morava o perigo. Eu não deveria confiar demais, tampouco me deixar levar. Ser cuidadosa nesse momento era importante e não me sentia mal por isso ou por pensar nisso. Mas nem assim achava que estar com ele era como estar escondendo, mentindo ou traindo. Não. Apesar de ter feito aquele pedido de “silêncio” para Renato, meu intuito era apenas de descobrir antes de mais nada o que seria esse “primeiro” contato. Além do mais, Vinícius confiava em mim.

Sávio não começou com desculpas, nem pedidos, como imaginei. Em ocasiões passadas, me irritou várias às vezes como ele tentava consertar a besteira que fez e me irritava era pela maneira de como ele fazia. Ao partir de certezas inquestionáveis, eu considerava isso um ponto positivo. Ele trouxe assim a discussão que teve com Aguinaldo.

– Imagino que o Gui tenha mencionado...

– A briga? Sim. Mesmo zangado comigo – por outras questões – ele não hesitou quando se tratava de mim.

– Ele é muito bom amigo.

Assenti, concordando.

– O melhor.

– Ele não merecia ter descoberto as coisas daquela maneira. Mas eu tava bem mais envolvido do que queria estar e quando me vi, Gui já tinha o punho na minha cara. E eu mereci. Aquele eu mereci.

Não nos aprofundamos nesse caso, e sim, havia muitos para depender uma noite. Já considerava que teria de haver mais do que um simples encontro, do que um simples jantar para que tudo enfim se esclarecesse. Não tinha jeito.

Sávio ainda se desconcertava vez e outra quando nossos olhares se encontravam, ele era o primeiro a desviar. De frente um para o outro, nem sempre eu olhava diretamente pra ele. Mas quando eu o fitava, ele se esforçava para não olhar de volta, se entretia com seu prato, passando a colher e fazendo ondinhas pela superfície. Não era que ele me evitava, era só... era só o jeito dele mesmo. Às vezes aberto, às vezes muito quieto.

– Eu tentei tantas vezes falar com você, Len... Quer dizer, Milena. Só não liguei porque tinha certeza de que você não atenderia. Mas ainda assim, deixei mensagens, esperei algum contato, algo que me desse a abertura certa. Delas só vieram evasivas. Não que eu esteja questionando ou reclamando. Eu só...

Havia, no entanto, uma pontinha de receio que ele não conseguia esconder. Dava pra notar por quando ele estralava os dedos ou seus braços ficavam muito tensos pelo modo que descansavam à mesa.

– Eu andei bastante ocupada esses tempos. Principalmente com esse rolo todo que foi com André e Murilo. Meu mano às vezes finge estar bem, mas sei que ele ainda se ressente pelo que fez. Foi um golpe muito duro pra mim e para ele, mais do que poderia ser a dor física ou egocêntrica de André imagino. E agora, as matrículas já estão abertas, as aulas vão recomeçar e eu simplesmente não vejo o tempo passar. Parece que as férias ainda vão entrar.

Ao assentir, ele parece um pouco triste. E por uma primeira vez, ele me encara para falar sobre isso.

– Também mal posso acreditar que logo estaremos em classe novamente. Fico mal em pensar que eu possa ter estragado tanto nossa... nossa amizade que... Enfim, não estou cobrando nada. Apenas saiba que sinto muito sua falta. E da galera também. Só que depois do que eu fiz...

– Em algum momento todos fizemos besteiras, Sávio. Ninguém aqui é santo. Ser gentil é outra coisa, lembra?

Com um sorrisinho discreto, daqueles de canto da boca, ele novamente assentiu.

– Bem demais.

Por incrível que parecesse – eu me ressaltava novamente – estava sendo muito agradável conversar com ele, como se só estivéssemos jogando conversa fora, como nos velhos tempos. Como eu sentia falta disso! Havia tanto para lhe questionar, mas, de repente, eu não queria tais respostas assim, de imediato. Eu queria esse fluir. Isso, de sentar e conversar, como se não houvesse amanhã, como se realmente tivéssemos combinado e pá, lá estávamos, só comentando a vida.

Só que, novamente, uma parte de mim ainda era insegura e cuidadosa de me jogar numa dessas. Eu tentava manter o foco sem me deter muito às coisas então.

– André se desmatriculou da nossa instituição.

Com uma piscada lenta, ele confirma.

– Eu sei.

– Sabe?! Como? Ainda fala com ele?

Meu lado hesitante estava subitamente apontando cuidado só de cogitar que Sávio ainda estivesse do lado daquele infeliz.

– Não, não, o advogado dele comentou comigo.

– Advogado?

– É um amigo meu, que infelizmente representa o André. Representava, na verdade. Ele pediu demissão outro dia.

Eu não consigo imaginar ”por que”, pra não dizer o contrário. Não comento e sinto que Sávio também não queria entrar em detalhes quanto a isso. No entanto, parece bem mais tranquilo e sereno conforme a conversa vai rolando.

E aí quando rola um pequeno silêncio, quando estávamos terminando de comer... eu resolvi ser direta:

– Preciso te agradecer.

– Pelo quê?

– Como pelo quê, Sávio? Por ter ido à delegacia. Por ter testemunhado contra o André. Fiquei muito surpresa.

E aí ele quem ficou surpreso. Isso lhe chama atenção que larga até de vigiar o prato e me olha, hesitante, esperando que eu dissesse algo mais.

– Se bem que quando parei e pensei um pouco a respeito, acho que não deveria me surpreender tanto. Afinal, você estava esse tempo tentando me compensar e dizia que iria consertar “tudo”. Quer dizer, iria reconquistar minha confiança. Não tô afirmando que você conseguiu, mas depois dessa... eu não tenho porque te ignorar, Sávio. Acho que já basta termos aceitado que aconteceu, não importando as razões que levara. Só... aconteceu.

Vejo como o alívio toma seu corpo, que parece enfim descansar mesmo sobre a mesa. Se ele agradecia isso em seu íntimo, eu só desconfiava, pois por um momento ele fechou os olhos e riu discreto, como se minha resposta fosse canção para seus ouvidos. Uma canção de conforto.

– Isso significa muito pra mim.

– E pra mim, Sávio. Muito obrigada, de verdade.

Ele, daquele seu jeito tão característico, acanhado, ficou mesmo muito grato. Já eu, eu me sinto bem de vê-lo assim, pois parecia certo. Não se tratava mais de feri-lo como um dia, sem saber, eu quis. Eu quis e o puni, várias e várias vezes, achando que não fazia nada demais se considerando o que poderia fazer mais, e acontece que isso, o silêncio que ficou entre nós, as escapadas, o afastamento repentino, foi ainda pior. Como minhas brigas com o Murilo, o trágico era quando não gritávamos um com o outro, porque aí significava que a ligação estava perdida.

Acontece que as palavras precisam ser assim ditas, na lata e na cara. Os não ditos preservam um ressentimento que a qual, embora não queiramos sentir, nos rendíamos.

Mas não mais, penso e aprendo. Me sinto idiota de ver tão tardiamente que quero culpar um atraso de epifania até. Ou ela não queria sair, ou eu que não queria ver? Não importa, tudo nos levou a um caminho, talvez tortuoso, talvez com mais pedregulhos, e no final cruzou certo. Me sentia bem melhor por isso.

Caímos em outros papos em seguida, a gente ia relaxando mais e mais, o que me deixava bem dividida, aqueles meus lados resistindo a decifrar gestos, comentários, coisas involuntárias. Mas de algum modo minha guarda foi baixando e baixando, e uma hora, de repente, se contraiu, porque um dos assuntos, contudo, revelou-se delicado, que me deixou até sem jeito – e mais ainda por Sávio não ter ficado daquele seu jeito.

Quero dizer que ele me pegou de surpresa.

– E como vão as coisas com o Vinicius?

– Bem, muito bem.

– Vocês têm uma grande conexão, não?

Aí quem hesitou fui eu, estudando minhas mãos.

– Olha, Sávio, acho melhor a gente não falar sobre isso.

– Ah, não me tenha por mal. Eu só... admiro vocês.

– Admira?!

– É. É o tipo de coisa rara. É o tipo de coisa que muitos procuram, poucos acham. E-eu conheci uma pessoa... e apesar de meus esforços, às vezes acho que... não serei um desses poucos que acha e tal.

Aí hesito de novo por estar surpresa de novo. Sávio se abrindo? Era muita novidade pra mim de repente. O assunto permanecia delicado, mas já não via como poderia ter más intenções. Via era que gostava de ele estar se arriscando dessa maneira. Então não o corto, não mais.

– Acho que é o tipo de coisa que a gente não deve esperar muito. Pois vai parecer que demora até acontecer. É melhor quando não se espera. São menos expectativas pra estragar, sei lá, e...

E meu celular toca dentro da bolsa. Como o ambiente estava pouco cheio e com pouco movimento, dava pra ouvir bem. Sávio me dá aquele seu sorrisinho discreto por ver que eu mantinha aquela música, Life in Color, como se isso lhe mostrasse que havia um eu ali que ele conhecia. Quando já ia cair a ligação, peço licença e atendo.

– Alô? Aham... Não, já acabei... Sim, acho que sim. Por quê? Alto assim? Eu sabia que... Ok, ok. Eu vô vê se consigo. Te ligo quando chegar lá.

Pelas minhas mudanças súbitas de semblante por durante, o quê, trinta segundos de ligação com Renato, Sávio capta bem a situação:

– Deixe-me adivinhar: você precisa ir.

E aí inevitavelmente me lembro de muitas, muitas situações passadas que levavam a um mesmo pedido. Lá estava eu fazendo novamente, porém risonha dessa vez, mesmo que estivesse preocupada com Djane.

– Pode me deixar num lugar?

Endireitando-se, Sávio se apruma e pega suas chaves, de modo que afirmava que me levaria não importava onde fosse, ele aceitaria qualquer pedido meu.

– Onde?

– Hospital Santa Rosa.