Acho que profetizei quando comentei uma vez com Flávia que Aline seria aquela, aquela que tiraria o Murilo de meu pé. Minha amiga imaginara que eu dava a entender que seria aquela com quem ele ia casar. Bom, aconteceu.

Não que tenham casado!

Murilo que saiu de meu pé.

Mas claro que o fato de eu ter perdoado oficialmente essa criatura numa madrugada inesperada ajudou. Mamãe ficou zangada o resto do dia por eu ter escapado do quarto para ficar com meu mano, quem ainda estava “empomadado” e se coçando da catapora, que eu o preferi a ela. Demorou pra mulher ceder, a la dramática que é, até perceber que, melhor que todo o mimo que investíamos nela, era a relação linda de fraternidade que seus olhos emocionados presenciavam.

Ficamos tão mais unidos, tão brincalhões e “fofos” – Djane quem apontou esse último – que aproveitamos pra contar pra ela tuuuuuuuudo que, noutro momento, havia exigido saber. E sua curiosidade-mor era sobre como se deu o entrelaçar de vidas entre eu, Djane, Murilo e Vinícius. Nem a sogra nem o namorado se importaram.

Na realidade, eles entraram na roda, papearam com graça e, mesmo quando chegavam em pontos delicados, como as partes sobre Filipe e Iara, deram apoio um ao outro. Só quem reclamava mesmo era mamãe, por estar atrasada nas histórias. “Ô mulher difícil” era o que meu mano resmungava e mamãe lhe caía em tapas, tapas de amor.

Era uma harmonia gostosa.

Mamãe ficou apenas mais uma semana conosco após eu voltar de viagem, o tempo que Murilo terminou de se recuperar. Quer dizer, claro que ainda demorou mais um pouco pra ele se restabelecer e tal, só que meu irmão, apesar de suas preguiças e indisposições, não era bem do tipo de ficar acamado. Ele tem muita energia pra ficar parado por muito tempo, tem que se manter na ativa. Com nossos cuidados, voltou logo para o trabalho, assim como voltamos para nossa casa.

E o sorriso que esbanjou por dias por eu ter o perdoado? Tão exultante quanto uma pessoa que ganhara na loteria. A diferença é que seu ganho não fora ao acaso, foi algo pelo que batalhou, fez por merecer.

Por isso tinha um orgulho do tamanho do mundo.

O bichinho andava vendendo felicidade desde então. E agora com a proposta que recebeu de Aline, putz, mal tenho palavras pra descrever o estado de espírito da peste. Ele pode não ter se realizado como pai (ainda), mas Aline lhe dera uma oportunidade, um voto de confiança, para seguirem bem com o seu relacionamento. Foi um grande passo, isso é certo, e até eu me surpreendi quando ela me ligou um dia quando eu tava fora da cidade. Quando Murilo descobriu que tinha algo rolando debaixo do nariz dele, ficou todo todo querendo descobrir. E eu ia contar antes do tempo? Nem que a vaca tossisse uma música inteira, havia prometido pra minha cunhada.

O que era a armação?

Aline tem uma irmã que fugiu de casa faz uns 5 anos pra casar (sim, ao que parece, as pessoas ainda fazem isso), Lisbela. Não sei a treta toda, só que o marido é do batalhão de polícia e, por causa disso, ele vive sendo transferido em seus trabalhos para a comunidade. Fora transferido novamente, e de volta pelo jeito. Aline havia perdido contato com Lisbela faz um tempo, então foi uma baita surpresa quando foi contatada. O marido dela vai cumprir um mandato de maior tempo dessa vez, possivelmente não será mais transferido, então Lisbela poderia se reaproximar da família.

Mas não só por isso pediu o apoio da irmã, acontece que está grávida. E pediu que fosse madrinha da criança.

Nessas horas que a gente olha pra nossa vida, para e pensa: tem cada coisa que acontece por aí e a gente às vezes reclama por tão pouco. Até pela sola do sapato que descola, mas não é frustrante quando isso acontece logo que estamos longe de casa e ainda por cima atravessando uma avenida movimentada? Ok, eu reclamo mesmo.

Murilo tinha conhecimento de quase tudo, pois Aline guardou esse detalhe da gravidez. Estava muito balançada ainda com aquela briga deles que houve no hospital, quando descobriu o que era a desconfiança e suspeitas de todos sobre seus sumiços no trabalho. Quando conversou com mamãe uma vez, conhecendo-a por acaso, ouviu seu conselho de investir no meu irmão, que era realmente um apaixonado por ela, e isso devia significar algo. Que às vezes meu mano só precisava de um voto de confiança. Também tocou forte em mim ao me relatar esse papo improvisado.

Então ela pensou bastante no que faria, ponderou sobre como a família recolher a irmã de volta, e em como ajudá-la, pois, por ter se distanciado e viver de muitas transferências ao longo desses anos, não possui muitos amigos ou outros com quem contar. E aí calhou de Murilo lhe vir à cabeça. Murilo, quem se decepcionara ao descobrir que não seria mais pai, quem sentiu aquele vazio estranho por tudo não ter passado de imaginação, quem entrara em fuso e, ainda aceitando a ideia de ter uma criança, surtara como um maluco. Mas de um jeito bom.

Se é que se tem jeito bom de se surtar.

Aline propôs que Murilo fosse padrinho da criança que viria.

Se Murilo estava vendendo felicidade besta que é, imagine como estava quando o flagrei ao chegar na manhã seguinte ao jantar, terça-feira, vindo da casa de Flávia. Eu, que andava tristonha pelo caso dos meus melhores amigos, fiquei melhor quando encontrei a criatura dançando na cozinha preparando o almoço. Não era dia de a dona Bia ir trabalhar, e ele estava muito disposto. Demorou a me perceber lá, encostada no vão da cozinha, morrendo de rir dele pirando com a música alta. Fazia passinhos, balançava a cabeça, com direito a rebolado, palmas e tudo. Todo um gingado!

Trilha citada/indicada: Pablo Alborán – Loco de Atar

1:50

E quando deu uma voltinha que o ritmo dançante lhe pediu, que me viu. Murilo nem parou! Fez foi me puxar, me ensinou uns passos para dançar com ele, quem cantava junto, sabia a letra (era espanhol, reconheci), uma tal de “Loco de Atar” contagiante e eu só agradecendo mentalmente umas mil vezes a Aline ter aparecido na vida dele.

Passou toda a semana assim. Tocando “Loco de Atar” também.

A música grudou em mim que, quando chega na sexta-feira de manhã em casa, quase cantei pro meu mano.

Era mais uma manhã na mesa da cozinha de casa, eu tomando meu achocolatado – não era apenas preguiça de fazer café, é que havia acabado e dona Bia ainda não tinha voltado com as compras da semana – quando Murilo chega de seu plantão. Havia prometido não pegar mais nenhum, porém teve uma emergência noite passada e ele teve que ir.

Acontece que ele chegou assobiando. Despreocupado. Sorriso bobo.

Esperei que viesse. Depois do banho, para a mesa meu irmão se dirigiu. Tinha cara de quem curtia uma piada interna e quase não se aguentava. Sentou, pegou os utensílios que eu havia disposto pra ele, fez seu achocolatado também, eu sentia que ele queria dizer, só não queria espocar logo de primeira. Murilo contido não dá certo!

Mas só pra perturbar permaneci na minha.

Aí seu celular tocou. Ele atendeu, falou algumas coisas mais com alguém do departamento, coisas técnicas que não eram de meu conhecimento, até que... meu mano se recostou no espaldar da cadeira e finalmente vi uma coisa brilhar no seu pescoço. Ele coçou um pouco seu queixo, disperso, de uma barba por fazer do outro dia, e vi claramente.

Murilo não é de usar cordão algum. Se sente incomodado. Fiquei matutando se Aline tivesse o presenteado com um e ele, sem jeito, teria aceitado. Ao finalizar de sua ligação, cutuquei, despretensiosa.

Mentira, era uma tamanha pretensão!

– Tá de cordão, maninho?

Hummmmm. Ele pôs delicadamente o celular ao lado enquanto meneava a cabeça num sorrisinho besta só dele e isso me clareou um pouco as ideias. Que tinha a ver com Aline eu sabia, mas o que eram essas informações desconexas, como sua entrada dentro de casa, e esse cordão, não dava para saber bem. Será que tinha a ver com essa animação toda dele e essa sua inquietação de falar? Tinha, claro.

Mas continuei a me perguntar, pois, sim, ele não costuma gostar de usar esse tipo de assessório.

– Tô.

– Aline quem te deu?

– Na verdade, eu comprei. Dois. Um pra mim, um pra ela.

E aí a pessoa puxa o pingente que estava escondido pela camisa, um anel simples de prata brilha àquela doce manhã e eu sorri besta que nem ele.

– Um anel?

– Aham.

– Sabe o que significa, né?

– Sei.

– E ela num pirou?

– Não. Expliquei que tava na hora de firmar um compromisso com ela, assim como aquele voto de confiança que ela me deu. Mas que não pirasse, não estava a pedindo em casamento ou coisa parecida. Não ainda. Por isso usar como pingentes, não como alianças. Não quero forçar nenhuma barra.

Quase engasguei com meu achocolatado. Felizmente desceu para o lado certo.

– Ô, modesu, Murilin sendo inteligente, gente.

Rio quando fez bico, “chateado”, por eu citar seu apelido. Ninguém nunca perguntou a origem, só adotou depois de Aline ter soltado sem querer uma vez. Adorava aporrinhá-lo.

– Porra, Milena, não me vem com essa que te taco esse pão na cara.

Aporrinho mais com a voz irritante, sem ligar para sua ameaça:

– Ô, modesu, Murilin tá compromissaaaaaado!

Quando ele inventa de pegar o pão pra me atirar, desvio a todo custo de sua mira me abaixando pela mesa.

– Peraí que eu tenho que tá viva pra espalhar esse babado!

– Então eu tenho pouco tempo pra te matar.

Lá vai eu correr destrambelhada atrás do meu celular que ficou na mesa da sala e ele me segue. Me agarrou a tempo, me pegou pelas costas e me abraçou com toda uma força que foi impossível sair de seu aperto. Ralhou brincalhão:

– Eita que eu não posso te dizer mais nada.

– Tô brincando, bobão, agora me solta.

– Num confio.

– Ô criatura difícil, prometo. Pode me atacar em cócegas se for o caso.

Meio desconfiado me soltou enfim. Voltamos para a mesa da cozinha.

– De onde tu tirou essa ideia afinal? Do anel, do cordão?

– Por uma conversa que tivemos eu e ela. Não queremos avançar demais, mas também não ir no ritmo tartaruga. Foi difícil conquistá-la, nossos históricos não são dos melhores. E... acho que passei muito tempo apaixonado por ela sem saber.

Joguei uma bolinha de guardanapo nele, que bateu no ombro, pra enfatizar um resmungo que não é resmungo nada.

– Aff, Murilo, tu tá pedindo pra eu fazer o sonoro “own” e todos os tons meigos contigo! Para de ser lindo, coisa!

Ele primeiro fez bico. Depois fez que esqueceu meu comentário e continuou.

– Só quero que ela tenha certeza de meus sentimentos.

– E que nenhum macho olhe duas vezes pra ela.

– Também. Seria ótimo na verdade. Melhor, que não olhasse nenhuma vez.

– Bom, ainda bem que você não apareceu aqui com esse anel do dedo. Eu teria te matado.

– Eu? Por quê?

– Primeiro por ter a pedido em casamento muito rápido. Segundo por não ter me comunicado. Terceiro por não ter me consultado pra escolha dos anéis. Mas o lado bom é que mamãe te mataria e eu poderia cair em cima de ti de novo, como uma boa irmã faz.

Nem preciso dizer que sorriu besta com essa, jeitoso e palhaço.

– Te amo, sabia?

Levantei dramaticamente.

– Peraí que eu tenho que gravar isso pra nossa próxima discussão.

– Mas tu num para quieta um segundo pra falar sério, poxa.

– Mu, teu coração já tá todo derretido nesse anel aí. Te juro, num precisa se provar quão sério é.

– Tão meiga.

Suspirei orgulhosa, voltando a me sentar. Ele, por outro lado, provoca.

– Sempre.

– Até pintar minhas roupas de rosa.

– Já percebeu que em todas as vezes foi culpa tua? Num sei que pé-cabeça é essa tua ideia de ter meias vermelha. Qual o problema com as brancas?

– Mas elas são as mais quentinhas que tenho! Tu sabe que tenho frieira nos pés.

– É pé friento, coisa!

– É, isso aí. E eu nem falo daquelas tuas meias estranhas. Que pé-cabeça é essa ideia de usar um lado colorido e outro lado branco?

– Foi um amigo-da-onça com Flávia, tu sabe. Essa é a ideia da brincadeira. Zoar.

Murilo desdenhou de mim. Logo de mim! Joguei de volta, claro.

– Quando eu digo que sou o mais normal, ninguém acredita.

– Perto de ti, maninho, qualquer um é super normal.

Ele enfim taca um pedaço de pão em mim.

Mas sendo um dos homens mais felizes ao fazer isso.

~;~

Nem todo homem do mundo está no nível de felicidade como meu irmão. Totalmente oposto permanece Aguinaldo, perdendo no Uno para meu vô-sogro. Acho que era pedir demais que ele pensasse coerentemente numa jogada se o que só tinha na cabeça era ela, minha melhor amiga. Ela havia terminado com ele.

Vinícius pode ter achado exagero eu ter descrito a separação deles como uma catástrofe terrena, como Romeu sem Julieta e Julieta sem Romeu – apesar de ambos serem ficcionais – mas ele não viu o que foi a reação da galera na faculdade. Aposto que todo mundo achou que o mundo tava fora de ordem também.

O término foi na quarta-feira à tarde, sem aviso prévio. Flávia o chamou para conversarem na casa dela, Gui faltou estágio, eu só fui descobrir muito depois, ela me ligou após ele ter saído. Tava numa reunião com o R.H., que sem querer ouviu meu grito de espanto por ouvir minha amiga declarar “terminei com ele”. Não adiantou eu ter saído da sala se as paredes daquela área eram finas. Finas por serem de vidro, era a sala do auditório.

Flávia desligou o celular depois de me comunicar, pediu pra ficar sozinha. Só me avisou que passou seu trabalho da aula da professora Silvana, era pra imprimir e entregar. Isso foi seu jeito de dizer que não iria para a aula. Fiquei o resto da tarde ligando pra Gui direto, dando escapadas do meu trabalho, e seu celular só chamava. Ele quis ficar sozinho também. Era triste admitir que ninguém poderia fazer nada.

Fui de ônibus pra faculdade, saltei dele já atrasada. Notei uma movimentação estranha na rampa da entrada, um burburinho. Ia passar sem me ater a eles se não tivesse visto Gui sentado todo de mau jeito num muro baixo. O mesmo que eu já havia sentado outras vezes e pensado na vida. Fui até ele, estava mais abatido que no dia anterior, quando cuidei dele.

– Awn, Gui.

– Ela terminou comigo.

– Eu sei.

Devia ter imaginado que ele iria pra aula, pois comentara comigo que evitava a todo custo sua casa. E só não foi para o estágio por Flávia ter o chamado. Não precisei ter perguntado se tentou dissuadi-la, se propôs nova tentativa, sei que sim, tentou o seu máximo, complicando mais a situação para os dois.

– Ela me ama.

Abracei-lhe ali mesmo, sem ligar para os outros que nos observavam. Não me importei de perder a aula, mas ficar ali não resolveria nada, por isso pedi que entrássemos. Foi aí que me disse que iria esperar por ela. Difícil foi lhe dar o toque, de que ela não iria aparecer.

– Ela me passou um e-mail com o trabalho dela. Ela não vem.

Aguinaldo já havia me olhado desolado outras vezes, mas quando e como erguera os olhos ao me ouvir foi como assistir ele realmente ter acordado pra vida. Como se eu tivesse dado um tapa ao rosto. Um tapa que ardera muito. E que lhe tirou toda uma esperança de reencontrá-la.

– Gui, só... vamo entrar, vamo?

Foi outra luta levá-lo pra sala de aula. Ainda bem que podia entrar no segundo horário. Professora Silvana poderia ter reclamado algo, como sempre faz pra implicar conosco, mas não dessa vez. Ao bater o olho no meu amigo, acho que até pensou que alguém tinha morrido. Praticamente tive que o empurrar pra sua carteira, todo mundo só de olho, cochichando, aumentando histórias. A professora apenas recebeu nossos papéis, continuou sua exposição para a turma, ora e outra observando o Gui.

Devia tá tão na cara que não foi preciso dizer nada para a galera ter sacado tudo. Ou pelo menos sobre eles terem terminado. Marcinha e William pareciam ter perdido no palito, pois foram eles os receosos colegas de turma que queriam confirmar o que havia acontecido.

Apenas afirmei com a cabeça ao ler o bilhete que mandaram pra minha mesa, porque não adiantou nada jogar na de Aguinaldo se ele não se mexia, debruçado e longe dali. Depois choveu bilhetes de “sinto muito” vindo de toda a parte. Negócio tava tão sério que era capaz até da professora Silvana mandar o dela também. Talvez com “pêsames”, pois não acompanhava a turma para saber o que acontecia.

Para o resto da turma, aquilo era uma tragédia mesmo. O casal harmonia era quase representante de nós, era quem dava tanta alegria e ambientava todo um amor. As pessoas eram mais confiantes quando assistiam o companheirismo dos dois, a amizade que compartilhavam. E como seria agora? Qual seria a nova ordem do mundo? Ainda haveria rotação?

Se não bastasse isso, Flávia enfim apareceu na faculdade, para espanto de todos. Aí que foi um alvoroço mesmo e de novo. Havia um relatório para entregar na aula do professor Sanches, pensei que ela não tinha feito ou entregaria depois, já que não constava no e-mail e não dava pra perguntar, se tinha desligado seu aparelho celular. Como é conhecido pelos alunos, professor Sanches é extremamente pontual. Mais que pontual, ele chega bem antes do seu horário. É comum irmos para o intervalo e o encontrar folheando algo ao voltarmos para a sala.

Acho que ela tinha confiado nessa pontualidade dele só pra passar, entregar o relatório e se mandar. Só que dessa vez o professor não subiu cedo, quem fez isso foi eu, Sávio e Gui, quem tava cansado de ficar sendo observado, ouvir “sinto muito” das pessoas, de terem pena dele e todo um blá blá blá.

Meu amigo devia tá tão atordoado que preferiu ficar no corredor, encostado no parapeito, o corpo ali, a mente fora de si. Eu conversava com Sávio sobre um artigo que entregamos semana passada e tinha um material ali que tinha ligação com a avaliação de Djane no seminário que apresentamos ainda essa semana. Nossos papos basicamente se resumiam a coisas relacionadas à faculdade. Então entrei na sala, ele me seguiu, estanquei ao encontrar Flávia lá, olhando seu relógio de braço.

Na mesma hora ela me notou, se espantou. Porque se eu tava ali, quer dizer que Gui também estaria. E ela não poderia o ver, não se o término estava muito recente. Trazia ao braço uma pasta, de onde puxou um punhado de papéis impressos, postou na mesa do professor rápido, e vi o que ia fazer: correr dali. Mais rápida que ela, pedi para Sávio que a acobertasse, a ajudasse mais uma vez. Aguinaldo iria me matar, era certo, mas aquele encontro não deveria se dar ali, daquele jeito.

Como bala, Flá passou por mim e Sávio foi no seu encalço. Gui meio lerdo ainda viu o vulto dela, e foi aí que se desencadeou a cena. Tentei barrá-lo, ele correu para vê-la, chamava-a pelo nome, nisso a galera tava subindo pela escada, já mais segura pelo revestimento que o diretor reforçou nela, o povo abriu espaço pra Flávia passar, olhando dele pra ela, querendo ajudar sem saber como. William foi quem me ajudou a segurá-lo.

– Acho melhor dispensar a piadinha sobre a noiva em fuga que Luciano me contou ainda agora.

Foi o que professor Sanches proferiu, meio sem graça, por ter derrubado seu café nessa comoção toda justo onde seu Chico, o zelador, acabara de passar o pano de limpeza. Eu riria se não fosse tão trágico. O professor entendeu que Gui não tava legal, dispensou-o logo. Assim assegurei o material de Sávio com um colega, entregamos os relatórios, passamos na sua casa para pegar umas coisas, que ele ficaria pelo menos essa noite na minha. Que se danassem os pais, ele havia perdido Flávia.

Ficou apenas uma noite mesmo.

Na quinta, como eram apenas dois horários, saí na hora do intervalo para ficar com minha amiga. Tava alternando entre eles. Sabia, no entanto, que se tivesse que escolher, iria inevitavelmente ficar ao lado dela. Gui não ficava sozinho como temi, Iara estava dando um grande apoio também, assim como Sávio. Tivemos que esquecer nossas diferenças para enfrentar essa barra.

Não aguentava ver Flávia daquele jeito, então logo que Dani propôs uma saída – na verdade, matar aula, só que somente ela matou, porque nem eu nem Sávio tínhamos mais horários e o professor de Bruno havia faltado – aceitei sem pestanejar, só faltava empurrar minha amiga. Não foi tão difícil pelo menos. Sávio indicou um lugar que conhecia, um barzinho, achou que era calmo para levá-la. Uma boa escolha, tinha uma banda lá com uns covers, diferente de tudo que Flávia andava ouvindo nas últimas horas.

Ainda que Dani estivesse com Bruno e fossem um casal recente, eles preferiram esquecer esse lado por uns tempos e apenas se comportaram como amigos para animar a Flávia, o que agradeci muitíssimo. Sávio também não ficava atrás, saiu da casca, pareceu mais aberto e próximo dela. Novamente deixei nossas confusões para trás, e por uma noite fui a velha Milena, ele, o velho Sávio. Com limites, no entanto.

O que a gente não faz pelos amigos, certo?

Na sexta me juntei a Iara para ficar com Gui depois da aula. Flávia não foi o resto da semana pra faculdade. Ele teria que se acostumar com a ideia do término, pois na semana seguinte iria ficar lado a lado com Flá, porém, sem poder fazer nada. Sei que no fundo meu melhor amigo entendia, só não queria aceitar aquilo. Como ouvi por aí, pessoas insubstituíveis, pessoas especiais, quando perdidas, levam um pouco de nós mesmos. Possivelmente nossa melhor parte. Era assim que ele se sentia.

Vinícius retirou o que disse sobre eu ter exagerado logo depois que o vô-sogro comentou ter visto aquele mesmo semblante desorientado de meu amigo em “alguém”, no Natal passado. Até me desculpei, tanto com Vini quanto com o vô-sogro por tê-los feito passado essa época mal por algo que eu fiz.

– Passou, amor, passou.

– É, mas quando vai passar pra ele?

– Não sei. Espero que logo.

Vini se compadeceu muito ao vê-lo ao vivo, em total desânimo.

Eu havia levado Aguinaldo para o almoço na casa de seu Júlio, que o recebeu de braços abertos. Murilo não pôde comparecer nesse domingo por ter ido ao almoço da família de Aline, o que foi bom, pois a felicidade contagiante de meu mano poderia ser demais pra cabeça de meu amigo. Com a presença de Iara, Gui parecia suportar mais. Estava mais lerdo que o habitual. Permanecia naquele estado de o corpo se mexer a nossa frente, mas a mente totalmente fora do ar.

Ele perdia as jogadas consideravelmente.

Todos tentamos reanimá-lo, Djane e seu Júlio também conversaram um pouco com o “jovenzinho pra baixo”. Fiquei contente por pelo menos terem resgatado um pouco do meu melhor amigo, que não saiu de lá da mesma forma que entrara. Pode ter perdido todas as partidas de Uno, porém, um apoio de família ele teve.

Diferentemente da sua.