— Você comprou um tênis... só pra correr?

Vinícius parece não entender bem minha pausa dramática, mas sorri amarelo, confirmando. Ainda estou pasma. O que me leva a repetir o que ele disse, gesticulando com a colherzinha a ordem dos fatos antes de levar mais um pouco de iogurte à boca.

— Um tênis. Você foi na loja e depois saiu pra correr.

Disse ele que foi isso que fez após o expediente naquele dia que me procurou na pausa do almoço e tentou disfarçar com um sorvete. O dia em que estava pilhado.

— Sim. Tem uma loja esportiva lá perto. Por que pergunta?

Talvez ache que eu não tô levando a sério? Porque eu tô. Até demais. Indo pra um outro lado, inclusive, que havia mencionado minutos atrás.

— A tua empresa tá aceitando currículo? Tá ganhando muito bem pra fazer isso.

Isso porque seu salário já foi maior quando ganhava por comissão ao vender imóveis. De corretor, Vini passou para estagiário de arquitetura na mesma empresa faz um tempo. Quando desistiu de uma vaga no semestre passado, após um treinamento intensivo, ele optou por mudar de setor, para um que tivesse mais a ver com sua área de graduação.

Também foi uma fase confusa de decisões, com meu Vini pensando em sair de casa e o todo rolo de conseguir um apartamento com o Aguin... Outros tempos e outras economias. Mas foi assim que descobri por que ele falava em “gol” toda vez que fazia uma venda. Era uma piadinha do escritório que, por força do hábito entre os colegas, ele pegou. Só não o esporte por si, o que ficou bem claro naquela sua festinha quando saiu do hospital no ano passado.

Alguns mistérios a gente descobre assim, né? Na conversa.

Meu comentário – que sugere a riqueza no bolso – acaba por suavizar o vinco ansioso do semblante de Vinícius, que se permite rir um risinho de modo mais verdadeiro e acanhado. Luxos como esse sempre são apontados por mim porque vivo uma realidade um tantinho diferente. Não sei nem a última vez que ele andou de ônibus, por exemplo.

Tá, faz um tempinho que eu também não pego um, mas com certeza não faz mais tempo do que o Vinícius. Práticas como essa com certeza separam alguns mundos, mas não os nossos. Só se eu cometer um crime por certas ousadias, como essa que ele responde:

— Posso pedir um aumento pro meu pai.

Quase lanço a colherinha ao apontar pra ele ditando uma ameaça:

— Nem que a vaca tussa uma música in-tei-ra!

— Eu sei, exagero meu.

— A compra ou o aumento?

— Os dois.

Do meu lado no sofá, com o pé estirado junto ao meu na mesinha de centro, ele se inclina um pouco pra frente pra ajustar o pano com gelo no local que machucou.

Vinícius definitivamente não tava brincando quando disse que bateu o pé. Não era disfarce, não era cena, pois ao tempo que fomos verificar como estava a situação, seu pé se mostrava um pouco inchadinho e vermelho. Foi bem na hora de ele atender a porta e, com a nossa conversa engatada do jeito que se deu, quase não sobrou espaço.

Na verdade, foi uma entrada e tanto que não houve espaço para quase nada de meu plano inicial. Não havia esquecido disso, só estava indo conforme vi a necessidade de seguir. Antes de tudo, foi preciso acertar os ponteiros e os pingos nos Is da bagunça mental que perturbava meu Vini. Ele estava mesmo desnorteado.

E não foi tão mal assim, porque percebi, ao longo de nosso momento, como as coisas batiam em nossas histórias pessoais. Entendi enfim o que se passava na cabeça dele e um pouco mais de como funciona a minha. É também algo que venho percebendo desde o Natal. Quer dizer, eu me ajudo quando ajudo pessoas.

É uma percepção doida, porém bate também com que as pessoas me falam. Como mamãe frisou, faço pouco por mim. Eu disse com muita firmeza inúmeras coisas ao Vinícius, coisas que não fluem de mim pra mim mesma. Não ainda. No entanto, transferir esse poder virou um dos meus objetivos para o próximo ano.

É aqui que vou precisar de ajuda, acho, e não só das famílias. Agora seria uma parada mais séria, com uma profissional de verdade me guiando por esse caminho, que de vergonhoso não tem nada, conforme vi de Murilo e agora do Vinícius. Algo e muito tempo para explorar do jeito certo com as pessoas certas.

Mesmo que algumas dessas pessoas vivam luxos diferentes e odisseias diferentes.

Ainda assim, temos paranoias semelhantes. Ele também sabe das minhas e por vezes até se antecipa nelas. Quando ele voltou da cozinha, por exemplo, e trouxe consigo o pano com gelo, trouxe também um potinho de iogurte, com uma colherinha pra mim, e mais essa diferença de realidades.

— Gosta dessa marca?

— Não provei nada dela antes. Só sei que é das mais caras.

— Seria agora a hora de conversarmos sobre dinheiro e o quanto sempre quero te mimar?

— Não agora, mas em algum tempo. Ano que vem.

— Mas... vamos conversar sobre isso, não vamos?

— Sim. É o que fazemos e vamos nos manter fazendo.

É o que nos dá equilíbrio, penso. Conversar. Dar voz aos nossos pensamentos malucos, se fazer se ouvir e trocar ideias. Ou trocar lições. E razões e emoções.

Ao bater de volta ao encosto do móvel, Vinícius divaga de volta:

— Mas numa coisa o Tuca tava certo.

Saboreio mais uma colherzinha do iogurte chique. Não saberia determinar um sabor, pois era uma mistura deles. Inclusive, o conteúdo é laranjinha. Na tampa, o Vini disse ter visto escrito “sabor vitamina de frutas”.

— Em quê?

— Precisava espairecer. Tava começando a pirar mesmo.

Vinícius puxa um pouco do seu cabelo de lado demonstrando que tava de um jeito lastimável. Vez que está mais aberto, me ajeito no sofá para poder ficar mais cara a cara com ele. Desta maneira, me encosto no braço do móvel e passo minhas pernas por cima do dorso no namorado, que as recebe de bom grado.

— Nisso eu concordo. Só ainda não entendo... como os sinais... pareceram sinais. E o livro da vovó no meio.

— É que... depois daquela dinâmica no Natal, e as coisas que fui repensando... além dos sonhos... Enfim, lembrei de um trecho do livro da dona Marília, só que eu não sabia exatamente qual, então fui relendo e... Não era um texto específico, era uma ideia, sabe? Tanto é que fez mais sentido quando vi uma anotação minha.

— O que fez mais sentido? Qual era a ideia?

— “Não podemos.... prender as pessoas conosco”.

Vini faz mesmo as aspas com as mãos. E continua:

— Percebi mais disso ao comentar sobre o que fiz com Renato. Me arrependia não só pelo fato de ter feito isso de cabeça quente, né, zangado por... por como a presença dele me ativava de um jeito exagerado, mas também por saber que fiz algo que... não tinha direito. Não tinha o direito de me meter entre ele e minha mãe. E sabia que era algo errado, se não, não teria escondido dela. Ou de você. Mesmo que eu tenha contado depois.

Para o que vem a explicar, Vini fica mais cabisbaixo, desviando o olhar, porém, assumindo os seus sentimentos dessa confusão toda.

— E aí pirei porque... Parecia que eu tava “recebendo” mensagens – sinais – pra te deixar ir. Pela minha insegurança e pela cabeça ferrada. Que também alimentaram isso. E meio que senti... que não passaria dessa vez. Não sei se faz sentido pra você agora.

Divago um pouco, encadeando as informações, para montar melhor o quadro geral na minha cabeça.

— Acho que um pouco... sim. Tipo, as coisas foram acontecendo e a tua cabeça foi interpretando tudo com esse viés. E aí teve essa... “percepção”... que levou as coisas pra lados diferentes. Diferentes do real. Então, de fato, paranoias e inseguranças, e um alimentando o outro... Mas aí você... Você decidiu me deixar ir, foi isso? Se eu terminasse.

Vinícius assente, inibido.

— É, bem isso sim. E aquela corrida acabou me dando essa suposta clareza.

Ele faz um bom uso da palavra “suposta”, porque agora que as coisas estão realmente encontrando suas lógicas e compreensão do todo.

— O Tuca tava me falando... de como tava um pouco pesado esse fim de ano, com muitas responsabilidades e algumas coisas acontecendo em casa... E aí ele disse que ia sair pra correr numa praça, perto da casa dele. Daí, num ato de agonia acho, eu simplesmente fui na loja esportiva, essa próxima ao trabalho, e fui nessa praça, estacionei lá, quando ele já se alongava. Eu queria conversar e ao mesmo tempo não queria e aí...

— Pera, tu correu com roupa do trabalho e tudo?

— Errr... Não. Eu tinha uma camiseta no carro e ele me emprestou uma bermuda.

— E as meias?

— Comprei junto com o tênis. Inclusive, são azuis. Não tinha brancas lá.

Tudo o que ele diz parece tão certo em sua cabeça, tão simples até, mas na minha, não sei. Ainda me encontro descrente por como as coisas foram se sucedendo.

— Ainda tô tentando visualizar isso.

— Eu não tava pensando, Mi, só... agindo. Tava tão alucinado que... essa foi... minha... forma... de respirar.

Nem ele tem palavras direito pra isso.

— Eu sei que não faz lá muito sentido, só sei que foi assim. A gente deu umas voltas na praça e claro que fiquei mais atrás, porque faz um tempo que não me exercitava assim, pelo menos não uma atividade intensa desse jeito... Só que de fato ajudou, mesmo comigo todo embaralhado.

— E a conclusão que você chegou... foi de me deixar ir. Se eu terminasse.

Não o olho diretamente e sinto que ele também não, pela sensibilidade do tema. Mas Vini segue falando, o que é bom.

— Sim. Se fosse da tua vontade... eu tentaria te deixar em paz. Tentaria te deixar ir. É claro que eu não queria isso, e não quero, mesmo, mas, ao mesmo tempo, tive que lutar com essa sensação louca de que... Eu não queria te prender, Mi. Também não tinha esse direito, mesmo que isso significasse te perder. Lutei para aceitar essa ideia e poder facilitar pra você. Algo como ser seguro em minha insegurança? Realmente, não sei dizer.

Eu também não sei o que lhe dizer. Como ele, tento juntar as palavras. Dessa vez, no entanto, levanto os olhos para ele, embora pisque demais e me encontre embaralhada.

— Eu só... Eu fico chocada com tudo isso, Vini. Porque... É... surreal. De como as “pistas” ou “mensagens” foram se moldando... e de repente tudo ruiu de um jeito que... E você se esforçando para aceitar o próprio absurdo, sabe? De que haveria um término e que me deixaria ir.

Vinícius me complementa, um pouco mais certo das suas incertezas.

— Pra dar o espaço que precisasse. Sem ter esse... louco... te atormentando o juízo. Como eu fiz no ano passado.

Deixo o potinho de iogurte zerado ao lado, no espaço entre mim e o sofá, e me movimento para chegar mais próximo dele, mesmo que já estivéssemos tão perto por eu estar numa posição atravessada a ele. Abraço seu pescoço, me apoiando em seu ombro e acarinho seus cabelos com calma.

— E eu aqui só... querendo te abraçar, te beijar e dizer que te amo.

Apreciando o gesto, Vini me envolve mantendo o contato.

— E eu aqui só tentando me convencer... de que tudo...

Tão logo que a posição parece me apertar o ventre e um desconforto surgir, me mexo para me reposicionar. Aproveito para lhe dar espaço de completar o que dizia.

— Também não acredito que fui capaz disso, sabe? Ao mesmo tempo, fui capaz de muita coisa. Com o Renato, com o Sávio, com o...

Vinícius mesmo se pausa para não dizer o nome do outro. Ao abaixar a cabeça por quase falar, ele apenas me acarinha a perna, meio distante. Eu, por outro lado, coloco mais palavras nesse vago que ficou.

— Foi também capaz de me dizer. Mesmo quando isso te consumia de uma maneira... insana. E disse a sua mãe. E pediu perdão ao Renato.

Ele confirma com a cabeça, embora o desânimo ainda o tenha por todo. Mas me surpreende ao citar um trechinho – um dos meus favoritos, diga-se de passagem – de uma das crônicas da vó Marília:

— “Nunca é tarde demais para colocar a vida no lugar”.

— “Quantas vezes for necessário”.

Beijo-o com delicadeza, desses beijos que valem como selos – não selinhos, mas sim o selo postal mesmo – que marcam um contato firme, um carimbo, de uma sanção ou licença aprovada. Era sobre sentir segurança e algo sólido. Convicto. Forte e valioso. Desses que vou guardar comigo por muito tempo e espero que assim seja com ele.

Também desses que é interrompido sem querer quando o copinho de iogurte vira por nosso encontro e a colher quase suja o sofá. Dá tempo de recolher e colocar na mesinha ao lado, onde ele ainda concentrava o pano com gelo sobre seu pé.

— Não tá queimando sua pele?

— Eu aguento mais um pouquinho.

Assim ele me puxa para mais um beijo, mais intenso e de mais contato. O que era apenas um desconforto leve ao ventre também se aviva em sua presença, mas não deixo de corresponder, pois quero demonstrar todo meu carinho de volta, como se pudesse espantar todas as nuvens estranhas que o rodearam nesses últimos dias e dar-lhe essa certeza, outra vez, de que tudo não se passou de uma ilusão, um temor. Que verdadeiro é esse amor que irradia de mim para ele.

Se foi de dez segundos ou meia hora, não sei dizer, só sei que em algum tempo o Vinícius gruda sua testa na minha, depois deposita um beijo rápido lá e, risonho, diz:

— Segura esse pensamento.

É assim que ele tira minhas pernas atravessadas nele, pega o pano molhado, a colher, o potinho de iogurte, e desaparece mancando, porém, num ritmo que mostra que queria logo voltar.

~;~

Sem esperar o namorado retornar, me encaminho para a cozinha. Dou de encontro com ele no corredor, ele vindo do que parecia ser seu quarto. Em mãos, detinha um tubinho de gel para pancadas. O mesmo que precisei usar não fazia muitos dias.

— Demorei?

— Nem. Só vim pegar um pouco de água.

Em mãos eu também tenho um remédio, só que numa cartelinha. A cólica chata que havia despontado durante nossa conversa havia se intensificado a ponto de eu ter que recorrer a um comprimido.

Vinícius me segue para beber água também, mas se detém em suas goladas quando apresento a cartelinha para retirar o remédio.

— Esse é pra cólica, né?

Só assinto antes de colocar na boca.

— Tá doendo muito?

— Não muuuuito muito, mas tá começando a incomodar.

— Quer deitar?

Me movo com calma para colocar o copo no lugar, seguida dele, e lhe respondo:

— Só se for com você.

Seguro em suas mãos para me guiar ao seu quarto e estranho quando ele vira para o outro lado do corredor, em direção ao quarto de hóspedes. Logo que fica claro minha interrogação, Vinícius diz:

— Das outras inúmeras coisas trágicas que me aconteceram hoje, está o perfume que quebrou no meu quarto. Não tá muito respirável lá. Até abri a janela e deixei o ventilador ligado, mas ainda não dá pra ficar por lá.

— E os cacos?

Viro sua mão para conferir se houve machucados. Se aconteceu de um tudo hoje, não me admiraria. Estava mesmo tendo um dia de merda, mesmo que fosse uma expressão bem ruim de se falar.

— Recolhi os que encontrei. E não, não me machuquei. Ao menos isso nesse dia esquisito.

— Por isso que tava sentindo teu perfume daqui.

Não era o que eu o havia dado de presente de um ano de namoro, ainda bem.

— É, ainda não tirei o lixo com os cacos. Foi por isso que também fui lá pro telhado.

Nisso, ele liga a luz quando entra no quarto e eu desligo quando eu entro em seguida. Vinícius ri um pouco pela minha graça, apesar de não ser totalmente uma zoeira minha, mas pelo fato de a luz por vezes me incomodar também quando a cólica se faz bem presente. Deitar seria bem bom, principalmente com ele. Agora só quero me aconchegar.

O que não significa não conversar.

— Me admira que depois de tanto desastre, tu ainda teve coragem de subir uma escada e ir pro telhado. Poderia ter tido novas tragédias.

E teve, considerando o encontro do seu pé com o balde.

— Eu não tava pensando direito. O que também foi uma das razões que me fez subir. Pra me preparar para nossa conversa. Me preparar para te deixar ir se fosse preciso. Pra fazer com calma e sem exaltações.

— Awn, Vini.

À pouca luz deste dia nubladinho, me sento à cama com cautela, sem quebrar o contato de nossas mãos e não deixo de pensar em como foram as últimas horas para ele. Terríveis, apenas terríveis.

De pé como permanece, Vinícius parece um pouco longe em suas ideias, pensativo. Agora com mais consciência.

— Tá tudo bem. Agora eu vejo que, como você disse, era estapafúrdio. Talvez eu vá correr hoje só pra poder clarear ainda mais essas coisas na minha cabeça.

— Com o seu tênis novo? E meias azuis?

Brinco para amenizar o papo enquanto tiro a bota que não deveria mais utilizar.

— Agora tenho que usar, né? É mais seguro do que ir pro telhado de novo.

— Isso é.

Me ajusto numa posição de lado na cama, de modo que fico de costas para ele e para porta. Pensava que Vinícius mexia em um dos gaveteiros quando noto uma breve saída sua. Quando retorna, já estou bem acomodada, mas quando ele se senta na cama, sinto o movimento reverberar por todo o meu ventre.

— Menos movimentos bruscos, Vini.

— Desculpa, foi sem querer.

Ele mexe em algo mais antes de se deitar – com cuidado, às minhas costas.

— Posso?

De onde estou e como estou, apenas vejo o braço de Vinícius passar por cima de meu dorso, pronto para zelar pelo meu conforto.

— Pode.

Sua mão desce com cautela para minha barriga, que está esparramada para o lado no colchão, e, de leve, ele faz um carinho quase imperceptível com o polegar. Continuo a seguir o ritmo da minha respiração enquanto o remédio age.

Ao silêncio confortável e sentir seu toque delicado ao meu corpo, me concentro na sua quietude e em tudo que me falou. O que desabafou, na realidade.

Inevitavelmente, me vem à mente uma cena da série que vi com mamãe ontem, em que perguntaram: “está preparado para tudo o que vem com a verdade?”. Acho que até um tempinho atrás, eu diria que não. Mas então o Vinícius entrou na minha vida. Ele também me fez valente.

Posso, aliás, dizer que já não sinto a ânsia de esconder as coisas; pelo contrário, tenho sentido mais a necessidade de falar e de me abrir. E não só para ele. Sei que essas decisões e passos todos têm sido meus, assim como ele tem os dele.

Nenhum desses foi fácil.

Hoje, por exemplo, cheguei aqui toda decidida a compartilhar verdades e resoluções e encontrei... respostas. Dele e minhas pra tanta coisa. Ouro puro até. Respostas de fato preciosas. Quero poder destrinchar tudo e mais um pouco. No entanto, preciso me aquietar neste minuto. Temos e teremos bastante tempo para tudo isso.

Também tenho um tempo até a hora dos trovões, lembro. E lembro que trouxe materiais de apoio. Diferente da bota protetora que insisti hoje em usar, esses sim eu poderia fazer uso. Na real, não quero me pressionar.

Acho que também não quero esperar o inevitável acontecer para experimentar.

Como a bota que me vejo com dificuldade de largar, quero primeiro um espaço seguro pra testar. Decido então aproveitar a posição confortável que me encontro – sem, no entanto, me tocar de uma coisinha:

— Vini?

— Tô incomodando? Quer que eu pare?

Pelo contrário, quero ficar aqui assim pra sempre e nem me mexer.

Mas o que digo é:

— Não tá não. Pode pegar uma coisa pra mim?

Com um selinho delicado ao meu ombro, ele responde:

— Só pedir.

— Tem um mp3 na minha bolsa, no compartimento lateral.

— Mp3?

É na sua interrogação bem desentendida que noto onde fui “amarrar meu burro”. Quer dizer, amarrei a história toda errada, pois comecei o papo de maneira desordenada. Coloquei o “burro” na frente da carroça. Não que fosse errado, mas agora parece que eu estava arquitetando isso – para entrar no assunto de trovões – e eu não tava. Foi só algo que me ocorreu e acho que não foi uma boa entrada no tópico.

Porque até então não me detive a ele.

— É... Aquele que o Murilo me deu.

Vinícius se move um pouco para se sentar e então, sim, cai a ficha.

— Ué, mas não era pra... Não. Hoje tem... previs...?

Diante das suas tragédias pessoais, não queria ter que trazer essa outra, mas uma hora ela iria aparecer de qualquer maneira. Eu só queria mesmo era ficar aqui, de conchinha com ele, pra sempre. Até mesmo virar o ano nessa cama, namorando ou não, mas perto dele e nessa bolha de paz e segurança. Mesmo com as inseguranças de ambos.

Me viro um pouco no colchão para ficar de barriga para cima e ter ele no meu campo de visão.

— Então... Era uma das coisas que tinha pra te falar. Que hoje tem previsão. O Murilo me avisou já no finzinho de ontem.

— De ontem? Meu Deus, onde que eu tava com a cabeça?

Nisso, Vinícius quase salta da cama, agitado.

— Não tem problema, Vini. Eu também nem me toquei disso até o Murilo falar e...

— Caramba, eu sou a pior pessoa do mundo!

Com uma mão na cintura e outra puxando os próprios cabelos, ele se perde no próprio surto. Julgo? Não. Porque parece um déjà-vu de situações nossas passadas, comigo me culpando por coisas que deixei de ver ou de fazer.

Sento-me mais reta para dizer-lhe o que precisa ouvir.

— Não é não. Não cometeu nenhum crime, aliás.

— Lena, não tenta amenizar. Porque eu... tava...

— Tava com a cabeça cheia, só isso. Eu também, tá? Aliás, entendo. Eu mesma tava animada com tanta coisa que nem vi isso passar na televisão. Fora que muita gente viu e teve quem não se desse conta também.

— É, mas...

Vendo-o exaltado assim, infiro:

— Só não vale uma tortura, Vini. Mais uma não.

Mais conturbado ele se mostra:

— Você não é uma tortura, Lena. Nem sua fobia.

— Não é mesmo, porque não é disso que tô falando. Vem cá.

Apesar de balançado, ele se aproxima de mim novamente, porém, se mantém de pé. Com carinho, abraço suas mãos nas minhas e me detenho ao seu rosto, um pouco mais alto em nossas proporções de posição.

— Não quero que se torture, só isso. Lembra das ideias estapafúrdias? Descabidas? Você estava envolvido e com muitas delas para se dar conta de... de qualquer coisa mais. E tudo bem, de verdade. Como eu disse, eu também não percebi até que... Até que isso virou uma realidade bem na minha porta.

— Que eu nem te deixei falar.

— Porque tínhamos outras coisas – e mais urgentes – para falar. Que também eram importantes e agora você tem mais consciência sobre elas. Apenas não quero que se culpe.

Com essa, ele se senta na lateral da cama e eu me movo para ficar ao seu lado. Sem desfazer nossas mãos juntas, deito-me ao seu ombro.

— Tô surtando de novo, né?

— Um pouquinho sim. O que também é compreensível.

Com um suspiro, ele parece mais calmo, embora sentido.

— Nem te dei espaço desde que chegou.

— Havia uma tempestade diferente para lidar.

Vinícius toma um tempinho quieto e só entendo que estava a rebobinar quando vem sua pergunta:

— Qual foi a decisão que...? Caramba, eu te interrompi demais.

Ele dá um tapa com força na própria cabeça por isso. Eu, por outro lado, não gosto. E aponto.

— Por favor, não faz mais isso?

As sobrancelhas dele vão quase no teto.

— Te interromper?

— Não, isso aí... de se bater quando... Só não faz, tá?

Meu pedido faz com que ele se dê conta disso também.

— Ô, Lena, eu...

— Também não fica dizendo que você é um idiota. Porque você não é. Não gosto quando recai para a violência, menos ainda quando se deprecia assim. E agora... não gosto de ver, ou saber, que você anda se machucando desse jeito.

Penoso ele se mostra, não sei se por como eu fico ou por ele perceber que isso não é nada legal e que está acontecendo com certa frequência.

— Ô, amor, eu nem notei. Foi realmente sem querer.

— Naquele dia do almoço também foi sem querer?

Faço o gancho porque isso me deixou preocupada mesmo.

— Não exatamente. Eu tava muito pilhado, e era comigo mesmo, e tentei fazer algo que vi nos filmes... para me fazer parar. Não funcionou. Mas não faço mais, prometo.

Vinícius espalma a mão ao peitoral e isso me amaina. Só assim sinto que podemos prosseguir.

— Do que a gente tava falando mesmo?

O que não faltam são coisas para a gente conversar. Talvez seja melhor eu fazer uma lista e sair riscando uma por uma.

— Que eu te interrompi. E fiz de novo, pelo jeito.

Vinícius me acarinha o rosto como um pedido de desculpas. Me movo um pouco, não me esquivando, mas sim ficando mais reta para poder ser direta em mais um detalhe.

— Não foi uma interrupção tão má assim... Até me ajudou, na verdade. Falo da discussão, naquela hora que cheguei. Porque... me fez perceber... Me fez perceber coisas sobre mim também, que quero mudar. Que é chegada a hora de fazer algo a respeito.

Avalio um pouco de como Vinícius está para entregar a próxima grande notícia. Ele se mostra atento e mais receptivo. Ansioso também. Preocupado até. Mas presente e disposto em ajudar no quer que seja.

— Algo como?

Demoro uns segundinhos com a palavra em minha boca.

— Terapia. Buscar um profissional. Pra minha fobia.

— Que maravilha, amor!

Animado e aliviado, Vini me abraça o rosto e depois me abraça por completo, apertando-me contra si. O misto de emoções me pega outra vez, assim aproveito seu contato para nele repousar.

Contra seu pescoço, confesso o que me incomodava ao peito:

— Só cansada de sentir culpa também. E sentir culpa por as pessoas se sentirem culpadas por mim. De como isso afeta o Murilo e... tantas pessoas mais. Por eu ter uma fobia. Por eu ser assim. Quero mudar essa sensação. E falar, enfim, sobre todas essas coisas que guardei aqui por muito tempo. Ter a orientação certa.

Vinícius me solta para que possa ver meu rosto e eu possa ver seu lindo sorriso. Ficamos os dois emocionados.

— Fico muito feliz com isso, Lena. Tipo, muito mesmo. Um passo grande. Enorme e importante.

— Um passo de coragem.

Ele confirma, também mexido.

— É, um passo de coragem. Que acho... que me inspira também?

— Inspira? Como?

— Pra começar, a não me culpar de primeira por algo, como fiz ainda pouco.

Pelo jeito que me olha, por como seus olhos brilham, ele parece mais acanhado e descrente do que eu pela própria atitude. Assim passo o polegar em sua testa para terminar de desanuviar seus pensamentos. Devolvo-lhe um pequeno sorriso de vitória para incentivá-lo mais ainda nos seus passos de coragem.

— É um bom começo.

E esse começo melhora ao ser prosseguido de um beijo seu. Que em um tempinho ele mesmo se interrompe para ser gentil e perguntar:

— Ainda quer que eu pegue o mp3?

Hesito um pouco.

— Acho que sim? Pensei em... só experimentar. Antes de... você sabe.

Ele se levanta de pronto e já declara outra decisão. Que tenho algumas considerações a fazer.

— Vou para sua casa hoje.

— Na verdade, Vini, acho melhor não.

Decisão difícil, porém, necessária no momento. Que meu Vinícius não entende de primeira.

— Mas...

— É que dessa vez vou estar com mamãe. Vou deixar que ela me veja e veja como... Como são as crises. Sinto que... Vai ser diferente. E não sei se conseguiria lidar com muitos olhares sobre mim. Não nesse momento, entende? Não agora.

Vinícius parece titubear, assim reafirmo as bases da nossa conversa até aqui:

— Espaço e confiança, lembra?

Então o Ryan Tedder nos interrompe com breves acordes e uns versos iniciais. Acho que foi isso que Vinícius fez na sua breve saída logo que me deitei no quarto – foi pegar nossos aparelhos celulares. O meu toca e vibra no cômodo ao lado. Nem preciso me esticar pra ver o nome de mamãe, mas me estico do mesmo jeito para poder alcançá-lo e atender.

— Oi, mãe.

— Amorzinho meu, ainda tá na casa de Djane?

— Tô sim. Por quê?

— É que aconteceu uma coisinha no salão.

— Que tipo de coisinha?

Acho que não faço uma cara boa, pois Vini vem pro meu lado de novo. Não que desse pra ouvir algo, só fica atento mesmo. Mamãe, do outro lado da linha, lamenta-se.

— A moça errou na produção de Djane, coitada.

Com essa, sento-me ereta, também bem atenta.

— Como assim “errou na produção”?

— Pintaram o cabelo dela de rosa, filha. Acredita nisso?

— O q...?

As palavras nem saem da minha boca direito e mamãe já toma a vez de novo, chateada por essa nova confusão.

— E ainda por cima rosa choque! Olha, ficou um negócio bem esquisito. Eu mesma não iria querer isso pra mim. Mas a questão é que ela acabou de me deixar aqui em casa e tá indo praí. E ela tá muuuuito, muito, muito chateada. Ai, Milena, nem sei o que dizer, viu. Só peço que seja cuidadosa também. Cuidadosa com o que falar, com como vai se expressar... tá? O que teve de coisas erradas sendo ditas naquele salão não tá nem escrito.

Pisco para as paredes tentando imaginar a cena, sem sucesso.

— Tá bom. Valeu por avisar.

— Beijos, amorzinho. Te vejo daqui a pouco.

— Até depois.

Encaro a tela do celular após desligar. Vinícius é quem me traz de volta.

— O que foi?

— Errrrr... Um pequeno incidente no salão.

Para um complemento, bato na perna nele para que se atente para isso também.

— E temos que nos preparar.

— Nos preparar?

Escolho as palavras diante sua carinha perdida.

— Nos preparar para mimar um furacão chamado Djane.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.