“Preciso de você calmo” é uma declaração que, eu já sabia, não era efetiva. Pedir desculpas de cara também. Nem sei se isso conseguirei.

Repasso na mente – e compulsivamente – maneiras de declarar o que tenho pra declarar e ao mesmo tempo tento me preservar do desgaste. Por mais que este dia esteja se alongando demais, e ainda mais porque já selei o compromisso de falar, já não vejo muita coisa senão essa profusão de “planejamento”. Quer dizer, discurso planejado.

Chego ao trabalho assim, não consigo me desligar. Sei que preciso me distrair, com qualquer coisa, porém, meu pensamento não consegue não me imaginar cara a cara com Max falando sobre minha última descoberta. O que tenho até então é dizer na lata, sem rodeios. Algo como:

— O que você precisa falar?

— Flávia e Gui descobriram sobre o esquema da faculdade. Aparentemente, eu falo enquanto durmo. E eu passei dias na casa da Flá, se você bem lembra.

Até esse ponto, me parece ok. Não preciso revelar que foram eles que arrancaram de mim, nem que no processo o Gui teve que “se deitar comigo” e se passar pelo Murilo. Era humilhante demais. Vergonhoso demais.

Minha mente projeta ainda mais:

— Soube sim.

— Eu só descobri porque ouvi uma briga dos dois, em que falaram que o pai de Gui está envolvido no assalto. Que não foi assalto. Foi um recado.

Direta demais?

Dou “bom dia” ao Sam quando passo pela portaria, e ele devolve em bom tom, bondoso. Não estava outra, mas com certeza não estava tão péssima como na semana passada, quando vim arrastada. Murilo é a razão disso – minha salvação, na verdade. Agradeço-o quase a todo minuto e fico mais tranquila por ver o quanto ele aprecia que eu esteja mais aberta para dividir meus pensamentos e preocupações. Parece que estou num sonho. Também porque tem hora que não acredito na minha realidade.

Sei que tô no campo real por andar com o corpo todo dolorido – porém, com dignidade. Murilo falou por alto algo sobre ser algum tipo de dor emocional, em que o corpo fica moído por tanta tensão. Um banho realmente ajudou, mas ter de sair do meu casulo de amor e cuidado pra enfrentar o mundo fez todo o peso retornar.

Preciso seguir em frente, só isso. Um passo por vez. Primeiro o trabalho, depois, reunião com Max. Sim, nessa ordem. Não sei o que me espera pelo dia, mas eu me devia isso, um pouco de sanidade.

Não quer dizer que o cérebro desliga, no entanto.

Ando um pouco desorientada pelo corredor da empresa e topo com meu chefe e Iara discutindo algo. Paro porque estão bloqueando o recinto. Percebo que ambos estão um pouco alterados. Olho de um pro outro e não tem jeito, vou ter que passar por eles. Se fosse pelo outro corredor, teria que dar uma volta enorme. Então apenas sigo.

Thiago é o primeiro a me ver.

— Milena, que bom que chegou! Tenho que sair pra resolver um pepino de um contrato e... Quer saber? Vou te levar junto. Talvez a gente precise de mais testemunhas.

A informação não bate direito. Minha sensação é de que se fosse em outro momento, eu me engajaria na situação quase por automático, porém, agora, o que ouço só entra por um ouvido e sai por outro, sem alguma retenção.

Nisso Iara belisca meu chefe no braço e ele faz cara de quem não sentiu nada, só adota um sorriso afetado na cara. A coisa toda ainda tá rolando na minha frente.

— Thiago!

— Eu tô mentindo?!

— Nada disso, deixa que EU resolvo.

Olho de um para o outro e só quero chegar na minha mesa. Entendo que existe alguma situação sobre sair e acompanhar, coisa que em outro momento, também, eu me prontificaria a ir de boa. Me distrairia de outras coisas na cabeça? Sim. Só que quero o mais simples agora. Só sentar na minha mesa mesmo. Decido me manifestar nesse ponto; no entanto, tem algo maior acontecendo que eles insistem em me meter no meio:

— Gente, eu só vou pra...

— Não precisa, Milena, porque é o THIAGO que tá se PRECIPITANDO e...

— Olha lá o que você vai dizer pra minha funcionária!

Iara bufa e parece pensar melhor sobre o que iria dizer. E nesse processo, cede um pouco. Mas só um pouco pro gosto (ou não gosto) do meu chefe.

— Humf. Tá, a gente vai. MAS EU dirijo.

— Não, eu dirijo!

Iara bate de frente e leva uma mão à altura do rosto de Thiago, mostrando uma determinada medida bem pequena. Ele, por outro lado, não se intimida e ainda arrisca uma provocação que deixa minha amiga uma pimenta de alteração.

— Eu tô isso “aqui” de vazar tuas informações, viu!

— Eu sei que você não vai, porque seria te entregar pro chefão.

Do jeito que tá, é melhor perguntar:

— Gente, o que tá acontecendo?

Respondem os dois juntos, sem me olhar.

— Nada.

— Tá ok, então. E vai demorar? Eu tenho que ir pra minha mesa.

Eu tava falando da discussão, mas a Iara entende que é sobre a tal saída.

— Não sei se vai demorar. Vou só pegar minha bolsa e a gente vai. Me esperem aqui.

— E eu vou pegar meu celular, mas tô de olho, viu!

E então eles saem, cada um pra um lado e eu fico ainda toda interrogativa no meio do corredor. Era pra esperar ali? Fico sem entender nada e não sabendo como escapar da empreitada. Acho que é uma das poucas vezes na vida que não quero me envolver no assunto ou ajudar e não sei se isso é uma sensação (e decisão) boa ou não. Quer dizer, se eu quero a paz que quero na vida, preciso me envolver menos nas coisas, certo?

Estou ainda a debater isso em mente, parada ao corredor quando, de repente, sinto que alguém me puxa. Alguém coloca o braço por trás de mim e me puxa. Ao voltar pro momento presente, vejo que é Iara, sem a bolsa, me fazendo caminhar com ela de volta para a portaria. Isso faz parecer errado. Parece que estamos fugindo.

Entendo, de alguma maneira, que estamos. De Thiago.

Preciso eu estar calma.

~;~

“Logo estarei em casa” é o que ecoa na minha mente e, por instinto, alcanço o novo cordão que o Murilo me presenteou. Ontem, durante nosso dia de esvaziar a cabeça, acabamos vendo coisas sobre o lançamento de vovó. No outro dia, chegou lá em casa uma cópia das imagens gravadas. Pareceu perfeito para nosso fim de semana ver toda a festança que foi, vez que o Murilo perdeu todo o lance.

Quando chegou na parte que aparece eu com a Flávia na festa, eu brigando pelo meu celular pifado e a Flá tomando o aparelho de mim, apenas ignoramos, como se a câmera não tivesse capturado a cena. Agora parecia tão distante. E distante permaneceria, sabe-se lá até quando.

Preferi contar ao meu irmão sobre o look que escolhi para a festa, fato que havia mencionado na época, mas me pego novamente comentando com ele. Foi ali que estreei o cordão de ouro, com nossas letras do nome, que ele me deu de presente no Natal do ano passado. Para combinação ficar mais especial, eu usei o mesmo vestido da data natalina. Lembrei de como desejei ver e estar com o Murilo e em como agora estou aliviada por ele estar aqui. Disse a ele que usaria mais a joia. E ele perguntou, com certa inocência e tristeza:

— E por que você não costuma usar?

Imagino que ele pensava que eu teria alguma trava ou barreira com aquele objeto.

— É porque é de ouro, Murilo. Eu ainda ando de busão. Não quero perder.

Com isso, ele suspira e ri. E depois ri mais gostosamente, a ponto de colocar a cabeça para trás.

— E eu pensando que você não gostava ou que simbolizava um tempo ruim.

— Daquele tempo ruim já me libertei.

— Que bom. Porque tenho outro pra você. É mais simples. Comprei quando estava fora. Mas tinha receios de você não querer, porque... Bem, por esse outro cordão ficar muito guardado.

E aí ele levantou e foi buscar o pacotinho. Era, como disse, mais simples. Uma bijuteria mesmo, de prata, e tão lindinho que gamei na hora. Mas fiquei mais emocionada pelo que ele me disse depois. Porque o pingente eram duas bolinhas pretas, que ele falou que combinavam com a pulseira com que o Vini me deu, e que ando bastante com ela.

Vini, meu Vini. Seu rosto aparece de repente na minha mente e toco a pulseira. Me pergunto como deve estar sua cabeça, ainda mais porque ainda não me atrevi a ver suas mensagens. Nenhuma, de ninguém, na verdade. Sei apenas que têm acumulado. Nesse meio tempo, ainda não me sinto preparada para encarar o namorado. Mal estou lidando comigo. Mas uma coisa de cada vez, né? É o que o Murilo diz também.

Volto a tocar no pingente. A questão é que meu mano também comprou duas bolinhas desse pingente e colocou no cordão com que ele anda. O cordão que contém um anel de compromisso seu com a Aline.

Por muitas vezes, durante sua viagem, ele se refugiava ao cordão, segurando-o, quase com uma prece, desejando e se prometendo logo estar em casa. Fazia isso em alguns momentos de aperto – fosse de saudades, fosse de indignação. E agora eu tenho um desses comigo. Como ele, meio que no aperto de situações esdrúxulas, recorro ao cordão ao pescoço e me prometo logo estar em casa, com tudo resolvido. Falta só mais um pouco.

No carro, com Iara, e no mais profundo silêncio, estamos passando pela conhecida ponte, eu divagando sobre isso além de toda a paisagem do meio da tarde, com céu aberto e nuvens espaças. Também preferi deixar minha amiga junto só de seus pensamentos. Principalmente depois do que houve lá na empresa, quando andávamos às pressas – ela andava, na verdade, e eu acabei apressando o passo junto – para o estacionamento.

— Olha, Milena, a gente faz assim...

— E o Thiago?

— Então, eu te levo e você fica de testemunha, pode ser?

Não deu tempo de pensar muito, mas considerei que ao menos poderia ficar livre.

— Poder pode, acho, mas ele vai te procurar.

— É, eu sei até demais.

— E a gente vai pra onde?

— Sabe aquele prédio bem bonitão que fica logo depois da ponte? Aquele que eu queria te mostrar o saguão.

— É hoje que vou lá?

Perguntei, meio desnorteada de toda a situação.

— Não, o escritório em questão que vou fica em um prédio atrás desse. Mas a gente pode parar lá só pra eu te mostrar o saguão.

Eu queria dizer que não precisava e que nem estava no clima, só sentaria no banco do passageiro e ficaria de testemunha do que quer que fosse, mas Iara tava tão traquina e agitada, rindo nervosa, que nem percebeu minha vibe enquanto abríamos a porta do carro de Filipe, já no estacionamento. Por alguma razão pensei que iríamos de moto, mas achei até melhor, porque queria sossego e menos emoções.

Ainda no escuro, resolvi perguntar:

— Tá, mas em algum momento você vai me dizer o que é essa confusão toda?

Colocando seu cinto de segurança, Iara pareceu um pouco desgostosa.

— Descobri quem tava pregando peças com o Sérgio.

— Quem?

— O teu excelentíssimo chefe!

Enquanto ela manobrava o carro para sair dali, processei a informação.

— Thiago? Sério?

— Uhum.

— Por que ele...?

— Ele queria me defender. De um modo bem... sei lá.

— Como você descobriu?

— Ele me contou na cara dura ainda pouco! Acredita? Eu quase o estrangul...

Isso explicava os ânimos quando cheguei na empresa.

Só que, enquanto Iara ia contando a história, de repente meu chefe apareceu na catraca de saída do estacionamento com uma cara nada boa. Coisa que eu já imaginava.

— Oh-oh.

— Ele vai ver só!

Nem queria me meter na história, mesmo. No entanto, me vi sem saída de intervir:

— Vai atropelar o cara por que mesmo, I?

— Porque ele... Argh. Ele não devia ter se intrometido!

O carro estancou. Thiago ainda ficou parado, analisando a situação de fora, as mãos direto no capô.

— É, ele não devia. Mas acho que entendo o que ele quis fazer. E você também.

— É, mas eu pedi pra ninguém fazer nada. Que eu ia resolver. Não ele.

Suspirei. Eles que deviam estar conversando, não eu ali. Pensei em pular fora pra dar espaço pro meu chefe. Mas do jeito que Iara estava, não sei se curtiria meu plano.

— Você ainda quer que eu vá? Precisa de mim?

Ela ia responder quando Thiago se moveu para a janela dela. Ela ao menos abaixou o vidro.

— Olha, eu vou levar a Milena e só, tá? Me espera AQUI. Dessa vez, ME ouve.

— Mas eu...

— Thiago, por favor. Preciso sentir que estou fazendo isso. Por favor, ok? Se me preza tanto assim a ponto de tirar os parafusos da cadeira do Sérgio e outras pegadinhas de filme juvenil, me ouve dessa vez.

Com essa súplica, acrescentei:

— É, e eu tiro foto mostrando que vou estar com ela.

Thiago só suspirou, vendo-se sem muita opção.

— Tá. Mas vou querer a foto mesmo. Eu não confio neles.

Iara então perguntou:

— Confia em mim?

— Sabe que confio!

— Então me deixe fazer o que preciso fazer.

— Estarei te esperando na minha sala.

Com essa, Iara moveu o carro para a avenida, calada, embora eu soubesse que sua cabeça estivesse só barulho de coisas conflitantes. Bem eu sei como é. Mas ver essa cena dos dois me mostrou muito mais da sintonia deles que pouco vi no tempo de serviço. Quer dizer, eu não sabia que eles eram tão próximos assim.

A gente nunca sabe tudo sobre alguém, acho.

Ao quase chegarmos do outro lado da ponte, me resigno com a situação. Talvez possa tirar algo bom dela, como uma boa distração. Desta maneira, puxo assunto:

— Então... estamos indo para o prédio bonitão?

— Acho que seria uma boa para ganharmos tempo. E fôlego.

— Se é o que você precisa no momento, I, tudo bem.

— E pra você, tudo bem?

— Como assim? Não estou eu aqui?

— Essa sua carinha não me engana. Tem algo rolando que eu sei. E sentimos falta de vocês ontem lá em casa. Estávamos colocando os enfeites de Natal.

Por mais que essa fosse uma imagem que muito gostaria de ter visto e participado, apenas respiro fundo, mais uma vez neste dia.

— Não tô ótima, mas vou encontrar meu eixo de novo em algum ponto. Murilo tem ajudado demais. Ele vai me buscar no fim do expediente.

— Fico mais tranquila com vocês dois tranquilos. E se você precisar de alguém, alguém mais, pra conversar, só me chamar. Tu sabe, né?

— Sei sim. O Sávio te falou que a gente saiu no outro dia?

— Muito por alto. Disse também que você não parecia legal. Ele não disse muita coisa e eu também não perguntei, preferi esperar te ver mesmo. Mas cá estamos. Desculpa te arrastar pra essa tragédia também.

— Nada. Por enquanto, só vou fazer o que posso fazer. Me concentrar no que posso me concentrar. E isso significa que posso ouvir tua história com Thiago, caso queira falar.

— Tem tanta coisa na minha cabeça agora que só tô pensando em maneiras de arrancar a cabeça dele.

— Eu seguro e você puxa, que tal?

Me permito brincar um pouco, ao menos.

— Seria ma-ra-vi-lho-so.

— Agora só falta eu ter coragem pra ajudar a matar meu chefe. Eu gosto dele, sabe?

O corpo de Iara recai por si, no banco do motorista, sinal de que toda essa agitação tava lhe pesando bastante.

— Eu também gosto dele. Mas, poxa, se fosse meu amigo, como ele se diz ser, poderia ter... sei lá. Conversado comigo. Não sido precipitado assim.

Já quase do outro lado da ponte, com um trânsito tão tranquilo que nem parecia ser uma segunda-feira de pleno dezembro, observo como Iara dirige, inquieta e indignada.

— O que ele fez afinal? Se puder falar, claro.

— Como eu disse, era ele quem estava aprontando com o Sérgio. Só que eram coisas bem infantis. Coisas bem de filme mesmo, Milena. Como naquele outro dia que ele trocou o açúcar pelo sal. Ou depois, que folgou os pinos da cadeira. Coisas bem idiotas. Tá que aquela cusparada do café com sal foi engraçada, mas depois... não.

Ela até ri minimamente pela lembrança, depois não.

— O fato é que isso não é maneira de lidar com as coisas. Se o Sérgio já me perturba só porque eu não sou formada, se ele descobre isso, ele nunca vai me ver como uma pessoa séria ou de respeito.

— Entendo. É a sua reputação em jogo.

— É essa a palavra. Reputação! Falta o Thiago entender isso. Porque, olha, eu gosto de brincar com ele e atazanar a vida dele, mas isso com ele. Não com um desafeto dele.

A palavra desafeto me dá um aperto momentâneo e até respiro pra liberar a tensão. Também para deixar o assunto de lado enquanto não é hora de revivê-lo. Percebo que passamos o prédio bonitão e não falo nada, deixo Iara ter seu momento. Ela para num sinal por reação automática ao ver a luz vermelha ao alto, mas sinto que sequer está vendo um palmo a sua frente enquanto fala. O que não é lá muito bom para quem dirige.

— E eu só descobri isso porque eu vi que um documento importante tá com um erro enorme, assinado por mim, que o Sérgio me enganou e me fez assinar, e isso pode me prejudicar feio. Vai ter uma reunião daqui a pouco, 18h, com os representantes da associação e eu preciso pegar esse documento de volta. O original. Porque eu vi o original. Mas, não sei como, o Sérgio alterou. Sei que pareço uma louca por acusá-lo e não tenho provas disso, mas sei, Milena, foi ele.

— Calma, I. Se você acredita que foi ele, eu acredito em você.

Iara estava tão agitada que só o fato de eu me dispor ao seu lado ela relaxa. De alívio. Porque ela se sente assim mesmo, louca e sem provas. Também bem sei o que é isso.

— Obrigada, Lena. Eu nem sei o que faria se...

A gente só percebe que o sinal abriu porque todo mundo atrás de nós começa a buzinar. Isso faz Iara tomar a direção de novo e entrar numa rua logo ao lado. Assim que viramos numa nova rua, paralela à avenida, mas seguindo o caminho contrário, como se estivéssemos voltando pra ponte, ela se reequilibra na direção e continua.

— Bom, o caso é que o Thiago me viu chegar esbaforida na sala de reunião pra checar com os dados da compra e foi atrás. Eu tava tão agoniada que quase vomitei meu almoço. A gente foi pra sala dele e eu expliquei, né, o que tava acontecendo. E aí ele me solta a pérola. Assim, sem mais nem menos. Disse “caralho, desse jeito vou ter que desparafusar mais coisas pra derrubar esse cara”. Acredita nisso, Milena?

— Se não me dissesse, acho que não. Thiago perdeu o amor à vida, só pode. E isso nem parece com ele.

— Exatamente! E ainda queria ele vir! Pra resolver o problema. Ele! Sendo que a assinatura é minha. Ai, Lena, já passei do prédio bonitão! Esqueci!

— Ei, chegamos, é isso que importa. E tem a reunião 18h, né? Tem que correr.

— É que eu queria só um tempo pra respirar antes de entrar e resolver esse caos todo. Ou meu almoço sobe de novo.

— Respira. Tô aqui com você.

Ela desliga o motor e olha longamente para a entrada do prédio. É até bem bonito, com grama verdinha e tudo. Aproveito seu momento de distração e pego meu celular. Me aproximo dela sem que perceba e tiro uma foto, de modo que apareça parte do prédio. Iara parece acordar pra vida.

— Não acredito que você tirou mesmo a tal foto.

— Eu sei que o que Thiago fez não foi nada legal, mas... você não está sozinha. Mesmo que o Sérgio apronte, você pode contar com a gente. Pra desmascarar ele, claro, não aprontar mais com ele. Embora queiramos muito.

Iara descansa a cabeça no alto da sua poltrona, com os olhos um pouco longe.

— Desmascarar ele envolve acessos que preciso solicitar ao meu pai e não quero que ele saiba disso. Ele também vai querer me proteger.

— É provável que sim, I. Por outro lado, não podemos deixar que o Sérgio se aproveite disso. Digo, se aproveitar da tua bondade e competência pra usar contra você. Não pode dar esse poder a ele.

— Eu sei. Eu só não vejo como.

Lembro da situação que passei na faculdade e no que queria ter ouvido na época. Ou pelo menos do que queria ter evitado de acontecer. Devia mesmo ter comunicado a Djane.

Enquanto mexo no celular para enviar a foto para meu chefe, comento:

— Acho que você precisa discutir isso com o Filipe. E fora da empresa, de preferência. Deixa ele reagir como o pai que ele é. Dê os limites que você precisa quando ele mostrar que vai fazer algo. Isso pode desarmar de verdade aquele arrogante do Sérgio.

— Acho que poderia mesmo... Preciso pensar um pouco sobre como fazer isso. Porque vai ser horrível.

— É, mas não tão horrível quanto como está agora.

Iara suspira, assentindo.

— Obrigada, Lena, de verdade. E desculpa estar te atrapalhando com essas coisas todas.

— Bem, eu tô de serviço sem estar no serviço e Thiago nem vai brigar comigo. Na real, acho que eu tô no lucro aqui.

— Ainda bem que te trouxe. Ainda quero arrancar a cabeça dele.

— E ainda arrancaremos. De outra maneira, espero. Tá melhor? O almoço voltou pro lugar dele? Ainda precisa de uns minutos?

— É, voltou pro lugar dele. Mas ainda preciso de uns minutos. Preciso calar essa zona que tá na minha cabeça.

— Que tal um pouco de murilices? Na verdade, tenho uma coisa pra te perguntar.

— Me fala das murilices primeiro. Doses de amor e carinho têm sempre que vir na frente.

~;~

Murilo me busca na entrada do novo centro meteorológico, um pouco confuso. Afinal, não era esse o plano, mas era uma mão na roda, por assim dizer. Ao invés de ele ter que ir me buscar na empresa, já estou aqui.

Ele dá um Oi rápido pra Iara, que logo pisa fundo para voltar ao escritório.

— Preciso perguntar?

— É só ela querendo trucidar meu chefe. Nada demais. Eles sabem se resolver.

Não iria contar seus problemas até que a informação fosse pública. Gosto de contar as coisas pro Murilo, no entanto, isso fazia parte da vida privada de Iara e eu seria essa pessoa a preservar. Ainda mais que ela foi gentil de vir me deixar e de driblar meu chefe. Se voltasse com ela, seria como ficar de um lado pro outro na cidade, como barata tonta. Até porque ao horário que chegasse, já teria que sair.

Demorou quase todo meu expediente porque os responsáveis que Iara deveria se encontrar estavam em reunião e usamos esse tempo para amainar os ânimos e conversar. Fora que o fato de eu não aparecer na empresa daria espaço pra Iara se Thiago não encontrasse sua testemunha. Ficamos assim combinadas.

Assim que entro com Murilo num corredor longo, não deixo de pensar em uma coisa. Fico atenta olhando ao redor enquanto ele está concentrado numa prancheta que tinha em mãos.

— Mu?

— Hum.

— A sala da Flávia...

Ele diminui um pouco o passo e levanta a cabeça, calmo pra me tranquilizar.

— É no outro extremo do prédio, no primeiro andar.

— Ah, ok. Sem contato.

Respiro, enfim.

— Pode ficar tranquila, a gente já vai. Só vou finalizar umas coisinhas aqui. E um dia desses, em que não estejamos tão atarefados, te mostro como é por aqui. Quando eu também me localizar das coisas. Tem hora que me perco.

Ele faz uma cara engraçada e me percebo relaxando mais uma vez. Como disse Iara, doses de amor e cuidado devem vir primeiro.

— E a sala da Aline?

— No segundo andar.

Dessa vez ele faz uma careta de chateado, mas logo ri. Era o trabalho, era um novo prédio e o profissionalismo deveria reinar.

Chegamos na mesa dele, numa sala com diversas pessoas, que ele me apresenta rapidamente. É curioso, porque em outro tempo ele praticamente taparia os olhos de seus colegas e impediria qualquer contato. É mais uma mudança interessante de ver nele. Murilo dá uma saída rápida e logo estamos de volta ao ar livre.

Ao passo que ele liga o carro, uma música relativamente alta soa. Complicated, da Avril Lavigne. A cena me lembra ligeiramente da situação com o Sávio no outro dia. Olho com graça para meu irmão e ele corresponde, meio que disfarçando.

— Ficou na minha cabeça. A sua performance no caso.

— Aí você culpa a Dani, porque isso foi coisa dela. Pelo menos não é nenhum Ih, ih, ih, ih, ih, ih, ih, ih, ih da Ellie Goulding.

Canto só pra perturbá-lo. Estou mais leve assim. Só deixando rolar.

— Não digo de uma maneira ruim. A Avril não me perturba, assim como você não me perturba. Eu só fiquei impressionado mesmo. Você canta bem, maninha.

Ele olha enviesado pra mim, com um bom sorriso. Aí sou eu que disfarço. Ele vem me dizendo coisas gentis demais que só fico desviando atenção. Acho que não sei mesmo receber elogios – pelo menos não assim do Murilo. Me dá uma sensação... inquietante. Com uma necessidade enorme de sair do centro das atenções. Mas acho que devo agradecer, mesmo com esse sentimento, então assim eu faço, sem muito estardalhaço.

— Ah. Obrigada.

Murilo manobra pra sairmos e eu meio que entro na onda da música, cantarolando baixo o restante dela. Tento me concentrar no momento e não mais na profusão de conversas que treinava desde cedo. A situação com a Iara, por incrível que pareça, acabou me relaxando mesmo. Acho que não poderia escapar de minha índole, de quem ajuda, de quem se dispõe. Mas em algum tempo deveria começar a me distanciar de algumas coisas. Ou pessoas.

O endereço que Max enviou era um pouco perto dali. Dei uma checada no mapa do Google para todo caso. Pelo que vi lá, era uma casa. Se era a casa dele, não sei. Só sei que estou bem mais tranquila do que achei que estaria quando isso tudo foi arquitetado.

Pela manhã, liguei e pedi um momento com ele, pois tinha novas coisas para compartilhar e que era muito importante. Foi uma ligação bem rápida, comigo ansiosa e Max curto e atarefado.

Ao chegarmos enfim na porta, solto o fôlego que logo voltei a prender durante o caminho.

— Pronta?

— Acho que sim.

Tocamos a campainha e alguém que não é o Max atende. Era um cara que devia ser um pouco mais velho que eu, mas mais novo do que o Murilo. Estava de roupas comuns, nem muito arrumado, nem bagunçado. Também não parecia nada com Max pra dizer se era ou não alguém da sua família. Perguntaria a Djane depois se ela sabe algo.

Me identifico e falo o propósito da visita— uma reunião breve com Max. Ele logo aparece quando adentramos a sala e nos direciona para uma saleta. Não deu de ver muito do ambiente, mas parecia ser mesmo um escritório e não uma casa familiar. De qualquer modo, era mil vezes melhor do que ir conversar com um policial numa delegacia. Na faculdade, eu não teria tanta confiança assim também. Sei lá, dava muito mais peso.

Fora que no outro dia eu briguei com Max na sala de Glorinha. Mas não era hora de pensar ou sequer me apegar a isso no momento. Estava ali para denunciar uma situação e só queria falar logo pra ir embora logo também. Era esse meu plano.

Assim que entro na sala, Murilo me acompanha. Da outra vez, ele havia ficado por perto, lá em casa; dessa vez, eu não entraria ali sem ele. Max entende isso e permite. Ele arruma algumas coisas que não consigo ver muito bem e num minuto está na sua cadeira, atento, bem à minha frente numa mesa larga. Murilo, claro, está sentado ao meu lado.

— Então, a que devo a honra?

Olho apenas para minhas mãos ao colo.

— Eu não sei bem como começar, então vou ser direta.

— Estou ouvindo.

Aperto minha bolsa contra meu corpo e me permito respirar um segundo. Eu consigo. É só dizer o que é preciso ser dito e pronto.

— A situação com o Aguinaldo, o assalto que ele sofreu no outro dia... Não foi um assalto, foi um recado.

Max não se mostra nem surpreso, nem afetado, apenas pensativo. Ele repete, processando a informação.

— Um recado?

— Para o pai dele. Mandaram... escorraçar e ameaçar o Gui... para pressionar o pai dele em alguma coisa. Essa parte eu não sei. Só sei que foi um recado.

Ele parece divagar um pouco, com a cabeça longe. Percebo por como apoia seu queixo nas mãos, os cotovelos na mesa, e os olhos fora dali.

— Entendo.

— E o Gui... Ele está disposto a falar. A falar com você.

Os olhos de Max de repente estão em mim, confusos. É agora.

Você consegue articular isso, Milena. Não precisa olhar para ele, Milena.

Abaixo os ombros, em sinal de confissão e um mínimo alívio de estar tirando isso do meu sistema. Mesmo que isso signifique revelar algo grave para Max. Ainda assim, me sinto constrangida.

— Porque ele descobriu sobre você. Sobre ser um policial e que existe uma investigação. Ele e a Flávia descobriram, na verdade.

Max apenas suspira, desgostoso. Antes que diga algo, emendo:

— E, aparentemente, eles descobriram através de mim. Sem eu saber.

Inevitavelmente, levo meus olhos ao cidadão a minha frente, muito pesarosa.

— Porque eu juro que cumpri o acordo, Max. Eu só... Também não sabia que estava assim suscetível.

A seriedade se une a uma secura repentina e compreensível de Max, que apenas responde:

— Não sei se estou compreendendo, senhorita Milena.

Amasso um lábio no outro, apreensiva.

— O caso é que... Às vezes, quando eu tô muito cansada, eu... Falo enquanto durmo.

Ele levanta uma das sobrancelhas, sem desviar o olhar.

— E teve uma temporada que eu passei na casa da Flávia, se você bem lembra.

— Lembro.

Ele diz, desta vez, severo e sisudo. Eu? Tomo um fôlego.

Porque estávamos na parte difícil e não sabia se conseguiria entregar a Flávia. Mas a sensação de culpa por algo que não fiz não deveria ser maior aqui. Emendo mais algumas de minhas impressões:

— Acho que a Flávia sentiu que eu estava com algumas coisas em mente, e se você lembra também, eu já tinha deixado escapar sobre o lance do Sávio nos proteger do André. E por algumas noites, ela apenas conversava comigo, e eu crente que estava... sonhando. É, horrível, eu sei.

Termino por fechar os olhos de vergonha que nem vejo propriamente a reação dele. Só ouço que Max batuca uma caneta que estava em suas mãos e confessa, distraído:

— Ela é mais esperta do que eu achava que fosse.

A Flávia também pode ser uma criatura do mal, penso. E lembro de já ter pensado isso numa de nossas brincadeiras, mas eis onde estamos, eis sobre o que estou falando e denunciando. Que ainda não acabou.

— E eu só descobri que eles dois sabem porque ouvi uma discussão deles, falando sobre o assalto. E que agora o Gui quer falar com você.

Max tem um curto momento de iluminação consigo mesmo.

— Hum. Faz sentido.

— O que faz sentido?

Como de praxe, ele me ignora. Já não tão fechado, ele pergunta:

— Mais alguma coisa?

— Trouxe o número novo dele, já que levaram o celular, né, e o de baixo é o da casa.

Puxo um papelzinho do canto da bolsa e deslizo-o pela mesa para Max. Continuo:

— E me desculpe, eu não sabia que havia esse risco de eu mesma soltar informações assim. Eu realmente... Não sei o que dizer senão que me perdoe. Não foi m...

Brando, ele interrompe minhas vagas tentativas de consertar o inconsertável.

— Acho que consigo entender, senhorita Milena. Não foi algo consciente. Pelo menos não de sua parte.

— Isso.

Ele se move com a cadeira, que só agora percebo ser de rodinhas, para um armário de documentos. Mexe em uma das gavetas, tira uma pasta, folheia rapidamente o documento lá contido e volta para a conversa. Nesse meio tempo eu nem consigo me mover, só observar.

— Obrigado pela sinceridade, Milena. Percebo seus esforços aqui. Deve ter sido difícil.

Max sendo gentil era uma coisa que ainda me assustava. Tanto que fico perdida.

— O que foi difícil?

Ele franze o rosto, explicando, com relativa calma, o que quer dizer.

— Saber que seus amigos pegaram uma informação assim de você. E de falar sobre isso.

Só assinto e já quero dar o fora. Seguro mais uma vez minha bolsa em mim, mas dessa vez me apoiando à mesa, me preparando para levantar e correr dali.

— Posso ir agora?

— Antes que vá, gostaria de dizer algo.

Tô tão fora de mim e da realidade que nem sei o que pode ser, só me deixo recair à cadeira, novamente sem quase respirar e com um grande aperto ao estômago. Já Max, mudando do vinho para a água, suaviza sua expressão. Ele toma uns segundos para formular e então me anunciar, me olhando diretamente.

— Só gostaria de pedir desculpa pelo meu comportamento no outro dia, no departamento. Eu fui grosseiro e mal-educado e, independente das circunstâncias, nada deve justificar. Apenas sinto muito e isso não vai se repetir.

— Acho bom que não se repita mesmo.

É a única intervenção de Murilo à conversa e ficamos por isso mesmo, porque, de repente, é muito pra mim. Acho que os dois entendem e assim que Murilo se levanta, eu me levanto e somos acompanhados para a saída.