Por mais que Anderson sustentasse um aspecto de compreensão aos olhos, eu não conseguia me manter frente a frente com ele. Abraço-me, deixo que fique às minhas costas, precisava de certa distância dele. Suas desculpas em nada me ajudavam a recobrir aqueles maus sentimentos que me pegavam de novo. Ele havia lido tudo em pouco tempo, absorveu quase sem respirar.

Ao perceber que eu estava muito calada, Anderson repetiu sua pergunta, insistiu:

– Você o amava?

Respiro fundo, preparo-me, pisco para o teto, não haveria mais porque esconder.

– Não. Não amava Kevin. Cheguei a gostar dele um tempo, ainda na oitava série, mas sabe como ele era, gostava da popularidade, não daria atenção a mim, que era mais reservada.

Senti que ele se moveu pelo espaço do camarim. Foi ideia de Eric para que conversássemos com mais privacidade e calma, nos trouxe para esse cômodo razoável. Teve, entretanto, que sair antes de começarmos qualquer coisa. Como produtor, tinha muitas responsabilidades para assumir, ainda que sua apresentação já tivesse passado. Hesitou antes de ir quando um funcionário da direção foi chamá-lo. Então lhe dei essa licença, iria lidar com Anderson sozinha mesmo.

Saiu com a promessa de que logo voltaria. E que estaria me apoiando.

Também me movi, caminhei em passos inquietos, porém calmos, pela extensão da penteadeira de maquiagem que detinha aquele camarim. Via-se que era um camarim para atender mais de uma pessoa. Quando levantei o olhar para o espelho a minha frente, vi, através dele, que Anderson me focalizava, sua expressão um misto. Por esse reflexo ele disse diretamente:

– Mas ele amou você.

Me viro para Anderson, quem mantém sua postura, indecifrável.

– Não, ele não amou. Ela o induziu a isso, não viu? Denise precisava de alguém pra interferir no meu relacionamento com Eric, assim escolheu o melhor amigo dele. Ela apenas sabia que...

Me instiga.

– Que...?

– Que eu tinha gostado de Kevin. Que tentei investir pelo menos em alguma amizade, só que não rolou. Fiquei foi muito amiga de Eric. Acabou que nos gostamos. Ele sabia da minha antiga paixonite por Kevin, viu quando isso se tornou passado. Éramos bem sinceros e justos. E Denise se aproveitou dessa informação.

Anderson nega com a cabeça, crente e descrente daquela situação. Chega a jogar-se no sofá de visitas, bagunça seus fios claros, parecia pasmo e confuso enquanto o fazia.

– O que ela fez... realmente... ainda me sinto abismado. Como ela pôde arquitetar tudo, jogar uns contra os outros... Ela...

Abrir-me a respeito de Denise era por sempre doloroso, era reviver cada julgamento, ira, decepção. As descobertas. As frustrações. As brigas. Não era nada de coisa pouca. Parecia infindável.

Ainda que nenhuma lágrima minha tivesse caído, muitas delas estavam juntas aos meus olhos já. Como uma piscada poderia destravá-las, passei firme a mão ao rosto para controlar-me. Mexendo os ombros, me encolhi novamente, aquilo estava se tornando constante. Era muito para mim. Mas eu aprendi, a duras penas, a conviver sem mais me martirizar tanto.

– Uma coisa é bullying, outra coisa é violência. Denise violentou moralmente mais gente que pude impedir. E eu tentei, Anderson, tentei muito. Mas a cada tentativa, mais podres surgiam.

– Eu sei, eu sei agora. E mesmo com esse caderno em mãos, mal posso acreditar.

O caderno, de fato, estava em suas mãos. Anderson tirou de algum compartimento de sua jaqueta, era pequeno o bastante para caber lá.

Sem muito olhar para aquele objeto, lancei minha dúvida.

– Você... já conversou com o Kevin? Após a leitura, quer dizer.

Anderson se pôs de pé, um tanto vacilante. Aproximou-se de mim enquanto reforçava um pedido. Era estranho de ouvir, e de enfim desabafar. Ele era um “desconhecido”. Que infelizmente sabia demais já.

– Não. Sinto que tem mais. Não tenho o direito, nem devia impor, mas, por favor, se puder... se não se fechar mais... por favor, já estou aqui. Preciso saber do quadro por inteiro. Quero seu ponto de vista.

Destravei minha autopreservação, iria fazer com que parte de mim se libertasse mais. Sentia que era preciso para respirar, um “vomitar” como diriam meus amigos. Então vomito. Enquanto rondava o camarim, que era seguida por Anderson, em passos e ouvidos, retomei alguns dos acontecimentos.

– Costumávamos ter um grupinho, ele era variável, nos dávamos bem. Ela entrou no segundo ano. E eu a apresentei a toda a turma, eu a infiltrei, na maior de minha inocência. Pois ela deu seu jeito de sair colhendo de cada um para formar esse seu plano máster. Parece idiota, tanto esforço para que nem no final ela ficasse com Eric, que era seu “desejo” maior. Mas ela não gostava de ninguém, era do próprio arquitetar para machucar as pessoas. De provocar a discórdia. Nisso ela... ela foi descomedida.

– Você não teve culpa alguma, sabe disso, né? Ficou claro aqui.

Às minhas costas, Anderson quase me parou de meus perambulares pelo cômodo, bateu a mão à capa dura do caderno. Não precisava ter ele às vistas se todos os meus sentidos interpretavam seus movimentos, sabia como ele devia estar se portando. Embora estivesse relembrando as cenas do passado, estava bem atenta a ele.

Havia, no entanto, um tamanho pesar em mim, um desânimo. Provavelmente aparentava um zumbi. E eu me sentia assim mesmo, uma morta-viva. Morta pelos meus medos, viva pelas lembranças.

– Ninguém além dela teve sua culpa. Todos os atos nossos foram de defesa, mas ela também se preparou para isso, assim criou toda a rede de intriga, para que quando um elo caísse, puxasse mais um, afetasse o outro e assim sucessivamente. E Kevin foi o primeiro. Melhor amigo de Eric, o grande jogador de futebol da série, ele caiu nos encantos dela. Aos poucos foi fazendo a cabeça dele.

Dessa vez Anderson me intercepta, ele se mete no meu caminho. Abre o caderninho na minha frente, às palmas das mãos, sem procurar uma página em si. Do material ele levanta a visão para mim. Estava tentando entender mais do contexto agora que as evidências e os fatos em sua memória, recente, se uniam.

– Pelo que entendi das anotações dela, Denise havia o convencido de que ele gostava de você, o que gerou certas dúvidas por ele ainda, porque você estava com o melhor amigo dele. Ela mencionou essa história de ter gostado dele antes. Kevin não queria ser o fura-olho, acho.

Era mais ou menos isso mesmo, assinto. Abstenho-me de dar muitos detalhes, só descrevo o quadro geral que me pedira. Além de evitar me aprofundar no caso, era por respeito a Kevin. Quanto a ele, Anderson poderia ter dados pessoais diretamente com o primo. Eu só sabia ao que tive acesso.

– Sim. E aí ela ofereceu uma relação com ele, falsa, para me testar. Saber se ainda havia algum sentimento meu por ele. Só que eles acabaram se envolvendo de verdade. Ela, no entanto, acabou com o senso ingênuo dele. E com suas virtudes. Ele teve comportamentos fora de seu comum, passou a ser às vezes agressivo. Enquanto isso, ela pagava pra mim de vítima. Que desconfiava que ele gostava de outra.

Mexendo a mandíbula, enraivecido e em cólera, Anderson se dispersou de perto de mim. Perambula pelo espaço, nervoso, inquieto, seus movimentos me pareciam involuntários, apesar de controlados. Ou de o controle estar no limite. Era fúria crescendo nele, reconheci.

Para as paredes, ele quase cuspiu, indignado.

Até jogou o caderno com força no sofá.

– Desgraçada!

E aquilo era só o começo.

– Ela banalizou qualquer sentimento nosso. Kevin... Eu senti tanto por ele quando descobri que ela havia levado a relação deles ao extremo, ficou com ele sem ter a mínima consideração. Mal posso imaginar o que não era a confusão na cabeça dele. Estava entregue a essa pessoa... que...

Com brusquidão, Anderson se virou para mim. No caderninho isso não passava de rascunhos sugestivos se bem lembro, ele não tinha a confirmação. Mas pelo que fui trazendo, Anderson enfim constatou antes mesmo de eu terminar de falar.

– Então eles transaram.

– Sim. Naquele ano tava uma onda na escola dos garotos ficando com as meninas, passando noites com elas, às vezes sob efeito do álcool, não sei se houve outras drogas mais. Isso era mais das turmas do terceirão, só que alguns deles faziam parte da equipe de futebol do ensino médio. Denise aproveitou a pilha dos grandes, espalhou por nós.

Isso abriu um leque de informação para o outro, que pegou no ar certa sugestão. Mais uma vez ele me jogou sua conclusão, só que vacilante, por se tratar de algo íntimo. A essa altura, disso eu já não tinha vergonha de comentar.

– Então você e Eric...? Desculpe, eu nã...

– Quase. Levados pela comoção, a gente ia tentar... esse passo. Mas no dia exato, Denise agiu para que não acontecesse. O que foi um alívio, não estávamos preparados, mas... do jeito que ela fez, aquilo não foi de graça. Foi bem pensado.

A fim de concluir mais uma característica de Denise, Anderson infere seu pensamento. A coleção não era bonita, percebia-se. Confirmei mais uma vez.

– Calculista.

– Sim. Como ela estava induzindo o Kevin a se aproximar de mim, coisa que eu notei dele e achei muito estranho, que eram, enfim, investidas, um dia estávamos sozinhos ao laboratório de química. Uns dias antes Denise havia me dito que ele estava distante dela, que tinha medo de que a deixasse, que olhasse para outra garota. Quis conversar com ele sobre isso, sondá-lo um pouco, mas foi ele quem tomara toda a atitude. Por um momento...

Fecho os olhos, amasso os lábios, cubro-me com minha mão por me recordar da foto. Do que ela sugeria. Que não era nada, mas que foi mal observada, tiraram as conclusões erradas. Até mesmo Eric, quem me ensinara a fazer um bom exame de imagens. Ele estava cego àquela época.

Com esse calar-me, no paralelo do real Anderson se exasperou um pouco, preocupado com o que viria. Acabei com sua agonia, não mais me contive.

– O quê? O que aconteceu?

– Fomos os últimos que havíamos ficado no laboratório, por nosso material ter estado espalhado pela mesa, ele era de minha equipe. Conversávamos sobre química enquanto guardávamos. Houve... umas conotações que deixei passar. Quando levantei, ele pediu para eu ficar imóvel. Dei uma surtada básica, pensei que era algum bicho em mim. Kevin me segurou. Pediu que eu fechasse os olhos. Teimosa, perguntei o que era, ele tava me deixando nervosa.

Outra inferência ele propôs; Anderson, porém, conclui errado. Quer dizer, pensou o que todo mundo foi induzido a acreditar, mas aquilo não aconteceu.

– Ele TE beijou?

– Não. Quando enfim conseguiu me fazer fechar os olhos, Kevin retirou algo de meus cílios. Era uns fios de algodão que haviam voado, dispersos no ar, para meus olhos e cabelos e eu nem tinha percebido. Mas ele poderia ter me beijado. Estava tão rente a mim, e me segurava pelo rosto. Não sei realmente se pretendeu e desistiu de última hora. Só que não adiantou muita coisa de qualquer forma.

– Por quê?

– Denise nos espiava. Ela tirou uma foto do momento exato em que Kevin retirava esses fios de algodão de mim. Ao ângulo que se encontrava, foi possível capturar uma imagem, de ele de costas, e eu entregue ao toque dele. Dava a entender que estávamos nos beijando. Essa foto em questão foi postada no dia combinado que iria me encontrar com Eric.

– No dia em que...

Suspiro com mais pesar, engulo o bolo que se forma na garganta. Mesmo contando tudo isso, me forço a não rever as imagens daqueles dias, ou de outros mais em que me atormentei por esses anos. Minha boca se mexia, articulava os acontecimentos apenas, saíam devagar. Sã, eu me esforçava a me manter sã.

Mexo até em uns lenços coloridos pendurados ao cabide no canto daquele quarto. Mas a maciez deles não me aliviava.

– Naquela época, ela usou o perfil da turma numa rede social para espalhar a fofoca. Eric viu. Antes de nosso encontro. Quando chegou lá, me exigiu respostas. Brigamos feio, ele achava que eu estava tendo um caso com o melhor amigo dele. Isso nos partiu de vez, já tínhamos outros problemas, que também tinham dedo de Denise. Não podíamos confiar em quem fosse, as coisas só iam se embaralhando mais.

– E Kevin?

– Ele não negou...

Anderson apenas estala a língua, desapontado pelo próprio primo. Sabíamos que era injusto, mas de injustiça por injustiça, ali era um prato feito e transbordante. Cada reação realmente fora uma defesa. Senão um ataque-defesa para o que fazíamos uns com os outros.

– Isso sem falar de boatos e boatos que corriam pela escola. Um aluno, Érico, não era de nossa turma, mas também foi envolvido. Quer dizer, Denise se envolveu com ele. Não passou de uns encontros casuais, mas isso... gerou muita briga. Também do time de futebol, ele chegou a ser suspenso de uns jogos, por ter feito umas brincadeiras, insinuações e ter pilhado Kevin, que tava no seu limite. Érico tava subindo no conceito de garanhão por Kevin ter se “firmado” com Denise, só que, Kevin, como o mais novo “corno”, eles se agrediram uma vez, no estacionamento da quadra de esportes. Ela gostava de ver o circo pegar fogo. Quanto mais lenha, melhor.

– Ah, maldita...!

Anderson não me assusta quando dá um soco forte à parede. Aquela reação eu vi ainda com Eric quando finalmente nos reservamos um tempo para discutir o que eu havia descoberto. Era totalmente compreensível.

– E não para por aí. Sabe aquela velha história de que... Maria gosta de Pedro que gosta de Gabi que gosta de Vitor que gosta de Fábia que gosta de Carlos e assim por diante? Não sei como, ela sabia de todo mundo. Teve uma página aí, não se você viu o esqueminha, ou se entendeu, era sobre isso. Ela tinha várias ligações. Sem falar dos segredos... Ah, os segredos. Alguns ela soltou como rumor, outros ela entregou de mão beijada. Foi assim que Érico foi expulso.

– Por causa de quê?

– Relações com a professora de treinamento físico.

– Ah, sim, essa eu vi aqui... Judith, não?

Anderson catou o caderno jogado ao sofá, folheou como se buscasse a página específica da informação. Mais comedido aparentava, porém não calmo, ele tentava se controlar também. Seu estado era de tensão e vermelho raivoso.

– Eu não gostava muito da disciplina dela, mas ela... ela me fazia gostar. Também caiu numa armadilha de Denise. Ok que a professora tinha certa queda por Érico, às vezes era fácil de notar, mas sei que não se envolveria com algum aluno. Denise então empurrou Érico para ela, porque Érico tava muito falante e desconfiado sobre alguns planos. Ela fez pra se livrar dele.

– Eu vi isso, só não fiz a ligação.

Novamente passou páginas à minha frente.

– É, eu conectei os pontos por ter os fatos em memória fresca ainda. Fez sentido quando eu li o caderno. Isso sem falar da confusão que foi com Edgar, que era gêmeo do Érico. Até se provar quem era quem, Edgar, que nem era do time, levou umas também. Ele era mais na dele, ao contrário do irmão. E ainda teve Ingrid. Essa sim acho que amou o Kevin. E me marcou como culpada de tudo.

– Ela... o quê? Essa não tava no caderninho.

E provavelmente nem Denise soube também.

Ou não achou importante o bastante para colocar lá.

~;~

Por todos os dias, desde as pequenas bombas que Denise, minha prima, jogava ao nosso meio, havia certo horror. Ela havia entrado no segundo ano do ensino médio, e tão logo que se ambientou, executou suas armações. Isso ainda pela metade do primeiro semestre. Nem nas férias ela descansou, pois só foi voltarmos às aulas, que tudo drasticamente mudou. Acontecia uma coisa atrás da outra. Não havíamos como ligar os pontos, eles aparentemente eram dispersos.

E assim as coisas foram se quebrando, amizades, se desmantelando. Até seminários das disciplinas de escola foram destruídos. Porque constrangíamos uns aos outros. Não, o bullying não era nada perto disso. Denise simplesmente armava o bote para nos pegar quando caíssemos. E esse bote não era pra nos salvar.

Logo virou uma reação em cadeia sem controle. Nem a própria, que começara tudo, podia segurar a força e consequência de seus atos.

– Ingrid era uma das alunas mais reservadas da nossa turma, era daquelas que se dedicavam mesmo ao estudo. Era boa pessoa, tímida demais talvez. Se isolava na maior parte do tempo.

Falo fazendo descaso de todo um material disposto à penteadeira do camarim, onde, numa cadeira do conjunto, estou sentada, praticamente debruçada por cansaço. Nas bordas do espelho enorme e alongado têm umas lâmpadas pequenas e coloridas, enfeites delicados que, pela iluminação forte, começava a incomodar meus olhos. Anderson apenas me acompanhou, arranjou para si uma cadeira ao meu lado. Porém me examinava ainda através do espelho. Se encontra mais calmo.

– Como então ela se envolveu?

– Não sei ao certo. A única coisa que sei é que ela... bom, se ela amava mesmo o Kevin, e me culpava por todo aquele “plano de traição” exposto aos alunos, ela quis me ferrar. Tentou me incriminar numa armação de cola generalizada que rolava pela escola. Só que ela foi pega antes disso.

– E como você...?

Levanto a cabeça do apoio de meus braços, inspiro. Ah, Ingrid, antes fosse se...

– Acho que ela ia esconder as evidências das respostas dos exames nas minhas coisas, pra me denunciar. Só que, ali era a escola, lá acontece de tudo debaixo do nariz das pessoas, então essas intrigas eram apenas uma parte delas. Havia toda uma máfia de notas. Isso todos os alunos sabiam, e dos contatos de como conseguir. Eu que não entrei nessa onda. Denise uma vez até pegou respostas. Quer dizer, eu só soube de uma.

Com um balançar de cabeça, sugestivo, Anderson queria saber apenas sobre esta que foi deixada para trás.

– E aí? Com Ingrid, quer dizer.

– Não sei como também, descobriram. Saíamos da sala para o intervalo quando um coordenador bruscamente invadiu com um fiscal de corredor. Ordenou que Ingrid pegasse sua bolsa e fosse para a direção com eles. Não tinha muitos alunos lá ainda, mas foi um choque geral. E Ingrid tinha muito material para ser pega em flagra, ela sabia, e resistiu. Aí o fiscal apenas abriu a mochila dela. Tava tudo lá.

– O que fizeram com ela?

– Quase foi expulsa. Mas o que marcou mesmo foi, quando o coordenador saiu de sala e o fiscal foi acompanhar ela para a direção, com todas as provas de cola nas mãos, Ingrid olhou diretamente nos meus olhos... Foi... foi um dos olhares mais frios e estranhos que já tinha visto, e era tão atípico dela, que nem entendi, em primeira instância, o que aquilo significava. Ou o que tinha me sussurrado.

– O que sussurrou?

– “Você acabou com o Kevin... Era pra ter sido você”.

Ouvir as palavras de minha boca era ouvi-las saírem ainda da de Ingrid. A sua expressão, o seu ódio, o seu julgamento... De tudo que não esperei, esse foi para mim um dos mais surpreendentes. Quer dizer, não na época, foi mais quando as coisas foram encontrando seus sentidos e esse momento me veio como um clique.

Doce Ingrid. Não soube administrar o próprio plano. Corrompeu-se pelo que lhe fizeram acreditar...

Volto ao espaço real quando Anderson apenas suspira, balançando a cabeça num assentir. Franze a testa quando se dá conta do que ele também teve sua cota em me prejudicar, ainda que sem querer. Bate um ímpeto em si para falarmos sobre isso.

– É, então... ela devia se importar muito com ele. E eu devo ter te aterrorizado tanto só por respirar perto de você. Na primeira vez que mencionei o Kevin...

– Ah, sim. Eu até passei mal, saí de perto, me senti totalmente acuada.

Foi no aniversário de Vinícius, uns meses atrás. Dei uma surtada básica no meio da festa, foi difícil para me esconder. Realmente passei mal. Anderson foi dali pra frente um mau presságio. Por todas as vezes que era mencionado, senão quando nos víamos. Já não me sinto mais mal por sua presença. Mas também não sinto exatamente um bem.

– Me desculpe, Milena, eu... me desculpe. Nunca poderia ter noção disso e... Deus, como você segurou essa barra toda? Eu sei que você é forte, mas... isso, isso é... sério demais!

Impressão minha ou ele surta?

Ele... surta.

Começou calmo, com desculpas, um pouco desnorteado, e aí, acho que pelas coisas que sua cabeça foi encaixando, ele fica descrente de mim. Ele já não tinha ouvido o bastante? Lido o bastante? Qual parte da história não havia compreendido? É claro que eu segurei a barra, e do jeito que dava.

– Apenas tive.

Oras!

Nervoso, ele levanta. Insiste nesse ponto.

– Eric me disse como vocês descobriram, sobre a Denise ter deixado o caderno para trás e tal. Só não entendo como puderam guardar isso tudo para vocês. Por tanto tempo. Milena, essa garota era psicótica!

E pra quê essa revolta? Por eu ter guardado?

O que ele queria? Que eu estampasse o perigo ambulante que era aquela doida em pleno jornal de leitura nacional? Até parece que não sabe do quê ou de quem tá falando.

Me levanto de súbito, peito ele, oras. Vem um exaspero de mim pra jogar algo na sua cara. Me exalto, quase chego a empurrá-lo.

– Eu sei! Eu sei, tá legal? Tô te dizendo, a gente tentou algumas alternativas, nos explicar, mas mais coisas apareciam. Nossas caveiras estavam feitas. Ou era esquecer ou era nos ferrar. Além do mais, você não sabe o que é ter essa vergonha, ok? Eu principalmente, de ser relacionada, consanguínea dela, e de ter sido derrubada e destruída de tal maneira. Você... Você NÃO SABE!

Ele não tinha o direito de me julgar nisso!

Mas tava lá, irrequieto, dando voltas pelo espaço do camarim, extravasando essa raiva, que parece explodir dele. Era quase risível se não fosse trágico. A qualquer momento parecia que poderia pegar uma cadeira e jogar contra a parede de tão colérico que se apresentava. Jogou até os braços ao alto teatralmente.

Isso até vir um lampejo.

– Eu só fico pensando... Meu Deus, meu Deus... Meu Deus, e Murilo?

E o que teria Murilo no meio?

– O que tem ele?

Anderson corre o espaço que nos separa, chega quase rente ao meu rosto, como se estivesse muito certo de suas ideias e opiniões, me segura pelos braços. Foi a vez dele de me jogar algo na cara, enérgico.

– Ele tem a mínima noção. Aquela reação dele de agredir Eric... Céus, ele nem sabia o que tava fazendo! E você deixou, Milena.

Aí virou briga, porque ele tava se deixando levar muito pela raiva.

Não tinha crédito suficiente para falar de mim, menos ainda sobre meu irmão. Fico possessa! Que ele sabia de nós? Agora que teve “acesso” à história com Denise. Ah vá! Eu não ia deixar ele falar daquele jeito comigo. Me desvencilhei, me afastando dele.

– Eu não deixei! Ele que se intrometeu. E isso resultou numa época terrível entre a gente, se não sabe.

– Ouvi Vinícius comentar uma vez sobre isso, só que... Caramba, Milena, ele É seu irmão. Até eu, que mal o conheço... Puta merda, Milena, você nem vê como ele fala de você. É com um extremo carinho. Preocupação. Ele te ama demais.

Como se EU realmente não soubesse! Como seu EU não ligasse!

– Justamente. Já detonei a cabeça dele o bastante.

Anderson para de repente, como se tivesse congelado, ali, no meio do camarim. Isso me faz parar também, assustada pelo que isso possa significar.

– Por ISSO você nunca contou a verdade?

Como ele pode vir e fazer pouco? Isso é muito!

– Não. Quer dizer, também. Não é um motivo apenas, é um conjunto delas. Murilo não merece esse desgosto. Pensei que ele nunca viraria as costas para mim, mas um dia, ele virou. E eu surtei. Eu surtei, Anderson! Porque eu não sou nada sem aquela peste. Eu conquistei muito pra simplesmente jogar tudo para o alto. Não, definitivamente não. Por mim Murilo nunca saberá. Nem que eu carregue isso até o fim da vida. Nem que o peso me jogue no chão, que a corda me fira, que... enfim. Já tentei me abrir, droga, mas simplesmente não consigo. Encarar meu irmão, encarar que esteja ciente disso, dos detalhes mais íntimos e de todos esses horrores que me encontrei... não, NÃO.

Apenas grito. Quando me percebo, estou quase em cima dele, arfando, que posso ver tão de perto sua retina, e sua indignação é quase palpável. Minha vontade era de pegá-la de verdade e amassar, como um nada que era, e enfim pisar. E após uns segundos infinitos de tensão, ele me é tirado. Anderson, quer dizer. É empurrado, afastado bruscamente.

– Hey, SE AFASTA DELA.

Com extremo instinto protetor, Eric avança em Anderson a ponto de prendê-lo à parede contrária da entrada, ele havia surgido de repente. Acordei a tempo de entender que aquilo tava caminhando pro lado errado, então acompanhei pra impedir Eric do que quer que pudesse infringir.

– Não, Eric, ele...

– Ele tava te machucando?

Seu braço cobre a garganta de Anderson, que, imóvel, não tinha chances de reclamar senão arfar, mal respirar. Puxo Eric pela camisa, aquilo era demais, não havia necessidade. Mas ele era bem mais forte, claro, assim argumento de imediato. Tento fazer com que me ouça.

– Não. Só estamos... muito exaltados. Apenas isso... Deixe ele. Eric! Deixe.

– Lena...

Vacila um pouco, mas forço um pouco meu puxão na sua camisa até me acatar. Anderson se desprende da parede às tosses, se recupera. Só que mesmo com a respiração irregular, tanto da raiva quanto desse avanço de Eric sobre ele, não o impede de contra-atacar. Peita Eric, empurra-o, instiga-o em sua ira, decepção e “tomador de dores” que é de seu primo.

– E você, Eric! Que também guardou tudo isso. Kevin foi seu melhor amigo, droga! Você devia ter...

Me vejo sem alternativa senão me meter. Me lanço no meio dos dois até afastá-los. Em suas respectivas raivas, ao menos dava para empurrá-los sem muita resistência, pois se forçavam apenas a carregar suas fúrias, como que as centrando, reunindo-as, para serem fatais quando extravasassem.

Nisso, só vejo Anderson como o intrometido. Eu poderia rir, poderia debochar desse seu comportamento nada a ver, porém, o que me consome mesmo é que ele é o outsider, e jogo mais uma vez na cara dele.

– Não adianta, você não estava lá. Como disse, Denise era psicótica.

Isso o faz desfocar de Eric, quem tava a ponto de partir pra cima de novo, independente de ter que me forçar a sair de seu meio, ele faria em segundo que eu sei, mas dou um jeito de mantê-lo às minhas costas. Quando Anderson me olha diretamente, lanço uma informação que nenhum dos dois poderia ter noção. Pois essa eu enfrentei sozinha.

Declaro com a força de um fôlego, uma arfada.

–...Mas o que ambos não sabem é que ela permanece assim. Por todos esses anos eu não a vi. Até essa minha última viagem.

E apenas me fecho, de imediato. Fecho os olhos, fecho a boca. Fecho quaisquer saídas mais de informação. Mas não de entrada. Pois apenas ouço a união das vozes dos dois quando se surpreendem juntos.

– O QUÊ?

Acho que eles também perdem um pouco do senso de respirar.

Não poderia os culpar por isso.