Firmando-se nas barras do busão, Gui descansa a cabeça, fora do ar. Hoje não demos sorte. Já estamos quase para saltar do transporte e nenhuma cadeira esvaziou pro nosso lado. Ao menos não está mega lotado. Dá pra se mover bem, tem corrido um ventinho pelas janelas e eu não carregava nada pesado.

Assim que o transporte faz uma curva longa num retorno, me seguro firme e tento caminhar até onde a criatura nada animada hoje está (e não é pelas provas da semana). Mais cedo, na empresa, eu fiz uma revisão oral da primeira avaliação, já que ele não estava muito pra falar, e me manter conversadeira era minha maneira de preencher esse silêncio. Mas por termos ficado distantes dentro do ônibus, só pude ficar a observá-lo de longe.

Logo que eu o alcanço, na barra de ferro em frente à saída, já passo um braço para seu ombro. Não nos olhamos nem nada, porém, sei que ele sabe que estou ali por ele, pro que der e vier.

— Tá tão calado hoje.

— Só um pouco pensativo.

— Isso que me preocupa.

Falo com certa graça e de rabo de olho espio que isso lhe quebra o gelo um pouco. O riso dele é quase zero, mas não me importo. É melhor que nada.

Achava que ele permaneceria calado quando de repente veio:

— É só... Me pergunto quando minha vida virou um episódio de Gossip Girl.

Tem tido tantas incidências sobre Gossip Girl por agora – e uma muito suspeita na turma da Dani – que uma menção dessas já me dá um pequeno arrepio na espinha. Tento me convencer que é só coincidência e relevar. Pra isso, mais uma vez me utilizo do humor. Até dou uns tapinhas nas costas de meu amigo pra enfatizar bem.

— Quando a sua vida não é um episódio de GG, né, Gui.

— É, mas ultimamente...

— Hum.

— Hum o quê?

Plantei a curiosidade, tenho que manter o esquema. O que a gente não faz pra distrair os amigos de seus dilemas.

— Só pensando em quem eu seria em GG.

— A Blair, ué.

Ah, garoto bruto!

— Tá dizendo que eu sou maldosa?

— Tô dizendo que você gosta de esquemas.

Uma vez trambiqueira, para sempre trambiqueira. Taí uma fama que não me larga tão cedo. Provoco de volta.

— Ok, Nate Archibald.

— Até o Nate se deu bem na área de comunicação e marketing.

— Não bem até o episódio que eu vi... Ei, quem seria o Chuck Bass?

— O Sávio muito provavelmente.

Acho bom ele pensar no Sávio como parte de nosso grupo, porém, não dá pra não falar sobre essa sua escolha estranha.

— Muito provavelmente?! Acho bom tu voltar esses episódios; melhor, temporadas! Porque assistiu tudo errado!

— Sempre tem muitas garotas ao redor do Sávio. Tô mentindo?

Keila, aliás, não desistira de dar em cima dele. O Sávio agora a ignora por completo. Achei foi bom, pra Keila se tocar, e pra ele também tomar uma atitude. Confiança em si não é o forte dele, masssss... já temos um começo.

— Tá, entendi o ponto. E o Dan Humpfrey?

— O Bruno, com certeza.

— E essas respostas todas na ponta da língua?!

— Pelo tanto que a Flávia me obriga a assistir, já sei até as falas.

— Obriga, sei. E...

— Não, a Flávia não seria a Gossip Girl. No máximo a Jenny. A Dani que seria a Serena. Não que eu vá falar isso pra ela. Ficaria igualzinha ao Murilo.

— Verdade! Mas não era isso o que eu tava pensando. Na verdade, não era nada acho. Só algo rápido que passou.

— Diz aí. Ideias malucas é o que não me falta ultimamente.

— É só algo... bobo.

— Agora que você tem minha atenção, aproveita. Sério, diz.

Ele enfim passa o braço por mim, um pouco mais relaxado.

— Ok. Se você é o Nate... Como você está em relação ao... Chuck? Quer dizer, é só que às vezes a I... Bem, é o namorado dela, né? E você o melhor amigo dela.

Gui abre a boca, mas antes que fale algo, a fecha de novo e suspira. Parece pensar um pouco a respeito enquanto observa o outro lado da avenida passando pelas portas de saída do busão, então responde.

— Eu diria... que eu não sei o que você sabe – ainda. Então eu e o Sávio... Não sei, faz um tempo que eu não penso a respeito disso. Às vezes só me lembro mesmo que ele existe quando a Iara fala ou ele responde presença em classe.

— Você não gosta dele tanto assim?

— Não sei. Acho que... Que ele me deixa inseguro.

— Inseguro? Em relação a quê?

— Eu já vi como a Flávia às vezes olha pra ele. Ou olhava. Me fazia de idiota e fingia que não via. Não sou como o Vini, que, realmente, se entrega nessa. A Dani também já olhou assim pra ele, e agora não quer vê-lo nem pintado de ouro.

Por um segundo desejo perguntar como ele me via em relação ao Sávio, mas não sei se quero ouvir a resposta, então continuo na minha, enquanto Gui ainda desabafa.

— Mas foi só quando senti que estava perdendo de verdade... pra ele... Acho que não é bem essa a expressão. É só que eu estava num mal momento, saca? E então soube do que ele fez. Acho que eu procurei alguém pra culpar. E ele foi um candidato perfeito.

— Não imaginava que você se sentia assim. Mas preciso dizer que a Flávia nunca pensou nele daquele jeito. Nem eu – apesar do que aconteceu. A Dani talvez, mas por outras mágoas. Mas... Ele te incomodou esse tempo todo? Digo, desde que chegou na nossa turma?

— Não. Foi com o tempo mesmo.

Talvez por isso ele “brincava” que não ia deixar o Sávio roubar seu lugar.

Um pouco envergonhado, Gui abaixa a cabeça.

— Eu sei que é uma coisa idiota.

E eu bato meu ombro no seu, mesmo naquele sacolejo todo.

— Hey, não é idiota. É o que você sente.

— Posso dizer que isso fez de mim um idiota?

— Isso você pode dizer sim. Sinto muito, Gui.

— Tudo bem. Acho que eu vi a tempo a merda que vinha fazendo. Eu só não consigo esquecer o que ele fez. Ainda não entendo como você... Como você fala normal com ele. Mas, de novo, não sei o que você sabe. Fico entre te achar uma completa insana e te achar uma pessoa generosa demais. E aí me pergunto se ele estaria se aproveitando disso. E então, se eu estou sendo cego novamente... Eu não sei de mais nada.

Ele suspira de novo, mais cansado. Não gosto de vê-lo assim, mas não há muito o que se fazer. É ele confuso ou é ele desesperado. Não sei o que poderia fazer se descobrisse antes do tempo que Max tá investigando nosso prédio e que tem algo da família dele no meio. Não posso arriscar a operação, lembro.

Por outro lado, tem a história de Sávio. Que eu não sei se posso simplesmente falar, não como divido com Bruno. Tenho que conversar com o Sávio sobre isso. Talvez essa predisposição de Gui faça alguma diferença nesse cenário maluco.

— Eu só posso dizer com toda a certeza que tenho razões fortes pra crer numa segunda chance.

— Você sabe que estou tentando meu melhor, não sabe?

— Sei! E obrigada por tentar.

~;~

Saio da turma mal de olho aberto e apertando a ponte do nariz. Só meu senso de direção mesmo pra me levar pra lanchonete, porque não existe um neurônio ativo depois dessa prova. Precisava me dar bem nessa pra poder dar uma segurada e garantir alguns pontos pra última do semestre, porém, pelas minhas contas, eu estaria em falta. Nem consigo pensar sobre do tanto que minha cabeça está quente depois de queimar todos os neurônios. Professor Sanches pesou a mão nessa prova, hein!

— Me espera, Lena!

Paro e aperto os olhos, esperando Flávia me alcançar no corredor. O Gui havia descido não fazia uns 5 minutos. Ainda tinha uns 80% da turma em classe, em desespero porque faltava uns 10 minutos pro fim do horário. Eu ainda estaria lá, mas resolvi abandonar o barco. Já tinha dado o meu máximo.

Pelo meio século que Flá demora, sei que preciso ir ao banheiro antes, pra lavar meu rosto. Massagear meu rosto. E estapear meu rosto pra disfarçar essa dor de cabeça. Ok, nada sensato. Seriam duas coisas doendo.

Na verdade, três. Porque foram três folhas, frente e costa, de prova, com mil linhas pra justificar resposta e meus dedos estão doídos. Mas como são muitos dedos, já perdi a conta.

— Alguém me explica essa prova, pelo amor de Deus!

— Só de pensar em explicar, meu cérebro já entra em fuso. Se é que dá pra ficar pior... Caraca, nunca pensaria que o Sanches aprontaria uma dessas. Tipo, rígido ele é, palhaço ele também é, mas cruel desse jeito... Eu tô de cara.

Olho pra minha amiga e ela tá num estado muito semelhante ao meu.

— Também nunca esperaria DEZ questões de MÚLTIPLA-ESCOLHA pedindo JUSTIFICATIVA pra cada marcação. Onde já se viu isso?

Ao fim do corredor vazio, encontramos Gui no bebedouro. Com a mesma cara, mal abrindo um olho. Minha amiga apressa o passo ao encontro dele e eu sigo pro banheiro. Na pia, consigo ouvir os dois conversando lá fora.

— O que tu colocou na quinta?

— Não tenho a menor ideia. E aquela terceira, Jesus! Que raio de pergunta era aquela? E cinco tabelas pra cruzar informações!

Esse comentário do Gui me representa todinha, penso enquanto esfrego as têmporas com a mão molhada. A água alivia um pouco a sensação e quase posso me desfazer aqui mesmo. Ainda bem que o professor Paulo resolveu, mesmo de última hora, adiar a avaliação dele, porque eu não... ninguém tem condições depois de todos esses tiros. No momento eu só quero existir. E comer alguma coisa.

Preciso ir pra lanchonete antes que encha, mas coragem cadê?

Empurrada, sigo com meus amigos pela rampa. Encontro Sávio no meio do caminho, parado meio desnorteado enquanto olha algo no celular. Lembro que tenho que conversar com ele, em uma hora mais oportuna. Mas preciso comer primeiro, recuperar as energias. Gastei todas as do lanche anterior nessa prova infernal.

Estou na verdade rezando pro professor Paulo cancelar logo o horário dele.

Por uma sorte divina, consigo ser atendida logo, porém, mal dou uma mordida no meu sanduíche, o Bruno aparece, meio nervoso. Isso abre melhor o olho do Gui, assim como o de Flá.

— Lena, você pode ir lá pra fora por um minuto? Vocês também.

Mas o caso dos nossos cérebros estava tão sério que eu, Flá e Gui respondemos uníssono:

— Quê?

— Lá fora, no estacionamento. Estacionamento da frente.

— Que teve?

— Tô reunindo a galera.

— Agora?

— É importante. Por favor.

Saio andando pelo pátio junto com o povo que tava se mobilizando pra ir lá pra fora. Flá e Gui acompanham, meio desconfiados, meio perdidos. Disfarço comendo mais do meu sanduíche – até porque cada mordida melhorava meu estado – e equilibro meu suco na hora de passar na catraca da portaria. Descemos a rampa de entrada e encontramos mais alunos na calçada, de canto com o jardim.

Não demora muito pra que eu me dê conta do que tá realmente acontecendo e que não tenho como interromper. Minha amiga percebe minha postura.

— O que tá acontecendo? O que você sabe?

— Eu? É só que... Bem, o Bruno...

E mais uma vez na vida a Dani surge interrompendo a conversa e me salvando.

— Gente, que reunião é essa? Que babado é esse? Ai, também quero sorvete!

Flá oferece um pouco do potinho de sunday que ela comprou pós-prova-massacrante e isso distrai um pouco, apesar do burburinho da galera ali. Logo mais o Bruno volta, acanhado, talvez se dando conta da quantidade de gente ali, e que não dava mais pra dar pra trás. Tento passar força pra ele só pelo olhar e ele assente.

A galera já tava bem inquieta.

William, da minha turma, fala por muitos quando declara:

— Enfim, o que tamo fazendo aqui? Porque eu acabei de sair de um provão e sinceramente não tô batendo bem das ideias.

Bruno enfia as mãos nos bolsos da calça, mais acanhado ainda. Ele respira fundo, observa aquela roda do povo, olha pro chão, olha pro trânsito ali perto e começa. Tira as mãos dos bolsos e as usa para guiar a atenção de todos. Logo se notava que estava bem nervoso, pois não parava quieto um momento.

— Obrigado por todos virem, eu que os chamei. Eu quero falar uma... Melhor, quero me retratar por uma coisa que fiz uns meses atrás. No EREAD. Quero que saibam por mim. E espero que possam me ouvir primeiro. Trouxe vocês aqui fora caso queiram me bater – e eu não vou revidar – e como não quero ferrar vocês com Fabiano, achei melhor vir pr...

— O que você fez?

Marcinha também fala por muitos.

Bruno suspira. Ainda bem que deu tempo de terminar meu lanche, porque não daria pra comer depois de tanta expectativa como essa.

— Na viagem, acho que todo mundo lembra que saímos uma noite, pra uma boate. Eu bebi e... Bem, isso não justifica. Eu fiz uma besteira colossal. Eu... Forcei a barra com a Dani na pista.

Ele acena para a Dani com a cabeça, que tava ali pelo meio do grupo. Assistimos o espanto de todos, com bocas abertas, sobrancelhas levantadas, paralisados. Quietos. Dani parece envergonhada com todos aqueles olhares, pois não encara nada nem ninguém além do chão.

— Eu já tava a fim dela, mas por outras questões, não queria ceder, nem assumir. Mas eu sabia que ela era a fim de mim. E forcei a barra pra beijá-la. Foi errado e eu me arrependi na mesma hora. E pior que quanto mais eu tentava consertar, mais o negócio parecia feio pro meu lado. Ela se afastou de mim e eu mereci isso.

Gui se move, sai do meu lado e se aproxima de Dani. Assim como Flá, ele passa um braço por ela e tá todo mundo sério. Mais uma vez Bruno respira fundo e isso parece lhe dar mais confiança pra terminar. Ele já não olha para o mundo lá fora, mas para as pessoas ali.

— Ainda na viagem a gente conversou e se acertou. Mas pra mim... Mesmo a história não tendo vazado... Eu... Eu não me sinto bem por ter feito isso. Por ter invadido o espaço dela, ter tentado me aproveitar e... Eu ainda me sinto mal com isso, de verdade. E não busco tranquilidade por contar pra vocês, eu só quero que saibam que me arrependi mesmo e desde então tenho tentado ser um cara melhor.

São tantos semblantes – e num local parcialmente iluminado – que não sei dizer bem como todos estão levando a notícia. Até porque fico entre quem mais importa: Bruno, Dani, Gui, Flá e... Sávio. Ele está do outro lado. Fisicamente apenas, pois, mesmo ouvindo tudo, o seu rosto mostra que ele está fora dali.

— E quando digo que estou tentando ser um cara melhor, quero dizer que tentando mesmo, me mexendo, pesquisando até. A Lorena, que é da minha classe, tem uma pesquisa sobre mais ou menos essa linha... de assédio...

Assédio.

Essa palavrinha paira ao ar com grande peso.

Até então acho que ele não tinha falado alto o bastante.

— ... só que para ambiente de trabalho. E, lendo, cara, aprendi bastante. Estou disposto a aprender mais. E, realmente, não quero esse cara babaca que fui. Eu só queria mesmo que vocês soubessem isso.

Assim que Bruno finaliza, que fica um ou dois segundos da galera digerindo, quieta, Dani se sai do campo de força de Gui e Flá com brusquidão, rompe a roda e sai correndo. Gui ainda grita por ela, que nem vira, nem para, só continua a correr, de volta para o prédio. Ele termina a seguindo, junto com Yuri, que eu nem tinha visto até então. Já Flá fica pelo meio do caminho, sem saber se vai atrás, se fica, o que faz. Por instinto, também quis correr, mas não sei se ela estaria aberta para me aceitar. Assim, fico.

— Porra, eu realmente achei que você era dos caras legais.

Rayssa, da turma dele, também sai indignada.

— Cara, só não te bato bem aqui porque não consigo. Mas que tu merecia umas na tua fuça, tu merecia.

Cardoso sai trombando em outras pessoas que também se dispersavam com novos burburinhos. Flá se junta a mim novamente e, assistindo os alunos irem embora, tão chocada, ela termina por dizer:

— Então esse era o segredo do Bruno?

— Bem, a gente já sabia, né? Mas nos últimos dias ele tava pensando em abrir o jogo e... É, esse foi o segredo.

Só sobra eu, Flá, Sávio, Acácio e Bruno na calçada. Eles três conversavam algo numa rodinha só deles e eu e Flá ficamos a observar, novamente sem saber se vamos atrás de Dani, se ficamos. Não é como se tivéssemos muito tempo mesmo.

— Por que ele fez isso? Por que agora? Eu sei que você sabe, Lena.

— É só que... Ele tem assistido o Sávio ser atacado pela Dani há tempos e isso apenas pesou pra ele, sabe? No outro dia a gente tava conversando sobre isso, porque ela anda extrapolando com o Sávio, e até o Vini se ofereceu pra conversar com ela, mas não se trata mais de ir conversar, porque a Dani... ela não ouve assim. A gente acha que ela quer que ele admita. Que o Sávio admita.

— E o Bruno admitiu.

— Sim. E ele não fez isso só pra chamar atenção da Dani, mas também porque quer se redimir. Ele também fez errado.

Ainda observando tudo ali, Flá, extremamente calma, faz um comentário inesperado:

— E o Sávio, ele vai se redimir?

E, cruzando os braços, também calma, eu respondo com algo mais inesperado:

— Ele já se redimiu. Só que ninguém soube ou descobriu ainda.

Flávia balança a cabeça, não gostando de ouvir pedaços de uma história.

— Pelo menos dessa vez, Lena, não fala em código comigo.

Minha amiga me desarma de uma maneira que... que nesse momento, pra mim, não havia dono da história. Só uma história triste que permanece sendo ricocheteada.

— O Sávio protegeu todos nós, Flá. Do André. E ele continua protegendo.

Flávia se volta de imediato pra mim, estarrecida e confusa ao mesmo tempo que tenta disfarçar, observando de rabo de olho os meninos ali perto, na calçada. Acho que ela não esperava que fosse mandar tão na lata assim. Bem, nem eu, né. Saiu.

— LENA do céu! O qu...? Como...?

Firmando mais meus braços cruzados ao corpo, mexo os ombros pra cima em claro sinal de “é o que é”.

— Quando eu digo que há algo bem maior que nós, não é apenas código. É a verdade. E eu não posso dizer mais que isso.

— Mas Len...!

E outra vez Dani, mesmo tão distante, interrompe um momento complicado. Ouvimos Gui nos chamar dali perto:

— Gente, rápido! Ela se trancou no banheiro e a gente tá impossibilitado de entrar.

~;~

— Isso seria engraçado.

Suspiro imaginando um futuro possível. Mas Murilo, do outro lado, não saca de primeira. Ele não é um conspirador nato.

— Engraçado como?

— Ah, vocês trabalhando juntos. Quer dizer, no mesmo local. Tipo eu com o Gui, e Iara. Trio “parada dura”.

Havia conversado com Aline no fim de semana (por pouco ela não foi no almoço de domingo) e ela disse que havia vagas de estágio na área administrativa. Dei a dica pra Flá, que tava atrás de uma opção. Aquela da escola não colou. Como mal falei com meu mano durante a maratona de estudos, estou contando essa novidade. Depois de um dia tão tenso, é meu descanso.

— Tem o Filipe também na mesma empresa.

— Ah, o Filipe é outro nível.

Meu irmão ri.

— Seria bom mesmo se a Flávia conseguisse a vaga. Estou torcendo por ela. Agora me diz o motivo de você estar tão... “sei lá”. Saudade minha já não é.

Rio, besta, tal qual ele uns segundinhos antes.

— Ah, é só cansaço. Professor Sanches detonou meu cérebro hoje. Não sei ainda como tô conseguindo conversar. Detonou meus dedinhos também. Foram três páginas, Mu. Frente e costa. De questões dissertativas. Por um azar de vida, a prova do professor Paulo não foi cancelada, mas pelo menos essa era curta e tava até fácil. Também não sei como eu respondi.

— Talvez porque você tenha estudado?

— É, talvez. Mas me surpreendi também porque... teve uma confusão com a galera no intervalo. Não foi muito bonito, mano. Até o diretor teve que se meter no meio.

— O que teve? Briga?

— Não direta... O Bruno falou. Sobre aquilo. Sobre o que ele fez na viagem. Daí a Dani saiu correndo logo depois, se trancou no banheiro da entrada, ficou aquele amontoado de gente sem saber o que tava acontecendo... E ainda tinha o Gui e o Yuri em cima, quase invadindo o banheiro feminino... Tenso. E aí, quando cheguei lá, o diretor já tava escoltando a Dani pra sala dele, dispersando o povo. Não teve porrada, pelo menos.

— E como tá a Dani?

— Nem sei. Tipo, tu sabe como a gente tá e, nesse impasse, não conversei com ela depois. Até porque logo tive que voltar pra sala e no último horário foi a segunda prova. Eu não sei nem como ela foi pra casa. Só sei do Bruno mesmo.

— E ele?

— Tá... aguentando. Tu sabe como aquele lance da Dani e Sávio pesou pra ele. Não sei quanto tempo eu também aguento essa situação.

Nem falo que soltei informações pra Flávia, porque não tenho forças pra sermão neste momento.

— E você-sabe-quem perguntou sobre você-sabe-o-quê. O que eu acho que não tem nada a ver, massss... Ele sempre tá lá.

Max. Max apareceu logo depois que Fabiano saiu com Dani para a diretoria, ficando de canto do burburinho, de praxe para ouvir as conversas. Eu não tinha o percebido até que a professora Silvana dispersou os alunos de novo e disse que ia subir pra classe (minha classe). Fiz que ia para a sala, e deixei a galera e meus amigos subirem, e fiquei de última para dar uma palavrinha com Max. Pra, sabe, explicar que não era nada a ver com a operação, ainda que eu não soubesse o que era de fato a operação – e ousei perguntar, inclusive. Mais uma vez ele pareceu satisfeito só por eu ter ido conversar com ele, mesmo que não pudesse me dizer nada em troca.

— De alguma forma muito estranha, isso me deixa menos preocupado. Max.

— Um protetor, quem diria. Você tem que voltar logo e recobrar seu posto.

— Não, não devo. Quer dizer, não por isso... Ser esse protetor insano. Vou te deixar dormir, mana. Já tá falando coisa com coisa.

— Isso é intriga da oposição e tu sabe!

Tô me derramando de amor pela criatura e o que ela faz? Quer encerrar conversa. E ri ao trazer o papo do meu sono.

— Mana, vai dormir. Tá tarde.

— E tu, vai dormir?

— Vou só terminar de ajudar papai organizar uns documentos e vou, prometo. Beijo, Lena.

— Beijo.

Sinto meu corpo desligar mais assim que finalizo a ligação e meu braço cai no colchão. Na verdade, me fundo ao colchão improvisado. É confortável, mas não é minha casa. Já nem pergunto pro Murilo quando volta, porque a falta de resposta é tão incômoda. Pra mim e pra ele.

Mas pros pais da Flávia a gente disse mais ou menos um mês, só pra não ficar assim, jogada, na casa dos outros.

Quando estou em luta para alcançar meu lençol, que ficou na cama da Flá, e não consigo por motivos de não tenho mais forças, minha amiga retorna ao quarto. Só sei mesmo porque ao abrir a porta, a luz da casa adentrou o ambiente escuro.

— Te acordei?

— Não, acabei de desligar. Da ligação e da vida. Pega meu lençol, por favorzinho?

Em dois segundos o lençol cai sobre mim e de pronto gasto minhas últimas energias pra abri-lo e me embrulhar. Estava uma noite um pouco fria. Me enrolo e logo sou sugada pelo buraco negro do sono.

— Lena?

— Hum.

— Qual é o real rolo do Sávio com o André?