Cada vez que eu encarava meu mano neste dia, me vinha um pensamento: tá acabando. Mas eu tentava não pensar sobre isso, só me distrair, até porque não era pra chamar muita atenção dos outros. Claro que não ia estragar toda aquela vibe família e clima ameno que se sucedeu na tarde na casa do vô-sogro – eu estava ali para aproveitar, para ser testemunha do que era até então um sonho. O resto era resto.

Esse resto me encheu tão logo saí da casa de seu Júlio; a Murilo também. Foi só a gente entrar no carro que o ar ficara pesado de novo. Já tínhamos um plano de como faríamos aquilo, mas eu... eu arquitetava um adicional enquanto voltávamos pra casa. Ao som de Nickelback, Murilo tentava a todo custo se dispersar, eu via. Só que parece que nem as músicas estavam a seu favor, pois logo ele começou a passar uma sequência quase inteira, e aí vi, de verdade, o quão perturbado ele estava novamente, até que ele desistiu e desligou o som do carro.

Sua inquietação era minha inquietação e reforçava uma vozinha na minha cabeça. Ela dizia: ligue! Ao sair da casa de seu Júlio, que me despedia de Vini (ele iria ficar para conversar mais com o Filipe e Djane), pedi que me ligasse dali a quinze minutos. Tão sereno e leve quanto estava, Vini achou que era algum tipo de brincadeira, porém, tão logo reafirmei meu pedido, ele franziu a testa, disse tudo bem e eu não quis falar nada mais, ainda indecisa sobre abrir a boca ou não. Mas me dei esse prazo, que era o tempo de chegar em casa.

Segurava o meu celular na mão como se eu mesma fosse ligar – e pra falar a verdade, estava tentada mesmo a ser quem ligasse. Ligaria para Aline provavelmente. Murilo que me perdoasse, eu não iria seguir com aquilo sozinha. Era injusto de tantas maneiras que não tenho dedos suficientes para contar. Caramba, cogitava até ligar pro meu chefe, pra avisar que não iria no dia seguinte. Mas eu teria que ir pra empresa, não importando minhas condições, pois já vou faltar na sexta-feira, de aviso prévio.

Por uma benção divina, as avenidas hoje estavam lisas, sem quase carros ou sinais nos parando. Isso permitia meu mano relaxar um pouquinho, eu via, embora não corresse pelas pistas. Já quando ele virou para nossa rua, sinto-o mais tenso de novo, estacionando o carro na porta. Antes que desçamos, quebro o silêncio.

— Quer conversar?

— Se não se importar... não. Preciso de um tempo. Acho que vou tomar um banho primeiro e...

— Tá acabando, mano, tá acabando.

Ele assente e saímos do carro. Ao entrar em casa, observo quão desanimado meu irmão anda pela sala para o corredor e, não tem jeito, imagino que dali um a tempinho estaríamos sentados para a conversa mais decisiva de nossas vidas. Onde estaríamos vulneráveis e teríamos de contar os nossos segredos mais dolorosos. Passei tanto tempo nessas últimas horas zelando pelo bom estado de meu irmão que nem me toquei de mim.

Para falar a verdade, me sentia pronta para isso. Mas não nego que dava um gosto amargo na boca confessar a brutalidade psicológica que passamos nas mãos daquela... daquela... perversa. Denise só podia não ser humana mesmo. Antes que pudesse me deter a essa psicopata antes do tempo, ouço meu celular tocando baixinho. É um alívio pessoal.

Não atendo de pronto, primeiro vou dar uma checada rápida no meu irmão. Espio pela brecha da porta entre aberta que ele está deitado de qualquer jeito na sua cama, virado para o outro lado. É melhor que descanse mesmo, me alivio de novo. E retorno para a sala, mais tranquila para atender o celular que tocava e mais determinada quanto ao plano que vinha desde a casa de seu Júlio desenhando em minha cabeça. Eu que não me perdoaria se não fizesse isso por nós dois.

Pego o aparelho na bolsa e me dirijo para o terraço de casa, por segurança.

— Alô?

— Oi, amor. Você pediu pra ligar, lembra?

— Sim. É porque tenho algo pra te dizer... que não poderia ser dito aí.

— Que você não vai se vingar de mim pelo glacê só pro Murilo não ficar com inveja? Pode crer que não digo nada.

Quase me fecho de novo só de ouvir tamanha animação que vou abafar quando contar-lhe o que tenho de contar. Por isso mesmo dou uma dica que eu sei que o faria ter cautela:

— Não estou no viva-voz não, né?

— Não. Por quê?

— Você está perto de alguém? Por que se sim, queria pedir para se afastar rapidinho.

— Não, estávamos todos no quarto de vovô e aí vim deixar a tigela dele na cozinha quando lembrei de ligar. Tá acontecendo alguma coisa?

— Não exatamente, mas logo vai.

— Lena...

— Eu juro que não queria atrapalhar o seu dia, Vini, mas por forças maiores, preciso que você venha pra cá. Estamos em casa já.

— Tudo bem, posso sair aqui. Mas me diz, que tipo de forças maiores?

— O tipo que envolve uma conversa séria com meus pais sobre você-sabe-o-quê e você-sabe-quem. Temos apenas um tempo, o Murilo logo vai...

— Por isso que ele tava com aquela cara hoje? Imaginei que era algo com a Aline, que ele tinha deixado por alto. Foi por isso que... o glacê... enfim, poderia ter me dito antes, Mi. Eu já estaria aí com vocês.

— Eu sei. Mas é que o Murilo... ele não... Ele não queria contar. Eu que tô agindo sem ele saber. E que se dane quando souber, não me arrependerei. Ainda tenho que ligar para a Aline.

— Quer que eu ligue?

— Não, deixa comigo... além do mais, se você vai dirigir, é melhor não.

— Não acredito que seu irmão quis nos passar pra trás com algo tão sério.

Isso porque você só sabe metade.

- Não acredito é que ele se achou suficiente para seguir com isso sozinho.

— Sozinho ele não estará. Vocês não estarão. Chego aí em minutos.

~;~

Depois de trocar de roupa, fico um tempo sentada na beira de minha cama. Acessando uma rede social pelo meu celular, vejo ainda mil e umas mensagens do maior show-aniversário que tivemos nessa semana. Observo com calma algumas fotos pra me distrair do que me espera e por uns minutinhos me permito ser engolida por esse mar de pessoas felizes. Até ouvir um toc, toc na minha porta.

— Posso entrar?

— Claro.

Murilo aparenta estar bem melhor após seu banho, um tantinho mais renovado. Sem jeito, ele se senta ao meu lado e espia a tela de meu celular. Ao ver Iara e Flávia na mesma foto, seu semblante cansado ameniza. E se surpreende quando eu aperto o botão ao lado, do aparelho, para que apareça o descanso de tela.

— Você tá chateada comigo.

Não foi uma pergunta. No entanto, não lhe digo nada, não de imediato. Apenas coloco meu celular na cômoda ao meu lado. É quando me viro na cama, para lhe responder que não, que Murilo toma iniciativa de novo, dessa vez, cabisbaixo, passando a mão nos fios recém molhados e até apertando os olhos quando se perde no próprio argumento.

— Desculpe-me, mana. Eu sei que andei um pouco distante nas últimas horas e que você não concorda com minha viagem... Não quero me leve a mal, mas é que... Olha...

Branda, eu o interrompo.

— Acho que sei o que estava fazendo. Se preparando para o baque, né?

Murilo meneia a cabeça, sem concordar, nem descordar. Ainda de vistas baixas, ele só olha para o chão e mexe seu chinelo com o pé.

— Mais ou menos. Quando eu penso sobre o que a gente já viveu... Não quero ter que voltar a me sentir um droga nem por 10%. Mas nessa ânsia toda, foi impossível não bater porcentagens maiores... e te chatear no processo.

Inquieto, bufa. Sob minhas pestanas, não perco um segundo de seu jeito e noto que está constrangido. Pelo que sente e o que me faz sentir em consequência. Mas preciso colocar uma coisa às claras primeiro e reúno todas minhas forças para que isso não soe de má maneira.

— Não tô chateada. Sério. Tô só, sei lá, tentando ver onde ou quando você resolveu me deixar pra trás.

De imediato ele levanta as vistas para negar.

— Não tô te deixando pra trás. Não sei bem quanto tempo posso ficar fora, mas...

Interrompo-o de novo.

— Eu não tô falando da viagem, Mu. Você nem me deixou entrar no quarto ontem de noite. Você quis almoçar sozinho hoje. E, ok, aceito isso, porque sei o que é querer ficar sozinha e também sei que, bem, hoje provo do meu veneno, pois eu fazia o mesmo com você no passado, só que...

Pego na mão dele e aperto, inspiro e expiro, para colher o melhor que puder.

— Por que se fechar tanto para os outros? Para o Vini e Aline? Ele é seu amigo e ela é sua namorada. Já fez tanto por eles. Posso apostar que se fizessem o mesmo com você, você ficaria chateado de ser deixado de lado assim... Eu não entendo esta sua postura, é isso.

Murilo bem aceita que fiquemos com as mãos juntas, porém, ele desce as vistas de novo, mais uma vez constrangido. Era algo difícil, vê-lo, assim, tão caído.

— Acho que só não queria que me vissem dessa maneira de novo.

Ao ouvir sua resposta, levo uma de minhas mãos a sua fronte e faço um carinho de leve, desentendida de sua resposta.

— Dessa maneira como?

— Dessa maneira... Prestes a fazer uma loucura. Como uma fera que precisa ser domada, controlada... cercada. Uma atração que não pode fugir dos olhos de quem vigia. Queria só um tempo para pensar mesmo, sem ter que depender de ninguém.

Quero abraçar esse menino e não mais soltá-lo até lhe curar suas inseguranças. Mas prefiro não me precipitar... Vai que Murilo entende que quero eu domá-lo? Controlá-lo e cercá-lo, como acaba de falar? Só não consigo evitar de soltar um belo de um:

Como você pode me dizer isso, criatura?

Meu mano ri um riso sem ânimo.

— Porque sou essa “criatura” que... que tem uma péssima reputação.

Não, apenas não.

Solto-me dele para agarrar seu rosto e vidrá-lo em mim.

— Você não é a mesma criatura de um ano atrás, mano. Nem é a criatura de meros meses atrás. Acho que não venho te dando o crédito que merece... porque vejo um novo Murilo a cada dia, íntegro, amigo, sagaz, meio tapado, mas o meu tapado, saca? Essa é sua essência, sua reputação. E nenhum problema no mundo vai te estragar isso. Não enquanto estivermos juntos. Não existe Murilo sem Milena, nem Milena sem Murilo, lembra?

Mas Murilo ainda tem suas amarras, pesadas amarras. Eu continuo a segurar-lhe o rosto com firmeza e se preciso, pego uma furadeira para enfiar isso em seu coração. Torço para que não seja necessário tanto.

— Você faz parecer tão simples, mana.

— E se for simples assim? De abraçar essa verdade? O que me diz?

— Não sei bem o que dizer.

E aí Murilo se desprende de minhas mãos e levanta. Ao caminhar pelo espaço de meu quarto, ele suga um bom ar e... quando vai soltá-lo, me encontra de pé, atrás dele, determinada a plantar essa boa semente em seu peito.

— Me diz que vai experimentar... que vai pensar.

E então parto para o ataque assim que ele se vira, soco-o no peitoral, bem do lado esquerdo. Meu soco não é nada perto dele, porém, o que vale é a intenção. Sua camisa franze nas duas, três vezes que o soco, reanimando-o a todo custo.

— Você não está fazendo exercícios à toa, nem seus progressos são mínimos. Caramba, Mu, acorda. Não deixa essa vaca filha da mãe ganhar de ti. A gente errou tentando acertar e a gente já se perdoou, né? É sério, acorda! Só temos que passar mais esse muro pra seguirmos em frente de vez. Esse pode ser nosso desafio final.

No quarto golpe, ele me segura minha mão e a abaixa. Respira fundo e assisto como sua face vai mudando aos pouquinhos. Algo engrena ali dentro de sua cabeça e ele passa a assentir, provavelmente para coisas que só ali passavam e que estavam se mexendo por essa dura que eu lhe dava.

Quase posso soltar fogos quando ele enfim declara:

— Acho que você tem razão.

Não deixo de comemorar, levantando os braços até. Nada que ele dê muita importância por eu me gabar, sua atenção agora é outra.

— É claro que tenho!

— Vai ser uma das coisas mais difíceis que já fizemos...

Assinto, controlando-me a animação, olho no olho.

— E faremos juntos. Mesmo quando tivermos de ficar separados.

— Agora você fala da viagem? Mudou de ideia?

Titubeio um pouco e cruzo os braços, de repente sem jeito.

— Acho que sim. Digo, sobre mudar de ideia. Ainda não gosto, mas respeito. Entendo que você precise disso para te ajudar a superar.

Sem hesitar, lá vai ele me fazer pequenininha de novo. Murilo me abraça e sinto-me muito esperançosa. Sinto-o mais relaxado também. Ele estando bem é o que para mim mais importava neste instante.

Ainda sob sua montanha de peso, ele me fala, baixinho:

— Obrigado por compreender... e me apoiar. Era tudo o que precisava neste momento.

— De nada. Disponha dessa mana que só quer te ver forte e realizado. Tamo crescendo, cara.

O corpo dele no meu repercute o sorriso que lhe explode a alma. Seria mínimo se eu visse de fora, entretanto, ali, era diferente. Eu sei que era diferente. Com cuidado, me saio dessa criatura e pergunto, só pra ter certeza:

— É chegada a hora, não? Está mais confiante?

— Vamos acabar logo com isso.

Lá estava o sorriso contido do meu menino. Ele assente, bem mais seguro e decidido. Ao fim dessa batalha, acho que posso dizer que temos certeza os dois de que tudo mais iria no embalo, e resolutos como nos encontramos é o determinante para chegar ao topo e dizer que vencemos. Que venham as próximas, estamos prontos.

~;~

— Vai dar tudo certo.

Vinícius me segura com ambas mãos ao meu rosto e me passa confiança de novo tão logo sabe que deve sair. Era chegada a hora.

Ok, agora sim estou nervosa. Nem tão pilhada quanto Murilo, mas nervosa, amainando os sintomas como podia. O Murilo era outro, só que ele parecia enjoado e mal conseguia ficar sentado. Não me admiraria se depois a sala ficasse com uma trilha aberta pelos seus pés. Já até havíamos nos topado em vários cantos da casa e foi uma coisa boa ele ter entendido que liguei para Vini e Aline.

Por um acaso de muita sorte na terra, a Aline estava aqui desde o começo. Quer dizer, ela estava no bairro desde sempre! Quando lhe liguei, ela me deu Oi e acenou da casa da vizinha da frente. Quase caí pra trás. Conversamos rapidamente e lhe dei a chave, para que esperasse o Vinícius chegar. Enquanto isso, eu dava conta do meu irmão. Foi só depois de uma conversa séria, prévia, mas séria, que meu mano se apresentava mais ok. Ao sairmos de meu quarto, logo encontramos os dois, Vini e Aline, na sala, à nossa espera.

Murilo fez que nem acreditava, porém, agradeceu a gentileza. Cumprimentou o amigo e Aline tratou de acalmar mais seus ânimos. Com eles ali, eu me sentia mil vezes mais segura, embora soubesse que eles não iriam ficar por muito tempo. Pelo menos não no recinto durante a ligação. Vini deu a ideia de ficar no quarto, esperando. Bem sabíamos que ele não sossegaria até o fim daquilo e Aline o mesmo; eles ficariam fazendo companhia um ao outro.

Todo esforço nesses últimos minutos era algo que eu muito agradecia, já que não estávamos muito coerentes e a hora parecia até não andar. Pelo menos não a nosso favor. Marcamos de ligar às 16h. Faltavam 7 minutos.

Papai e vovô sabiam que o teor dessa conversa seria séria, vez que, após ter me comunicado no dia anterior, meu irmão tornou a ligar para nosso pai e propôs uma ligação para hoje. Disse que ele precisava ter conhecimento de certa situação antes mesmo de viajar e que poderia chamar nosso avô, mas teria que esconder de mamãe e de vovó por razões óbvias. Papai quis que ele antecipasse algo, porém Murilo permaneceu firme e falou que era melhor saber só na hora. Papai daria alguma desculpa de ir para a loja e levaria vovô e então faríamos a ligação.

O clima ali era de como se estivéssemos indo para a guerra, com despedidas longas e um pouco sofridas. Como se fôssemos mudar de alguma maneira o rumo de nossas vidas a partir de uma conversa. O que, provavelmente, iríamos mesmo.

Em meu íntimo estava tudo certo, eu estava de bem com isso. Era dura a ideia de meu pai ter noção do que foi aquele meu passado e como isso tanto interferiu em meu crescimento e nas minhas relações com o Murilo. Eram tantas verdades de repente.

Firme, eu dizia a mim mesma que o outro lado da margem do rio estava perto e ele era verde e vivo. Mal esperava chegar lá.

— Ok. Cuida da Aline.

Vinícius assente, observando de canto de olho que Aline fazia o mesmo com meu irmão. Eu tento amenizar o clima mais uma vez.

— Leve água. Biscoitos. Que seja. Distraia-se, Vini.

— Impossível me distrair desse jeito.

— Tente. Por mim. Comece não ouvindo CPM 22, música punk não dá certo com ansiosos.

Com um “te amo”, ele me dá um beijo longo e cuidadoso, me segura delicado para si e quando é a hora final, força-se a ir para o quarto de hóspedes com a Aline. Assim que me vi a sós naquele silêncio, avistei como as coisas iam mudar dali uns minutos. Cato o caderninho da Hello Kitty da mesinha e Murilo logo chega à sala com copos e um litro de água para nos manter hidratados. Traz também alguns lenços de papel e seu celular. Era hora de discar.

— Não importa o que aconteça, eu te amo e tô orgulhosa, mano.

— Pelo quê?

— Por tudo... Por não ter desistido de mim, por ter lutado consigo mesmo e por esse irmãozão que eu tanto necessito. Por... tudo, tudo mesmo.

Murilo me segura nas mãos e senta ao meu lado, já um pouco emocionado antes da ligação. Eu também me sentia assim, forte e fraca ao mesmo tempo, ansiosa e decidida.

— Obrigado pelo lembrete. Vai ser pesado ouvir de papai, mas tendo você aqui... eu não poderia querer mais.