Caio desceu as escadas de dois em dois degraus e foi direto para a cozinha onde encontrou seus pais tomando o café da manhã. O ambiente cheirava a torrada e café.

— Acordou cedo filho – disse Olga sorrindo. Ela usava uma calça preta nova e uma blusa de algodão sem estampa. Seus cabelos estavam presos no habitual coque no centro da cabeça. Ela parecia cansada, mas continuava a sorrir de forma simpática.

— Nem dormi ainda – respondeu o garoto seriamente.

Quando Caio chegou a sua casa de madrugada, seus pais já estavam dormindo. Ele tomou um longo banho, mas nada o conseguiu relaxar a ponto de fazê-lo dormir. O garoto virou-se na cama de um lado para o outro, mas as perguntas sem respostas eram tantas que o sono não conseguiu domá-lo.

Caio até pensou em ligar para Diana numa tentativa de se entreter, mas já era de madrugada e ele também não queria arrastar a garota para aquele caos. Além do mais, Caio sabia que sexo não traria as respostas para suas perguntas, mas sim Dionísio, o homem sentado a sua frente e que disse ser seu pai por dezoito anos.

— Eu preciso da verdade – disse Caio seriamente.

Dionísio bebeu um gole do café preto e olhou de soslaio para o filho. Ele usava um terno cinza impecável. Seus olhos castanhos escuros pareciam confrontá-lo e sua expressão nada amigável no rosto já era um alerta sobre desastre.

— Nós já conversamos sobre isso – disse ele com o tom de voz grave e alto.

Caio permaneceu parado e sério.

— Eu conheci os outros três idênticos a mim – disse ele. Dionísio o encarou ainda mais sério. – Dois são gêmeos, mas nós somos quatro e não nascemos da mesma mãe, isso seria tecnicamente impossível.

Dionísio estava com o rosto vermelho e seu olhar era um misto de medo e fúria. Ele colocou a xícara no balcão e engoliu a saliva da boca.

— Eu não sei sobre o que você está falando – disse ele levantando e indo em direção ao escritório.

— Não! – Gritou Caio se colocando no caminho do pai. – É claro que você sabe! Eu posso não saber o que está acontecendo, mas sei que todos nós nascemos na Progênese e que isso significa algo – disse o garoto – porque você não fala logo o que está acontecendo?!

— Porque isso vai matar você! – Gritou Dionísio perdendo a sensatez. – Isso vai matar você e todos os outros!

— Eu já estou morrendo! – Gritou Caio com lágrimas brotando de seus olhos. – Me deixe, pelo menos, falar a verdade para os outros...

A voz de Caio falhou. Seus pulmões arderam e uma crise de tosse forte quase fez Caio cair no chão. Ele cuspiu sangue no piso de mogno e encarou o pai. O silencio durou por meio minuto naquele cômodo da casa e Dionísio parecia assustado com a saúde do filho.

— Eu fui alertado que alguém havia nos achado na fazenda – disse Dionísio. – Eu aproveitei o pretexto da sua doença para que não nos encontrassem aqui. – Ele não olhava diretamente para o filho. – Eu não sabia que havia outro aqui em Cascavel. – Ele encarou os olhos do filho. – Havia dois em Curitiba, um no Rio de Janeiro, um em Foz do Iguaçu e outro no exterior.

Caio arregalou os olhos.

— Mais? – Perguntou ele. – Como assim mais? E como assim alguém atrás de mim?

Dionísio engoliu a saliva da boca.

— Você e seus... – ele buscou uma palavra – irmãos – disse por fim. – Fazem prato de um projeto ilegal do governo, financiado por um filantropo e executado na clínica de reprodução de Curitiba, a Progênese. Mas uma parte envolvida nesse projeto resolveu dar para trás e colocou tudo em risco... – Dionísio suspirou. – Ele acredita que precisa eliminar todos os envolvidos e todas as crianças que nasceram desse projeto...

Caio teve outra crise de tosse, dessa vez mais forte.

Olga se aproximou do marido e do filho. Eles estavam num espaço da sala onde não havia moveis. A porta de madeira que dava para o escritório estava atrás de Caio e ao seu lado direito havia uma grande janela de vidro que mostrava um gramado aparado e um muro baixo.

Caio olhou para a janela. As cortinas estavam abertas, mas a janela trancada. Ele percebeu que em cima do muro havia um homem com uma máscara preta no rosto e com uma AK-74M nas mãos.

­– O que... – Caio ia falar sobre o homem quando Olga tampou a visão do filho. Ele olhou para o rosto da mãe sem entender como ela havia ido parar ali em questão de segundos.

O vidro da janela se estilhaçou.

Olga foi o escudo.

Naquele mesmo instante a mulher perdeu a voz e foi pendendo para frente. Caio olhou para o homem no muro no exato momento que Pietro, o pasto alemão de seu pai, começou a latir para o estranho no muro.

Dionísio olhou para fora da janela no exato momento que o homem pulava para o outro lado. No mesmo instante, Olga caiu no chão com um filete de sangue escorrendo da boca.

— Mãe... – Caio levou meio minuto para entender que a mãe havia levado o tiro em seu lugar. – Mãe! – Gritou ele. – MÃE!

Dionísio se abaixou com os olhos cheios de lágrimas.

— Olga! – Gritou ele se ajoelhando e colocando a cabeça da mulher sobre suas pernas.

— A... verda... verdade – disse ela com dificuldade. Uma lágrima escorreu de seus olhos selando aquelas últimas palavras.

Dionísio começou a chorar e a gritar completamente angustiado enquanto Caio sentia que seus pulmões estavam para falhar outra vez. O homem deixou a mulher morta no chão e andou com fúria até ao escritório onde voltou meio minuto depois com uma agenda de couro na mão.

Pietro ainda latia do lado de fora da janela. Dionísio levou Caio até a cozinha e entregou a agenda para o filho.

— Aqui tem as respostas – disse ele. – Fuja. Alerte os outros. Ele vai matar todos vocês. – Ele começou a chorar. – Tente mantê-los a salvo como eu tentei por todos esses anos.

— Pai... – Caio tentou falar, mas Dionísio não deixou.

— Isso é culpa do Dylan Cooper – disse Dionísio sem se importar se algo fazia sentido ou não. – Isso é tudo culpa dele! – Ele olhou para Caio como se o percebesse somente naquele momento. – FUJA! – Berrou o homem descontrolado.

Caio colocou a mão no bolso e percebeu que sua carteira e seu celular estavam nele. Ele olhou para o pai pegando uma faca e indo em direção ao cano de botijão de gás.

— Pai o que você está fazendo?

— Dificultando as coisas para ele – disse Dionísio. Ele olhou nos olhos do filho por instante como se houvesse um lampejo de sensatez em meio à loucura. – Eu te amo. – Disse ele.

— Eu te amo – disse Caio olhando para o pai uma última vez até que saiu da casa. Naquele momento ele não poderia jamais imaginar que aquelas seriam as últimas palavras de seu pai.

Então tudo pareceu pertencer a uma realidade paralela. Caio estava correndo pela calçada com seus pulmões rasgando por dentro de seu corpo quando sua casa foi pelos ares com uma explosão.

♦♦♦

– Aquele carro está seguindo a gente – disse o motorista do táxi para Caio. O garoto nem olhou para trás para confirmar o que o motorista havia dito. Depois da morte da mãe, da casa indo pelos os ares e da agenda em suas mãos, era mais do que obvio que alguém estaria atrás dele.

Caio havia lido rapidamente algumas das coisas que haviam sido escritas naquela agenda por seu pai. Lembrar em Dionísio naquele momento não o ajudou a se concentrar no próximo passo. Ele ainda tinha na memória o momento em que a mãe havia sido morta e a casa explodindo.

Por mais que ele tivesse as respostas que tanto queria, nada parecia ser do jeito que ele imaginou. Por um instante tudo o que garoto queria era que tudo voltasse ao ponto inicial para que ele pudesse fazer diferente. Talvez, quando seu pai dissesse que era para ele esquecer a história da adoção, ele realmente esqueceria, só para não ter que passar por aquilo ali. Era egoísmo de sua parte, ele sabia, mas não era como se ele fosse se sentir culpado.

– Pode parar aqui – disse Caio. O carro estacionou e ele simplesmente jogou o dinheiro no banco e saiu correndo do carro.

Ele estava a duas quadras de distância de onde Demétrio estava. Ele correu pelos becos, pois sabia que um carro não conseguiria ir atrás dele. Caio não seguiu pelo caminho convencional que o levava a Demetrio, ele simplesmente foi pelo caminho mais difícil, tendo de se esgueirar em becos e pular muros, tudo para que quem estivesse atrás dele se perdesse.

Seus pulmões começaram a falhar enquanto corria e ele quase perdeu o diário em suas mãos. Ele precisava levar aquilo para Demetrio e contar o que havia descoberto para o sósia. Quando estava próximo ao trailer de Demétrio, Caio se certificou que não havia nenhum carro o seguindo e se aproximou da grande casa de metal sobre rodas e bateu na porta desesperado.

— Demétrio eu descobri! – Ele olhava para trás a todo o momento para se certificar que não havia ninguém ali. – Minha cor preferida é prata! Por favor, abra!

Demétrio abriu a porta e Caio entrou ligeiro a fechando logo em seguida. Ele estava ofegante.

— O que aconteceu? – Perguntou Demétrio – está tudo bem?

Caio recuperou o fôlego e encarou o irmão.

— Eu preciso que você faça algo – Caio tirou a carteira do bolso. – Aqui tem meus documentos e meu cartão do banco. Tem um papel com o número da senha, você pode retirar o dinheiro no caixa eletrônico sem problema algum – ele falava tudo muito rápido.

— O que está acontecendo? – perguntou Demétrio sem entender nada.

Caio colocou o celular em cima da mesa também.

— Aqui tem o numero do Rafael e da Rebeca – disse ele – liga para eles quando você encontrar um lugar seguro para ficar e mostra essa agenda para eles.

Demétrio olhou para a agenda.

— O que é isso? – perguntou – o que está acontecendo? Porque você está desse jeito?

Caio tentou respirar.

— Eu descobri o que somos e existem outros de nós que estão correndo perigo – ele fez uma pausa – cabe a você tentar salvá-los, Dan.

Demétrio estava a cada segundo mais confuso.

— Tem um homem atrás de mim – disse Caio – eu o despistei, mas ele pode chegar aqui a qualquer momento. Você precisa fugir. Eu vou tentar levar ele para outra direção, mas você não pode mais voltar para cá, certo?

Demétrio pegou a agenda.

— Não – disse ele – eu não vou te deixar sozinho nisso. Eu vou ficar aqui com você.

Caio começou a chorar.

— Não Demétrio – disse ele. – Você precisa fugir, precisa viver uma vida. Ter uma vida... – nada fazia muito sentido. – Pega o dinheiro no banco, muda de cidade, muda de visual, assume a minha identidade... eu não sei... faz qualquer coisa – ele segurou o irmão pelos ombros – mas você tem que me prometer que vai ficar a salvo e que vai alertar os outros.

— Que outros? – perguntou Demétrio.

Caio estava impaciente.

— Promete que vai fazer o que eu disse? – Demétrio não respondeu. – me promete! – gritou ele chacoalhando o sósia pelos ombros.

Demétrio encheu os olhos de água.

— Prometo... – disse ele quase como um sussurro.

— Tira a camisa – disse Caio tirando a sua também – em seguida ele tirou a calça jeans rasgada nos joelhos e pediu a bermuda suja de Demétrio.

Eles ficaram em silêncio por meio minuto apenas um encarando o outro. Em seguida Caio abraçou o irmão o mais forte que pode.

— Você sai primeiro e corre em direção do posto de gasolina abandonado – disse Caio – eu vou na direção oposta. Quase que de encontro com o nosso perseguidor.

Demétrio o abraçava forte.

— Eu amo você – disse ele.

Caio derramou as últimas lágrimas.

— Eu amo você também, irmão. – Ele se desfez do abraço – meu pai disse que a culpa é dos Dylan Cooper então tome cuidado com qualquer pessoa que tenha esse sobrenome.

O sósia fez que sim com a cabeça.

Demétrio saiu do trailer e se certificou que não havia ninguém por perto. Ele olhou para Caio e deu o sorriso mais triste que uma pessoa podia dar. Em suas mãos estava à agenda e no bolso o celular e a carteira.

— Prata é minha cor preferida – disse Caio sorrindo.

Demétrio riu.

— É a minha também. – Em seguida ele seguiu seu caminho.

Caio olhou para a carteira de cigarros em cima do sofá velho. Aquilo era provavelmente da Rebeca, a garota devia ter esquecido ali na noite passada. Ele pegou a carteira e seguiu na direção oposta a de Demétrio.

Enquanto seguia por uma rua pouco movimentada, Caio entrou num beco sem saída. Tudo o que havia a sua frente era os fundos de um prédio em construção abandonado e um muro de um terreno baldio.

Ele olhou para a lata de lixo caída no chão e em seguida para o muro. O céu estava tão estranho naquela manhã que Caio começou a rir. Ele tirou um cigarro da carteira e o colocou na boca. Foi então que sentiu algo frio na sua nuca.

— Se você fizer qualquer movimento eu te mato – disse uma voz grave. – Você já deveria ter sido eliminando, mas como diz aquele velho ditado, nunca mande um amador fazer o trabalho de um profissional.

O peito de Caio ardia e seus pulmões pareciam não bombear ar.

— Você não deveria fumar – disse o homem – você não é aquele que tem câncer?

Caio respirou fundo.

—Não – disse ele – esse é o meu irmão. Eu sou aquele que fugiu do orfanato... todo mundo me confunde com ele – Caio riu – imagino os motivos...

O cano na nuca de Caio parecia queimar sua pele.

— Irmão? – perguntou a voz.

— Sim disse Caio – meu irmão gêmeo. – Ele parou – acabei de encontrar com ele... ele estava com um papo muito estranho sobre clones e não sei mais o que. Ele me mandou fugir, mas como o pobrezinho usa drogas imaginei que ele podia estar... sei lá, tendo alucinações.

Caio engoliu em seco. Seu cigarro havia caído no chão.

— E ele disse pra onde ia? – perguntou a voz.

— Algo sobre a África – disse Caio. – Egito... sei lá. Ele realmente estava pirado.

O homem ficou quieto.

— É como é o seu nome?

— Demétrio – disse Caio. – E o seu? Posso saber?

O homem riu.

— Vamos dizer apenas que eu sou aquele que vai eliminar todos vocês, suas aberrações malditas – disse o homem. – Você devia ter acreditado na história dos clones. É o que vocês são...

Caio sentiu os pulmões arderem.

— Você é um de nós? – perguntou Caio.

O homem riu.

­ – Não... – disse a voz – eu sou o original...

E aquelas foram às últimas palavras que Caio ouviu em vida.