Na casa de Madame Giry, ela se reunia a uma visita em sua sala; um homem muito alto, de cabelos pretos e curtos impecavelmente penteado para trás, roupas tão negras quanto os cabelos, com metade do rosto recoberta por uma máscara branca. Estava displicentemente sentado na poltrona, as pernas cruzadas, os braços apoiados nos descansos, a cabeça levemente tombada para o lado em curiosidade quanto ao que teria feito a viúva chama-lo.

— Erik – disse Antoinette, dirigindo-se ao homem moreno diante de si – é sobre Christine.

— Christine? – perguntou o Fantasma, sem expressão na voz ou no rosto – não tenho nada a falar sobre este assunto.

— Mas ela está...

— Não quero ouvir, Antoinette. Se era só o que tinha a me dizer, boa noite – ele descruzou as pernas e se levantou, pronto para ir embora, quando um sapato passou voando a milímetros de sua orelha. Surpreso, o homem se voltou para a amiga, que estava vermelha de raiva, e tinha o outro sapato em mãos:

— O próximo vai voar bem no seu nariz, se não ouvir o que tenho a dizer.

— E o que tem a me dizer? – ele se sentou novamente (não era bom ignorar as ameaças de Madame Giry), cruzando as pernas e fechando as mãos sobre o joelho – como ela está feliz com o novo marido? Como planejam uma vida longa e muito alegre, longe daqui?

— Christine desapareceu, seu perfeito idiota! – explodiu a mulher. Aquilo desfez a neutralidade na expressão do Fantasma, que se levantou:

— Como assim, desapareceu?

Madame Giry, nervosa e preocupada com a filha, desabou em uma torrente de palavras:

— Ela não queria se casar com Raoul... Ele a estava surrando e... Ela disse não no casamento, e quando fui procura-la ela não estava no quarto. O Visconde disse que já havia partido, mas não acreditei no que me dizia e... – Erik avançou um passo e segurou a mulher pelos ombros:

— Respire fundo e diga aos menos uma frase coerente. – e a soltou, com ar ferino – o que houve com Christine?

Respirando fundo, a viúva tentou organizar os pensamentos em sua mente, antes de narrar a história:

— Quando eu fui ao casamento dela, Christine me disse que não queria se casar. Raoul a estava surrando, trancando em casa, proibindo-a de tocar ou cantar... Ela estava infeliz, e queria ir embora, mas temia que ele a matasse, se o fizesse... – a voz da mulher tremeu, ao pensar que sua pequenina poderia estar morta. Ah, não! Nem mesmo em seus piores pesadelos! – Eu lhe disse que não se casasse. Que eu a acolheria em minha casa, como a filha que é, para mim... No momento do casamento, quando o padre perguntou a ela se aceitava Raoul como esposo, ela disse que não. E disse a ele que iria embora antes do anoitecer. Subiu para buscar seus pertences, e eu havia dito a ela que me encontrasse para irmos embora juntas, mas... Ela não apareceu. – A expressão de Erik era dura como pedra, com verdadeiro ódio estampado em seu rosto; se Raoul houvesse feito alguma coisa com Christine...

— E o que houve, depois disso? – havia urgência e preocupação na voz do músico, que tinha um brilho assassino no olhar.

— Confrontei o Visconde. Acusei-o de impedir Christine de partir, mas ele fez questão de me levar ao quarto dela, e mostrar que as coisas dela já não estavam lá. Disse que Christine saíra sozinha, há algum tempo. – ela hesitou – mas não creio em uma palavra. Por Deus, eu sei que ele prendeu a menina em algum lugar, e sabe-se lá o que fez a ela!

Erik parecia um leão enjaulado, furioso, quando sibilou:

— Eu vou encontrar Christine, Madame Giry, fique tranquila. E se aquele De Chagny fez algo a meu Anjo, ele irá pagar muito, muito caro.

Sabendo que Erik não blefava, Antoinette começou a se acalmar: o Fantasma moveria céus e terra para encontrar Christine e, diferente dela, não teria o menor problema em entrar na casa do Visconde, e encontrar onde estava a jovem senhorita Daae.

*

Erik quase enlouquecera por ter de esperar até o anoitecer; cada hora que perdia era um hora preciosa, em que sua Christine poderia estar sofrendo nas mãos do ridículo De Chagny! Tão ansioso estava, que assumiu o risco de sair logo ao crepúsculo, antes que o mundo mergulhasse nas sombras. Com capa e capuz, montou César, seu cavalo negro, e cruzou a galope as ruas de Paris. Madame Giry lhe explicara bem como chegar à mansão, e foi para lá que ele se dirigiu. Afinal, mesmo se seu Anjo não estivesse lá, uma busca sempre deveria começar pelo último lugar em que o desaparecido fora visto.

Deixou César a uma quadra da casa e, quando escalou o muro que cercava o enorme jardim, a noite caíra sobre a cidade. Sorrateiro como um gato, esgueirou-se nas sombras até o lado do jardim onde ocorrera a cerimônia; fora há mais de vinte e quatro horas, mas ainda havia rastros da confusão que se seguira. E um desses rastros jazia sobre a grama: um véu branco. Ele se abaixou e pegou a peça, levando-a ao rosto... Tinha o perfume de Christine, e trouxe-lhe dolorosas lembranças do dia em que ele próprio pusera um véu na cabeça da moça... Se pudesse voltar àquele dia, jamais a teria deixado partir.

Mas memórias não encontrariam a moça, de modo que o Fantasma deixou o véu onde estava, e começou a procurar por pistas. Com extremo cuidado, destrancou a porta dos fundos com uma chave-mestra, entrando então na área dos empregados; de lá foi para a cozinha, sem se deixar notar pela senhora de muita idade que areava panelas junto ao fogão... Pensou que ela, talvez, soubesse algo, mas logo descartou a ideia: a catarata recobria parcialmente os olhos cansados, e ele desistiu de tentar informações ali, antes mesmo de começar. Porém, a senhora se virou de repente, e o Fantasma se imobilizou nas sombras; como previra, a idosa nada viu de anormal, e logo em seguida deixou seu trabalho, indo para seu merecido descanso.

Sozinho nas cozinhas, Erik começou a procurar por algo, e logo encontrou: o anel que dera a Christine, e que ela jurara jamais tirar, jazia no chão, enroscado nos pelos do tapete. Uma joia tão pequena que teria passado facilmente por despercebida. Isso só confirmava uma coisa: Christine estava ali. Ela não tiraria a joia, de modo que esta fora tirada de sua mão, talvez numa luta. Isso significava que a criadagem saberia onde a mulher estava.

Como uma sombra, ele vagou pela mansão, seguindo os ruídos, à procura de um serviçal a quem “indagar” onde estava sua amada. Não demorou muito a encontrar o que queria: num quarto, uma moça trocava os lençóis de uma cama. Tinha vinte e poucos anos, cabelos castanho-claros presos numa touca branca, e vestia aquele uniforme ridículo de trabalho. Era a oportunidade perfeita do Fantasma, que entrou no quarto sem ser visto. Foi só quando fechou a porta que a moça ergueu os olhos de seu trabalho, assustada. Teria gritado, se o homem não a alcançasse num passo, tapando sua boca com a mão enquanto, com a outra, punha uma faca no pescoço da jovem.

— Quietinha – sussurrou – eu não quero machuca-la. Estou aqui procurando por Mademoiselle Daae, e você vai me dizer onde ela está.

A moça parecia petrificada, e quando o Fantasma tirou a mão de sua boca, respondeu num gemido:

— Eu não sei. Ela saiu da casa, e ninguém mais a viu.

Erik virou a mulher de frente para si, e torceu-lhe o braço às costas; a lâmina continuou no pescoço dela, enquanto alertava:

— Não grite. – ele deslizou a lâmina pelo rosto da criada – Você e eu sabemos que é mentira. Você sabe onde ela está, e oculta esta informação de mim. Por quê?

— Não sei do que está falando. – insistiu ela. O Fantasma revirou os olhos e suspirou:

— Não gosto de machucar mulheres, mas não me deixa outra alternativa – e num gesto brusco, derrubou a criada sobre a cama, imobilizando-a com uma das mãos e, com a outra, abrindo um corte fino no braço desnudo dela – sente isso? Sente a dor? – a jovem anuiu, de olhos arregalados de terror – imagine isso em todo o seu corpo.

A moça meneou a cabeça e cerrou os lábios com força, o que fez Erik fazer outro corte, agora em sua bochecha. E quando, mesmo assim, ela nada disse, ele declarou:

— Talvez, se eu lhe cegar um olho, você recupere a memória. – e foi aproximando a faca lentamente do olho direito da empregada, que implorou baixinho:

— pelo amor de Deus, não! Eu lhe mostro onde está a senhorita Daae, mas poupe-me, por favor!

Ele deu um sorriso macabro, e respondeu:

— Isso. É tudo o que lhe peço: colabore, seja uma boa criada, e nada terá a temer de mim. Só quero recuperar minha mulher, e partir. Você não precisa sofrer. – ele soltou a jovem, mas ainda lhe apontava a faca – leve-me até Mademoiselle Daae, mas lembre-se: se der algum alerta, você será a primeira a morrer.

A criada anuiu, e guiou Erik pelos corredores, rígida como uma estátua, quase paralisada de medo. Se temia seu patrão, certamente temia muito mais aquele homem estranho, de perturbadores olhos azuis que pareciam se enterrar em sua alma, quando os fitava. Aquele, sim, era um homem a se temer, e se a senhorita Daae fosse, mesmo, a mulher daquele senhor... Então seu patrão tinha um problema sério em mãos.

POV Christine

Há quanto tempo eu estava naquele lugar horrível? Já não sabia, mas pareciam dias. Eu devia estar com febre, pois não conseguia manter-me acordada por muito tempo, e tudo parecia tão confuso! Eu tremia de frio, ao mesmo tempo em que transpirava, e tudo o que sabia era que, nos momentos de consciência, ansiava pelos de sono. Só aquela abençoada escuridão da inconsciência podia me acolher e salvar do pesadelo que vivia. A verdade, admito, é que eu não queria mais viver.

Raoul viera me “visitar” outra vez. Eu estava pouco consciente, mas lembro-me de que me obrigou a beber um pouco de água, e que sorriu de modo cruel, dizendo que agora, sim eu estava sendo uma “boa menina”. Ele começou a me tocar outra vez, e tentei impedi-lo com as mãos... Ele se irritou, e usou seu cinto para me bater... Desmaiei com a surra, e só despertei com a dor de seu corpo invadindo o meu, novamente. Chorei de novo, e o ouvi zombar, dizendo que eu parecia um bebê chorão; fez o que quis comigo, mais uma vez, e a cada vez eu me sentia mais imunda, com menos vontade de viver. Meu corpo fora machucado e profanado de todas as formas, e eu estava imersa em um mar de dor. Senti quando se aliviou dentro de mim, e isso me fez ter náuseas. A raiva ante minha própria vulnerabilidade, o ódio de estar servindo como objeto de prazer daquele homem, o asco por tudo o que ele me fizera, deram-me novas forças, e eu praguejei contra ele:

— Miserável, cria de uma cadela! Você é imundo e asqueroso! Eu te odeio, Raoul de Chagny! Maldito seja! Maldito o dia em que nos conhecemos... – fui interrompida por outro tapa, que me derrubou de costas no colchão, e ele me disse:

— Você fala demais. – Outro golpe, e então o enfrentei, esperando que matasse:

— Bata de novo! Bata o quanto quiser! Mate-me de uma vez, e acabe com isso! – eu não sei se estava apenas com raiva, ou se estava implorando a ele que finalizasse aquela tortura. Talvez um pouco de ambos. De um modo ou de outro, ele fez o que eu disse: bateu-me. Bateu-me com força, e por todo o corpo e, quando eu já não conseguia reagir, quando achei que a morte ia me levar, agarrou-me pelos cabelos e falou a centímetros de meus lábios:

– entenda isso, Christine: você quis o monstro, então, para você, eu serei o monstro. Você é minha. Sabe o que isso significa? – ele me beijou de modo possessivo e violento – significa que eu decido sobre sua vida e sua morte. Você só existe para me satisfazer, agora.

— Vai lamentar por isso, Raoul... – a voz mal saía de minha boca, e o mundo se resumia a uma mancha negra. Ele riu:

— Vou? Por quê? Você me traiu! Traiu meu amor! E quem sentiria falta de você, de qualquer jeito? Não tem família! Não tem amigos. Acha que alguém da Ópera vai tentar salvá-la? Nenhum deles vai insistir. Sua querida mãe adotiva não insistiu, quando disse que você não estava mais aqui.

— Anjo... – gemi, mais numa prece por piedade do que numa resposta a Raoul, mas isso o fez zombar ainda mais:

— Seu Fantasma? Você fez com ele o mesmo que fez comigo, Little Bitch. Acha que ele ainda a ama, depois que expôs aquela caveira que ele chama de rosto para o mundo todo? Você é uma vagabunda que usava os homens. Agora, é hora de retribuir, não acha? É hora de ser tratada como a vadia suja que você é. Poderia ter sido minha mulher, uma dama da sociedade, mas preferiu essa vida. Então, agora, entenda: você é meu brinquedinho, e ninguém vai te salvar, porque ninguém vai sentir sua falta. Você é dispensável; ninguém se preocupa com a sorte de uma vagabunda do teatro.

Eu chorei ao ouvir aquelas palavras: chorei, agora porque sabia que eram verdadeiras. E quando ele me pôs de quatro e me possuiu outra vez, eu mal sentia a dor da violação, porque outra dor, muito mais profunda, me tomava: a de minha mente e minha alma se estilhaçando. Tantas escolhas, e todas erradas... Eu ferira aqueles a quem amava, ferira a mim mesma, traíra a confiança do Anjo... E agora, cada escolha me levara àquele lugar, desprovida de dignidade, de amor, de compaixão... Desprovida de absolutamente tudo, apenas um objeto a ser usado.

Desmoronei completamente: eu não era um ser humano... Não tinha nome, não tinha nada. Eu apenas existia, e isso só enquanto Raoul me quisesse. Porque eu era dispensável. E fizera por merecer aquilo, com tantas escolhas horríveis. Chorava muito, perdendo-me cada vez mais de mim mesma, sentindo minha vontade e minha mente totalmente minadas, apagando-se, a força de lutar de abandonando, enquanto minha mente se desfazia e se quebrava...

Não sei quando perdi a consciência, nem mesmo se a perdi, ou se apenas fiquei vagueando naquele mar de dor e confusão, tremendo de frio, totalmente despida de mim mesma. Sentia as forças me abandonarem, e pensei que ia morrer... Mas não consegui ficar feliz com isso, e nem mesmo triste, pois minhas emoções estavam completamente quebradas. Uma luz branca se delineou em meu campo de visão, e achei que, talvez, fosse mesmo o fim. Fechei os olhos e simplesmente o aceitei.

POV Narrador

Quando o alçapão foi revelado, Erik bateu com força na cabeça da criada. Ela ficaria desacordada algumas horas, o bastante para que ele pudesse tirar Christine dali. Abriu o alçapão e enfiou-se por ele, com uma vela nas mãos: dentro do porão, havia vários móveis velhos cobertos com panos. No canto, uma cama e, sobre ela, uma mulher nua jazia largada de costas. Estava muito machucada, com sangue nas pernas, hematomas e contusões pelo corpo, e sua respiração era muito fraca. Como um raio, o Fantasma alcançou a pequena criatura sobre o leito: estava tão quente! Com muita febre, certamente, mas ele não poderia cuidar disso ali. Com o coração doendo em ver sua amada Christine daquele jeito, ele a tocou levemente, sem saber como carrega-la sem causar-lhe dor. Tirou a própria capa e, delicadamente, ergueu a moça para vesti-la. Nesse instante ela abriu os olhos, aqueles olhos que ele tanto amava, e o fitou... Mas havia algo de errado, pois o olhar sempre tão cheio de vida e sonhos estava, agora, morto. Não havia ali nada, apenas uma vazia indiferença quando, com voz extremamente fraca, ela perguntou:

— Vai me machucar, também?

— Não, Christine, não! – disse ele, enrolando-a na capa e erguendo-a nos braços, apesar dos lamentos de dor da garota – ninguém nunca mais vai te machucar, meu amor. Está a salvo, agora. Está segura. Ninguém mais vai tocar em você, novamente, meu pequeno Anjo. – mas ele falava com o nada, pois a jovem, fraca demais, já adormecera em seus braços.