O conservatório Les Étoiles funcionava em um belo prédio de um quarteirão, com três andares e arquitetura que remetia aos palacetes barrocos. Christine fitou com admiração a porta de entrada ampla e emoldurada por batentes esculpidos em formas naturais, que dava acesso a um hall com elevado pé-direito e duas escadas que se encontravam no andar superior. As amplas janelas envidraçadas deixavam entrar muita luz, anulando a sensação de confinamento que havia em muitos prédios da época.

— É tão bonito – comentou a moça com a outra menina, que concordou:

— Gosto de ficar à toa, admirando os detalhes das esculturas e decorações. Há detalhes tão mínimos que até hoje não identifiquei, mas, quando os vejo, percebo a diferença que fazem no aspecto geral. Você vai adorar! Ah, e espere para ver as salas espelhadas! Adoro as salas da Ala Leste, porque o Sol incide ali logo pela manhã, e tudo fica tingido de dourado! – e virou-se para a mãe – posso levar Christine para ver?

— Daqui a pouco, querida. Primeiro quero apresentar Christine a Madame e Monsieur Delacroix, e então pode leva-la aonde quiser, até a hora da aula.

*

Christine se surpreendeu com o casal proprietário do conservatório: na casa dos cinquenta anos, ambos tinham os cabelos castanhos com mechas grisalhas que a vaidade não fora motivo para tentarem esconder; a senhora mantinha suas mechas cuidadosamente cacheadas e presas sob um pequeno chapéu de abas com renda, e vestia-se com trajes cinza-escuros de gola e punhos enfeitados por um delicado arminho branco. Seu rosto marcado pela primeiras linhas de idade era sereno e firme, com olhos verdes esgazeados e de brilho arguto, feições que lembravam algo as de um gato, angulosas sem perderem a graça. Definitivamente, algo nela lembrava a soprano de um gato selvagem que vira durante uma viagem com o pai...

O senhor Delacroix, por sua vez, tinha idade similar à da esposa e o mesmo semblante sereno, porém firme – dizem que a convivência torna as pessoas similares, e devia ser verdade, pois os trejeitos e gestos de ambos pareciam ter sido cuidadosamente ensaiados ao longo de anos, para fruírem de tal similaridade. Ambos possuíam movimentos fluídos e precisos de quem não gasta em seus atos mais tempo do que eles merecem. O cavalheiro tinha estatura avantajada, sendo alto e corpulento sem perder com isso certa graça; as costeletas cuidadosamente cortadas estavam penteadas de modo a ganharem mais volume, e ele parecia em tudo alguém acostumado a ser obedecido. E embora nada houvesse de ameaçador no aspecto de qualquer dos dois, a soprano sentiu como se houvesse algo extremamente opressivo e ameaçador no ar.

— Madame, Monsieur – começou Madame Giry, pousando a mão nas costas de sua protegida – permitam-me apresentar minha tutelada, Mademoiselle Christine Daae. Certamente já ouviram falar dela?

— Daae? A jovem e incrivelmente talentosa soprano que cantou na Ópera Garnier? – perguntou a senhora, com um lindo sorriso, aproximando-se e apertando a mão da adolescente – tive o enorme prazer de ouvi-la cantar algumas vezes, senhorita, e mais parecia um coro de anjos!

— Obrigada, Madame. – agradeceu a garota, levemente corada. Monsieur Delacroix também se aproximou e tomou a mão direita de Christine, curvando-se e beijando respeitosamente os dedos esguios. O toque da mão aveludada, porém, lembrava demais o toque de outra mão masculina que jamais vira trabalho pesado e fora em vida igualmente macia... Uma pedra de gelo pareceu se formar em torno do coração da soprano, cuja respiração se tornou ofegante um instante antes de ela puxar bruscamente a mão, trazendo-a contra o peito, o olhos arregalados e o rosto muito pálido.

— Mademoiselle? – o senhor parecia confuso ante a reação nada gentil da dama, e Madame Giry tratou imediatamente de remediar a situação:

— Perdão, Monsieur: confesso que dei a Mademoiselle Daae uma criação um tanto antiquada, e jamais um cavalheiro tocou sua mão sem estar de luvas. – era uma mentira deslavada, mas de longe a desculpa mais aceitável – Christine, não seja rude, apenas porque esqueceu suas luvas.

A menina lançou um olhar grato à mãe e fez uma reverência polida:

— Perdoe-me, monsieur Delacroix. Não tive intenção de ofendê-lo.

— Compreendo, mademoiselle. Talvez, se as senhoritas ainda se preocupassem de tal modo com o recato, não teríamos tantos escândalos familiares atualmente. – respondeu o senhor, fazendo a cantora ponderar se ele estaria sendo sincero ouse , em uma ironia sutil, referia-se aos eventos na Ópera Garnier... Toda aquela situação a punha mais do que desconfortável, e todos os seus instintos gritavam “corra e volte para casa!”, mas não apenas sua mente lutava contra tal ensejo, como sabia que Madame Giry não o permitiria. Assim, obrigou-se a pôr um sorriso no rosto e manter-se firme.

— Mas diga-me, Mademoiselle – começou Daniele Delacroix – o que traz a famosa jovem cantora a nosso conservatório?

— Bem, Madame – o ar da menina poderia ser tomado por humildade, mas sua tutora via bem o modo como ela lutava para sair da concha mental na qual gostaria de se trancar – eu me afastei dos palcos após o incêndio, por insistência de... – ela empalideceu mortalmente – meu então noivo, Raoul de Chagny...

— Correram muitos boatos acerca do escândalo que causou ao rejeitá-lo no altar. – Christine fechou os olhos e baixou a cabeça, terrivelmente envergonhada e sentindo as agulhadas do pânico escureceram sua visão. Mas Daniele prosseguiu de modo nada esperado – foi incrivelmente corajosa em fazê-lo, criança.

Aturdida pelas inesperadas palavras lisonjeiras, a adolescente abri os olhos e perguntou:

— Como disse?

— É preciso muita coragem para rejeitarmos aquilo que escolhem para nós. – sorriu a dama, e tomou o braço do marido – eu mesma rejeitei um noivo promissor, para estar com aquele a quem amava, e admiro qualquer uma que tenha tal honestidade para consigo mesma. Espero que tenha tido a mesma boa sorte.

— Eu... Bem... – como falar sobre Erik? Ela não queria ter de tocar no assunto de sua vida pessoal, especialmente com pessoas às quais nunca vira! – agradeço as palavras gentis, Madame. De qualquer modo, agora que resolvi certos... Problemas que tive... Não desejo ficar inativa. Vim aqui para me oferecer como voluntária nas atividades do conservatório.

Ficou claro para o casal que a jovem não desejava mais falar a respeito de sua vida pessoal, e isso muito os intrigava. Porém, a oportunidade de ter a tão afamada Christine Daae dando aulas em seu estabelecimento era uma oportunidade excelente demais para ser desprezada!

— Seu nome é conhecido em toda a Europa, minha jovem – disse enfim Jon Delacroix – seria um orgulho tê-la em nossa equipe, senhorita. Mas pergunto: por que apenas como voluntária? Por que não se tornar professora interina?

— Bem, senhor... Ainda tenho problemas pessoais a resolver. Minha saúda anda... Delicada, e talvez haja dias em que não poderei vir. Façamos a experiência e, se meus serviços forem a contento, então talvez eu me torne professora em caráter oficial. Por hora, ficarei muito feliz em travar contato com a música, que é o que move minha alma.

O casal fitou Madame Giry, que enlaçara o braço ao de sua pupila, sentindo-a tão trêmula que parecia quase incapaz de ficar em pé. Ainda assim, mantinha-se corajosamente firme, rosto erguido, os olhos encobertos por uma máscara de falsa placidez. Os proprietários do conservatório se entreolharam, e então Jon declarou:

— Será um enorme prazer recebe-la em nosso meio, Mademoiselle. Contudo, devo lhe fazer um pedido... Desde o incêndio da Ópera Garnier, seu nome esteve envolvido em alguns pequenos escândalos. – Ele não faria volteios – Nossa instituição tem um nome a zelar e... Bem, creio que compreenda nossa posição, senhorita.

A vergonha de Christine foi tamanha que ela queria ser uma mosquinha para se esconder no buraco da fechadura; ainda assim, entendia que um diretor devia zelar antes de tudo pela reputação de seu empreendimento e, rígida como uma tábua, respondeu:

— Perfeitamente, Monsieur.

Mais apiedada da menina do que seu marido, Daniele se adiantou e tomou o braço da menina delicadamente:

— Não ligue para meu esposo, querida: ele é muito direto e tem o tato de um rinoceronte ao tratar com as damas. – e ante a carranca que ele lhe dirigiu – e nem ouse me censurar, querido, pois sabe que é verdade! Agora, com sua licença, pretendo apresentar Mademoiselle Daae aos outros professores!

Assim, na companhia de Madame Giry e da proprietária da escola de artes, a jovem cantora passeou pelos corredores brancos e dourados, sendo apresentada a cavalheiros e damas que ensinavam ou estudavam ali, bem como a um ou outro aluno destacado.

*

— É um enorme prazer conhecê-la, mademoiselle! – era a milésima vez que Christine ouvia aquela frase e, sinceramente, já não conseguia se empolgar com as infinitas apresentações. Por mais esforço que fizesse, não conseguiria nunca guardar os mais de cem nomes que lhe haviam sido ditos naquele dia! Talvez conseguisse, se não gastasse cada gota de suas forças lutando contra a ansiedade e o pânico que tentavam se apossar de seu ser ao se ver cercada de tantas pessoas estranhas. Sentia-se, como definira Renée, caminhando num labirintos de espinhos, onde cada voz nova, cada rosto diferente e cada toque em sua mão fosse um espinho grande e afiado a se cravar não em sua pele, mas em sua alma. E por mais que se esforçasse, estava tão desesperada que tudo o que desejava era gritar. Queria libertar aquele grito de desespero que estava aprisionado dentro de si, e correr para o mais longe possível de tudo aquilo... Para perto de Erik, nos braços quentes de seu Anjo, ouvindo sua voz divina...

Mas aquilo não iria acontecer, então ela continuou sorrindo e trocando palavras amenas. Não é que não gostasse do lugar: estava encantada, e tudo lhe parecia maravilhoso! Mas lidar com tanta gente era um esforço quase maior do que suas abaladas emoções conseguiam suportar...

— Christine, você está bem? – perguntou Madame Giry, reconhecendo no rosto de sua menina o abatimento e medo que bem conhecia.

— Ah, estou, Madame. – e baixando a voz a um sussurro – onde ficam os toiletes?

— por ali – indicou a viúva; não acreditava nem um pouco na afirmação da garota quanto a estar bem, mas não insistiria. Se a moça cria ser capaz de lidar sozinha com aquilo, então precisava permitir.

POV Christine

Aquilo tudo parecia demais, para mim! Eu realmente acreditara que podia lidar com o medo, a ansiedade e todo o resto... Mas não conseguia! Ah, meu Deus, parecia haver cubos de gelo dentro de mim! Corri para o banheiro feminino e me tranquei ali dentro, em desespero: parecia haver cubos de gelo dentro de mim, e um frio intenso me tomava, fazendo-me tremer como se caminhasse nua na neve. Ao mesmo tempo, transpirava de um modo descabido para o começo do inverno, e minha visão periférica escurecera. O que restara de meu campo visual estava tomado por pequenas luzes coloridas, e eu sabia que, se não me controlasse, desmaiaria.

Debrucei-me na pia, o estômago revirado por náuseas violentas, a cabeça doendo e os joelhos mal me sustentando. Segurava a pia com tanta força que minhas mãos estavam brancas, mas nem de longe tanto quanto meu rosto refletido no espelho. Tentando não desmaiar, abri a torneira e joguei água gelada no rosto: o choque térmico pareceu aliviar os sintomas, mas o frio piorou.

— Droga, Christine, agora não é hora! – ralhei comigo mesma, com raiva de minha fraqueza e vulnerabilidade. Sim, é bem verdade que suportara uma manhã inteira de conversas, apresentações e passeios com completos estranhos, coisa que sequer imaginara conseguir... Mas isso cobrava seu preço, agora, na forma de um dos piores ataques de pânico que eu tivera no último mês. Minha respiração estava pesada, difícil como se houvesse dedos me estrangulando...

Tentei desesperadamente não me lembrar do modo como Raoul apertara meu pescoço ao me violentar, mas o ataque de pânico parecia fazer todas as piores lembranças retornarem como uma avalanche! Todo o meu corpo doía, a vista escurecia a cada vez que uma náusea revirava meu estômago dolorido, e minha cabeça latejava... Com dedos trêmulos lutei contra os botões nas costas de meu vestido, e abri alguns de modo que a gola alta afrouxasse em meu pescoço; aquilo pareceu fazer algum ar entrar em meus pulmões, e a sensação de desmaio iminente se aliviou. Só havia um pensamento em minha mente: eu não podia desmaiar. Precisava ficar bem, e me recuperar.

Sentei-me no chão, a cabeça pousada nos joelhos, as mãos cruzadas na nuca; ainda bem que trancara a porta, pois se alguém entrasse, ficaria horrorizado com meu aspecto: o vestido aberto até a cintura, as mangas deslizando por meus ombros, o rosto branco e olheiras escuras... Eu precisava mesmo me recompor. Fechei os olhos e tratei de me lembrar das palavras da doutora Renée; concentrei-me em minha respiração, deixando-a tão longa e profunda quanto possível, esvaziando completamente o peito antes de outra inspiração. Sentia o frio dos ladrilhos contra minhas costas e sob meu corpo, e concentrei-me nesse frio para fugir aos pensamentos e memórias de terror. Eram apenas pesadelos. Pesadelos, e nada mais. Não eram reais! Não eram reais!

Aos poucos minha pulsação se acalmou, e a respiração ficou naturalmente mais lenta, sem que eu precisasse força-la a isso. A sudorese abrandou, e os calafrios diminuíram. O ataque não desaparecera, mas reduzira consideravelmente sua intensidade, permitindo-me levantar e ir lavar o rosto. Ah, céus, eu estava com uma aparência péssima... Fechei os botões do vestido, lavei o rosto e ajeitei os cabelos, mas pouco ou nada podia fazer quanto à lividez e às olheiras... Paciência.

A coisa mais incômoda, de longe, era o modo como o corpo ficava dolorido após um acesso de pânico; parecia que eu fora surrada por um homem duas vezes mais forte que Raoul, e tudo o que queria era uma cama macia para dormir. De acordo com Renée, era a resposta natural do corpo, pois o pânico consumia muita energia... O que não tornava mais fácil.

Tentei agir como se nada houvesse acontecido ao sair do banheiro, mas minha farsa não foi muito longe, pois no corredor estava ninguém mais, ninguém menos do que Renée D’Albignon. Revirei os olhos com leve divertimento, e ela veio em minha direção com um sorriso discreto:

— Você está péssima – nada como a sinceridade de minha amiga! – aconteceu algo?

— Nenhum motivo específico.

— Ouvi dizer que você já cativou metade do conservatório com um sorriso e palavras gentis.

— Se era só metade do conservatório, meus pés vão ter me matado antes do final do dia – brinquei, tentando desconversar. Ela compreendeu, mas então segurou-me pelo cotovelo:

— Está se saindo maravilhosamente bem, minha amiga, mas hoje é só o primeiro dia. Não se force mais do que precisa, pois amanhã haverá outras oportunidades, e depois, e no outro dia. Deus não criou o mundo num dia só, e você não vai superar tudo isso em uma única manhã.

— Acho que eu conseguiria ficar até o fim do dia, Renée. – e não era mentira; passado o ataque desagradável, sentia-me até bem, a despeito da dor no corpo.

— Sim, conseguiria. Mas estaria tão exausta que dificilmente poderia vir amanhã. Melhor ir para casa, descansar e se refazer. Até porque essas olheiras vão atrair perguntas.

Esfreguei o rosto com as mãos, reconhecendo a verdade, e então perguntei:

— Não... Meg e eu vamos à costureira, agora à tarde. Não vou privá-la de me importunar durante a prova do vestido. – num impulso, adiantei-me e abracei aquela amiga que tanto vinha fazendo por mim – obrigada, Renée. Por tudo o que tem feito... Pelo socorro que me prestou... Por ser minha amiga.

Senti o braço dela ao redor de meus ombros, e sua mão acariciando meus cabelos; segurou meu rosto entre as mãos, e sorriu:

— Eu é que agradeço, Christine. Você é uma criatura doce e de coração puro. O tipo de pessoa que vale à pena conhecer. – Beijou minha testa e então se afastou – Não lhe contei, mas tive uma filha, quando ainda era casada. A gravidez não foi até o fim, por motivos óbvios, mas... Ela teria quase a sua idade, se houvesse nascido. – os olhos de Renée tinham um misto de ternura e tristeza - Às vezes imagino como seria e, sabe... Eu a vejo em você. – ela deu um risinho nervoso – desculpe-me o sentimentalismo, não costumo ser assim.

— Você oculta bem o que sente – respondi – mas não é a rocha impenetrável que finge ser. – segurei sua mão – não sei quanta ajuda posso lhe dar, mas estou aqui, se precisar.

Ela sorriu e, suspirando, declarou:

— Agora sei por que Erik a chama de anjo. – então se afastou e, de repente, era a Renée que todos conheciam outra vez, com aquele ar atrevido e irreverente – Bem, tenho de voltar para minha sala, ou importunar o diretor... Aquilo que a oportunidade me aparecer primeiro. Meg está na sala de balé do último andar, e sua aula deve estar no fim.

Agradeci a Renée e fui para o último andar, fazendo o possível para me passar por despercebida em meu caminho, pensando no que ouvira de Renée: ela tivera uma filha, então... Uma menina que não conseguira viver, devido à brutalidade do esposo de minha amiga... A ideia me deixou triste, e comecei a conjecturar por que Renée, mesmo tendo Charles como amante, tinha aquela vida solitária; apesar da aparente alegria, o que eu via no fundo dos olhos azuis era uma grande solidão.

Encontrei Meg numa sala de Balé vazia, trocando as sapatilhas de dança por sapatilhas normais; ao me ver, seu rosto se iluminou com um sorriso e ela correu para mim:

— Christine! Como foi sua manhã?!

— Boa, eu diria. – respondi – embora não vá me lembrar de metade dos nomes que me foram ditos.

— Ah, leva algum tempo; são muitas pessoas para conhecer. – ela fitou o relógio – hey, está na hora do treino diário de Helène! Você não vai querer perder isso!

— Helène? – perguntei, curiosa.

— Uma das alunas. Mas você verá por si mesma.

Minha amiga praticamente me arrastou para outra sala, onde uma jovem mais ou menos da minha idade estava sentada à banqueta, tocando. Seu maestro, um senhor respeitável já de idade avançada, tinha uma pequena vareta nas mãos, e vez por outra a usava para dar um leve toque nos dedos da moça. Mas não estava batendo nela, como muitos professores faziam... Parecia antes um código entre ambos, aquele toque... E foi só quando nos aproximamos mais que compreendi: Helène era cega! Seus olhos pareciam normais, mas eram vazios e inexpressivos ao fitar o nada. E mesmo assim as mãos longas e delicadas dançavam sobre as teclas, ágeis, precisas, reproduzindo com perfeição a Rapsódia Húngara número 2, de Liszt. Seu rosto tinha a expressão de êxtase, como se ela não estivesse ali, mas sim perdida em algum mundo longínquo, arrebatada pelo poder da obra que tocava.

O arrebatamento da música me tomou: de repente não havia mais ansiedade, medo, lembranças ruins, desconforto... Havia apenas música! O compasso do piano tornou-se o ritmo de meu coração, cada nota era minha respiração, minha vida! A música era fluida, intensa, e eu a sentia do mesmo modo que podia sentir uma brisa conta minha pele; mas os sons não apenas me tocavam: penetravam meu ser, alcançando as profundezas de minha mente, envolvendo a alma em um palácio de cristal. Por detrás das pálpebras fechadas, as mais belas cenas se descortinavam, uma história contada pela composição... Abandonei-me completamente aos acordes, rendida, entregue; sentia-me tão leve que poderia flutuar, tão fluida que não possuía forma, ardente como uma chama viva, etérea como um raio de luar...

O silenciar da melodia foi um despertar suave, um lento tomar de consciência de ter um corpo, e não ser feita pura e unicamente de sons. Abri meus olhos com um largo sorriso, sentindo-me maravilhosamente bem ao aplaudir:

— Magnífico! – Helène virou-se no banco, de modo que pude observá-la melhor: cabelos dourados, olhos verdes, rosto arredondado e feições delicadas que ainda não haviam perdido totalmente os traços da infância. Era muito bonita, com um ar inocente que os olhos desfocados tornavam quase sonhador. – Suas mãos parecem possuir magia, senhorita. – como ela podia tocar tão maravilhosamente bem, se não enxergava? Que talento raro e magnífico, aquele!

— Obrigada – ela agradeceu, corando um pouco – com quem tenho a honra de falar?

— Ah, perdão: sou Christine Daae.

Helène se levantou com uma exclamação:

— Daae?! Ah, por Deus, já ouvi muito falar da senhorita! – sua voz era de genuína empolgação, e então apresentou o senhor ao seu lado – este é Monsieur Alençon, meu maestro.

O cavalheiro fez uma reverência, mas não tentou beijar minha mão, pelo que fiquei muito grata; metade da causa de meu acesso de pânico fora o número de senhores desconhecidos tocando meus dedos em um mesmo dia...

— Mademoiselle, é um enorme prazer.

Eu o saudei com uma reverência, mas Helène parecia entusiasmada, e logo interrompeu os formalismos:

— Christine, conceder-me-ia o prazer de acompanhar-me?

— Bem, creio que esteja um pouco destreinada, após um ano longe dos palcos... Não seria tão impressionante quanto o que acabou de fazer, aqui. – estando apenas em quatro pessoas no aposento, eu me sentia bem mais confortável.

— Se tudo o que diziam a seu respeito for verdade, sua modéstia é surpreendente. – insistiu ela – vamos, apenas uma ária! Por favor!

Tentei declinar, mas tamanha foi a insistência de minha nova conhecida, à qual se aliaram Meg e Monsieur Alençon, que não pude recusar.

— Conhece Casta Diva, da ópera Norma? – perguntei, uma vez que a ária era uma de minhas favoritas.

— É claro, Mademoiselle! – ela se virou de frente para o piano – maestro, o dó central, por favor? – Monsieur Alençon usou a fina vara para guiar o polegar direito de Helène até o dó central, a partir do qual ela encontrou as demais notas. Fiquei impressionada com sua habilidade, pois ela posicionou cada dedo sobre a respectiva tecla sem a menor hesitação! Quantos anos de prática isso não teria requerido? Mas a música se iniciou e, como sempre acontecia, todas as perguntas em minha mente silenciaram de uma vez, deixando apenas a beleza das notas que se sucediam uma após a outra, numa linguagem que muito poucos compreendiam. Minha alma tremulou, e minha mente se alçou com asas invisíveis a mundos que tão poucos conseguiam chegar.

— Casta Diva (Pura deusa)

Casta Diva, che inargenti (pura deusa, coberta de prata)

Queste sacre, queste sacre, queste sacre antiche piante (este sagrado e antigo ramo)

A noi volgi il bel sembiante (volte a nós seu amável semblante)

A noi volgi (a nós volte)

A noi volgi il bel sembiante (a nós volte seu amável semblante)

A Senza nube e senza vel (sem névoa nem véu)

Casta Diva (pura deusa)

Che inargenti (coberta de prata)

Queste sacre antiche piante (ramo antigo e sagrado)

A noi volgi il bel sembiante e senza (a nós volte seu amável rosto)

Tempra o diva (acalma-te, oh deusa!)

Tempra tu de' cori ardenti (acalma teu coração ardente)

Tempra ancora (acalme também)

Tempra ancora, tempra ancor lo zello andace (acalma também teu zelo audaz)

Spargi in terra (Espalhe sobre a terra)

In quella pace (A paz)

Spargi in terra (Espalha sobre a terra)

Spargi in terra (Espalha sobre a terra)

Che regnar, che regnar tu fai (pois reinas, pois tu reinas)

Tu fai in cie (nos céus)

Sustentei a nota final até morrer o último acorde do piano, e juntos desvaneceram-se no ar ambos os sons. Abri os olhos, e Meg me fitava com lágrimas nos olhos; Helène também vertia lágrimas, e o maestro sorria abertamente. Mas levei verdadeiro choque ao ver que, à porta da sala, um grupo considerável se amontoava a nos assistir, e começou a nos aplaudir. E naquele momento eu não senti medo das pessoas... Pelo menos naquele instante, saboreei aquela sensação que há tanto tempo não experimentava: a de ser eu mesma, outra vez. Naquele momento, eu era a menina sonhadora em sua estreia como cantora, realizada e plena, alheia a qualquer mal, tristeza ou dor. Cheia de alegria e quase eufórica, voltei-me para Helène e fiz-lhe uma pequena reverência, esquecida de que ela não podia me ver:

— Agradeço pela honra de cantar ao lado de tal virtuose. – Ela suspirou profundamente e respondeu:

— Agradeço pela graça de ter ouvido a voz de uma deusa da música. Nunca mais direi que uma voz é bela, se não a sua. – enrubesci e perdi momentaneamente a noção de como deveria agir, lisonjeada e tímida ao mesmo tempo. Então, falei para Helène:

— Creio que tenhamos uma plateia... – Ela sorriu e se levantou do banco, apoiando-se no braço do maestro para saber aonde ia:

— Então não os desapontemos – sua mão encontrou a minha com presteza surpreendente, para alguém que não enxergava, e imaginei que ela deveria localizar as pessoas por suas vozes. Mas não tive tempo de novas conjecturas, pois ela me puxou para uma reverência aos que nos aplaudiam, aceitando aquilo tudo como uma brincadeira. Em seguida manifestou-se com desenvoltura e diversão – agradecemos a esse público tão gentil, mas agora temos um ensaio a prosseguir! – e a suas palavras, a pequena multidão se dispersou. Foi então que Meg não apenas veio para junto de mim, mas praticamente me arrancou do chão com seu abraço apertado, suas lágrimas molhando meu vestido quando sussurrou:

— Você voltou! Ah, meu Deus, você voltou, Christine! – eu a abracei, compreendendo o que ela dissera: quando cantava, eu era eu mesma. Ao cantar, encontrava meu cerne, minha alma, aquilo que eu era no mais íntimo; aquilo que nenhuma violência ou medo podia mudar. Minha alma era música, e isso Raoul não me tirara. E quando cantara, fora minha alma quem se revelara completamente, íntegra, tão inteira e pura quanto fora desde a infância. Sim. Pelo menos ao cantar, eu voltava a ser eu mesma.