No dia seguinte

Madame Giry e Meg foram até a enfermaria do conservatório, onde encontraram a doutora Renée; estava entretida com um livro, mas o segurava de cabeça para baixo. Intrigada, Meg perguntou:

— Por que está lendo de cabeça para baixo?

Ao ver quem estava ali, a médica fechou o livro e riu, aliviada:

— Achei que era outra pessoa, e abri o livro sem nem ver o que fazia – ela deu de ombros – o administrador do hospital quer que eu faça a autópsia de um caso... Bizarro, por assim dizer.

— Caso bizarro? – perguntou Antoinette, que viera ali buscar a amiga para irem junta ver como estava Christine.

— Sim, veja que coincidência... – a doutora estendeu um jornal, no qual a principal manchete era “Visconde de Chagny é encontrado morto e mutilado diante dos portões da Ópera Garnier”. Antoinette empalideceu ao ver aquilo, por já imaginar quem seria o responsável, e a mulher loura continuou – Pelo que eu soube dos detalhes, ele sofreu muito antes de morrer. – e com ar irônico – quem faria algo assim?

Enquanto se punham a caminho, a médica pôs Antoinette a par do ocorrido, para desespero de Meg, que se perdia em náuseas: o corpo fora encontrado com o nariz e as orelhas amputados, os olhos vazados, dentes quebrados. Os dedos das mãos e pés haviam sido esmagados, as pernas e braços, partidos em vários lugares, a pele fora retalhada e, ao que parecia, ele fora castrado ainda vivo. O corpo fora encontrado empalado “por baixo” com uma estaca de madeira, que atravessara os órgãos até sair pela boca. Ao ouvir aquilo, Meg desceu do coche para esvaziar o estômago ao lado da estrada.

Chegaram cerca de meia hora depois ao belo sobrado, deixando os cavalos à sombra, diante da casa. Foi Louise quem as recebeu, pois Erik estava, como sempre, com Christine; a jovem criada, porém, tinha uma expressão incerta no rosto, e disse às visitas:

— Entrem... Tenho notícias sobre Mademoiselle Daae.

De imediato, o trio se pôs a ouvir, enquanto a jovem relatava.

Flashback

Louise se entretinha com um livro, após ter alimentado e posto a dormir a mulher de seu amo; tinha muita pena de Christine e, sendo mulher, nem conseguia imaginar como reagiria se passasse pelo que a outra passara... Devia ter sido terrível! Estava perdida em seus pensamentos, quando ouviu gritos no quarto: certamente a moça com pesadelos...

Ao entrar no quarto, viu a soprano encolhida contra a cabeceira, agarrada a esta, os olhos arregaladas encarando algo que só havia em seus sonhos, mas o terror no rosto jovem era real. Ela gritava e implorava:

— Não, Raoul! Por favor, pare! Está me machucando! Pare! Não! – e se debatia em luta contra um agressor invisível, chorando, em pânico.

A jovem criada correu em socorrer a outra, e segurou-a pelos ombros, chamando:

— Senhorita. Senhorita! – e ante a falta de resposta – Christine!

Ouvir o próprio nome pareceu despertar a moça, que parou de se contorcer e fitou Louise, muito assustada. Encolhendo-se contra o travesseiro, implorou:

— Por favor, não conte a Raoul. Não conte a Raoul... Eu não queria gritar... Não conte a ele que fui má!

A mais velha ficou intrigada, imaginando o que não deveria ser contado, mas lembrou-se de que a mente da outra estava muito perturbada. Gentil, segurou-lhe as mãos e falou:

— Não vou contar. Mas, de qualquer modo, ele não vai mais te machucar. Não estamos na casa dele. – e ante o olhar confuso de Christine, que parecia perdida – Monsieur Destler a salvou... Mas creio que, para você, ele seja apenas o Anjo, não é?

A soprano parou, fitando o nada, com olhos muito tristes, antes de falar:

— O Anjo não veio... Eu escolhi, e o afastei de mim... O Anjo não veio, porque não o mereço. Não mereço seu amor, não mereço sua atenção – ela abraçou os joelhos, chorando – sou uma vadia inútil. Ele nunca sentiria minha falta... Ninguém vai sentir minha falta – ela ergueu os olhos para Louise, e havia neles, enfim, alguma emoção além de medo e dor... Raiva – Raoul mandou que dissesse isso, não é? Ele quer me torturar ainda mais? Por que não me mata logo? – e baixinho, deixando-se cair para frente, sobre as mãos – Por que não me mata? Não mereço estar viva, mesmo...

Louise nunca sentira tanta pena de outra criatura; pôs a soprano deitada – ela estava letárgica e passiva, como se o rompante houvesse drenado toda a sua força de resistir - e falou:

— Isso não é verdade. Seu Anjo a ama, e só não está aqui porque teve de ir à cidade, a negócios. Mas ele a salvou; trouxe-a para cá, e cuidou de você por dias, até vê-la melhorar. Não saiu de seu lado enquanto a senhorita não recobrou as forças. – mas Christine parecia ter retornado ao vazio do qual saíra com o pesadelo. Triste, a mais velha meneou a cabeça, cobriu a outra e ia saindo do quarto, quando ouviu a cantora perguntar:

— É mesmo verdade? – sua cabeça não se movera, tampouco seus olhos, mas fora ela quem perguntara – ele me ama?

— Mais do que à própria vida. Ele a ama com toda a sua alma, e isso nunca mudou. – confirmou a moça, que vira todo o amor dedicado por seu patrão à moça ferida. Com cuidado, voltou para junto da cama e julgou que seria melhor dar os remédios à outra, para evitar novos pesadelos. Medicou-a, e ficou ao seu lado até vê-la adormecer, mas nenhuma outra palavra escapou aos lábios da soprano. Deus, como o Visconde quebrara de tal modo a mente daquela garota?

Flashback off

A doutora D’Albignon deu um sorriso, embora as Girys estivessem horrorizadas, e explicou:

— Se ela consegue reagir, ainda que seja com medo ou raiva, então significa que ela ainda está aqui! Meu medo era que ela não voltasse a interagir, mas essa reação mostra que sua mente ainda está íntegra, embora tenha sido muito abalada. Com tempo e tratamento, ela pode se recuperar totalmente! – havia enorme otimismo no rosto da mulher, que pediu a Louise – leve-me à senhorita Daae, por favor.

A moça obedeceu, batendo à porta do quarto, ao que uma voz masculina respondeu:

— Entre.

Abriu a porta, e Erik estava sentado junto à janela, tendo Christine nos braços. Ela estava desperta, sentada ao seu lado e, embora não falasse nem se movesse, parecia tranquila enquanto o músico penteava seus cabelos cacheados com delicadeza. Ele fitou as mulheres e deixou a escova de lado, dirigindo-se a Christine:

— A doutora D’Albignon vai examinar você. Quer voltar ao leito?

A jovem não respondeu. Tinha aquele mesmo olhar perdido, mas tampouco se debateu ou tremeu ao ser carregada de volta para a cama; Erik parecia preocupado e triste ao perguntar:

— Por que ela não reage comigo? Por que não me responde, se ontem falou a Louise?

— Precisa ter paciência, Erik. Os pesadelos certamente a fazem reagir, mas, quando está fora deles, este estado é o modo que a mente dela encontra para proteger a si mesma dos terrores. Deixe-a sentir-se segura, outra vez, e ela retornará, com o tempo.

O músico anuiu, e foi saudar as três recém- chegadas; beijou as mãos de Antoinette e Meg, mas, quando foi beijar a de Renée, esta deu um passo à frente e o abraçou, atrevida, antes de dizer:

— Precisa ser forte por você e por ela, porque ela já esgotou as próprias forças sobrevivendo a tudo isso. – e se afastou – vamos ver como ela está, fisicamente?

Com a ajuda de Erik, a médica examinou sua paciente, satisfeita em constatar a recuperação física veloz que ela tivera. Porém, quando tentou erguer a camisola da moça para ver o hematoma no ventre, Christine segurou sua mão, começando a tremer; segurava a mão da médica com tanta força, que suas unhas quase se enterravam na carne da outra. Compreensiva, Renée a olhou fixamente nos olhos e disse, com voz calma e serena:

— Christine, eu sei que está com medo, e confusa com tudo o que acontece, mas ninguém aqui vai te machucar. Está a salvo, mas precisa deixar que eu te examine. – a moça parecia não confiar nem um pouco naquelas palavras, mas acabou por obedecer, soltando a mão da médica. Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto da garota ao ser despida, e isso fez a mulher loura explicar – parece que ele a condicionou a obedecer. Ela não obedeceu porque confia em mim... Obedeceu porque teme uma punição, se não o fizer... – ela terminou o exame, vestiu a jovem de novo, e então virou-se para Erik, que havia ficado fora do campo de visão de Christine, para não constrange-la – precisamos conversar, Sr. Destler.

Ele anuiu e, levantando-se, foi até sua amada, secou a lágrima dela com um beijo no rosto, e acariciou a bochecha agora lisa e sem marcas, dizendo:

— Meu amor, eu volto daqui a pouco. – ele ia sair, quando a mão dela se fechou em seu braço, e ela sussurrou:

— Anjo...

— Sim – ele sorriu, abraçando-a e beijando sua fronte – sim, meu amor, sou seu Anjo. Fique tranquila, não vou deixa-la. Estarei bem aqui, para você. – e acariciado de novo o rosto receoso e perdido da moça – eu já volto, está bem?

Ela não reagiu. Apenas permaneceu reclinada nos travesseiros, sem fazer menção de puxar os cobertores para cima, o que Erik acabou fazendo, antes de sair do quarto. Ao se encontrar com Renée, do lado de fora, esta sorria:

— É comovente o modo como cuida da menina.

— Sempre cuidei dela... E nos únicos meses em que a tive fora de minhas vistas... Ele a quebrou deste modo.

— O que me leva ao que eu queria dizer – os dois se juntaram a Meg e Madame Giry, e a médica começou a explicar – não creio que o choque de Christine seja apenas por causa do estupro. Pelo que vi, e pelo que você me contou, Antoinette, creio que seja algo que se iniciou há bastante tempo. – ela olhou para Erik – sei do que se passou entre o senhor, o Visconde de Chagny e Mademoiselle Daae. Madame Giry me contou tudo. E foi com base nisso que entendi a situação da pobre menina: ela começou a ser pressionada ainda quando, pela primeira vez, viu-se dividida entre o senhor e o Visconde, Monsieur. A agressividade que demonstrou quando ela viu seu rosto, as exigências que fazia a ela, todos os assassinatos... Ao mesmo tempo em que o Visconde a pressionava a se afastar do senhor, a tomava sob sua “proteção” mesmo se não fosse esta a vontade de Christine... Ela se viu pressionada por todos os lados, e cada escolha que fazia machucava não apenas alguém que ela amava, mas a ela mesma. Isso foi piorando, à medida que sua situação se tornava mais e mais tensa. O estresse de um ano nesta posição minou as forças emocionais dela e, então, houve o trágico evento do incêndio, e a partida dela com De Chagny. – ela viu a expressão de desagrado de Erik – sei que não gosta de lembrar o fato, mas preciso mencioná-lo, para explicar o quadro dela. – e continuou – então, vieram os meses de abuso em poder do Visconde que, de acordo com Madame Giry, a mantinha quase como uma prisioneira. Mais uma vez, uma escolha trouxera muito sofrimento a ela. E quando escolheu dizer não, no altar, isso culminou com toda a tortura a que foi submetida. Eu creio que ela não esteja em choque: está apavorada. Cada escolha que fez a feriu de algum modo, então, sua mente se defende mantendo-a num estado passivo, onde não precisa fazer opções, onde sua vontade está anulada. Se conseguirmos fazê-la se sentir confiante o bastante, se pudermos incentivá-la a tomar decisões por conta própria, e ela vir que isso não a machucará, então... Então pode ser que ela se recobre. Que saia do casulo em que sua mente se pôs, e volte a ser ela mesma.

— Isso seria possível? – perguntou Erik, cheio de esperanças como uma criança ao ouvir uma boa notícia.

— Não seria. É possível. Mas não pense que será um processo rápido... Ela está se escondendo do mundo, envolta num casulo de aparente indiferença, onde simplesmente obedece aquilo que lhe é dito. Mas o modo como tentou resistir, quando a despi, me mostrou que a vontade dela não foi completamente anulada, e isto é ótimo! Ainda resta algo de sua personalidade, lutando para e libertar, e cada um de nós deve ajudar neste processo.

Erik, Madame Giry e Meg se alegraram com esta notícia: mesmo que levasse tempo, Christine voltaria para eles! Madame D’Albignon, porém, era muito profissional, e continuou seu trabalho perguntando a Erik:

— Ela está se alimentando bem?

— Sim. Louise tem feito caldos bastante substanciais para ela.

— ótimo. Mas, já que ela acordou, é melhor passar a uma dieta sólida. Já sabemos que o estômago dela não foi machucado pelo soco – Erik cerrou os punhos com força, ao se lembrar do enorme círculo preto no ventre de sua amada, quando a encontrara – ela pode comer normalmente, agora. E os sedativos... Apenas se ela tiver terrores incontroláveis. Não a queremos viciada neles, afinal.

— Sim, doutora. – concordou o Fantasma. – O que posso fazer para acalmá-la, quando tiver suas crises de choro, ou de pânico?

— O mesmo que Antoinette me disse que você fez, até agora: abraça-la, confortá-la, cuidar dela, cantar. É só o que se pode fazer.

Trocaram ainda algumas informações quanto aos cuidados com Christine, e as Girys foram para o quarto, ver a soprano, enquanto Erik e a doutora permaneciam na sala; Renée lançou um olhar de quem sabia algo para o homem, e declarou:

— Belo trabalho.

— O quê?! – perguntou ele, confuso.

— com o Visconde. Belo trabalho. Era o mínimo que aquele bastardo merecia. – ela revirou os olhos, parecendo conter a ira – machucar deste modo uma menina tão delicada... Você fez o que devia. O que um homem decente deve fazer.

Erik ficou atordoado por um segundo: a maior parte das pessoas julgava seus atos hediondos – até mesmo Antoinette – mas aquela mulher, que era quase uma desconhecida, elogiava o tenebroso assassinato que cometera! Como uma serpente sussurrante, aquela voz conhecida falou em sua mente:

“Eu disse que foi uma obra-prima”

— Quieto... – sussurrou Erik, intrigando a médica, que inclinou a cabeça para o lado e riu:

— É um homem estranho, Monsieur, confesso. Mas não parece nem de longe o monstro que o acusam de ser.

— Já cometi atos parecidos, antes, Madame. Não sou um santo. – respondeu ele, ríspido.

— ninguém é. Mas você não se esconde sob uma falsa civilidade. – ela se sentou atrevidamente no sofá, como se estivesse em casa.

— Talvez – o Fantasma sorriu de canto de lábio – Madame parece falar por experiência própria...

— Já cometi meus próprios erros. E já vi muitas pessoas boas cometerem atos terríveis, como vi pessoas terríveis cometerem atos nobres. O ser humano é complexo demais para ser dividido em “bom” ou “mau”. Exceto, talvez, aquele imbecil que Monsieur matou.

A médica se levantou, e Erik reparou nas cicatrizes que havia nos antebraços dela, deixados à mostra pelas mangas arregaçadas do vestido verde-claro. Marcas de queimaduras, ele podia apostar... E alguns cortes, também, mas já muito claros, como se houvessem sido feitos há muitos anos. Ela percebeu, e declarou:

— Não é gentil encarar as cicatrizes de uma pessoa, Monsieur – aquilo fez Erik corar, e desviar os olhos. Renée, então, sorriu e declarou que ia embora, uma vez que Meg e Antoinette certamente se demorariam. Erik a acompanhou, vendo-a ir embora com expressão confusa... Aquela médica era real, ou apenas mais uma alucinação sua?

Voltou para o quarto, e deteve-se à porta, surpreso: Madame Giry parecia ter conseguido arrancar algumas palavras de Christine! Mesmo confusa e assustada, a jovem sussurrara um abafado “mãe”, e sorrira timidamente ao ver a viúva e sua filha! Agora, Meg fazia trancinhas nos cabelos da amiga, enquanto esta tinha a cabeça deitada no colo de Madame Giry. Como parecia serena...

Ao ver o Fantasma no quarto, Madame Giry sorriu e falou:

— Christine, Erik está aqui. Seu Anjo da Música. – a menina se virou devagar, e o fitou, e pela primeira vez ele viu algo além de confusão e medo em seus olhos: ela o reconheceu. Reconheceu e, por alguns momentos, um lindo sorriso se fez em seus lábios, antes de seu olhar se anuviar, provavelmente com lembranças do passado. Ele foi até sua amada e, ajoelhando-se diante dela, perguntou:

— Lembra-se de mim, meu amor?

Ela nada disse, mas assentiu, com ar incerto que parecia dividido entre o receio e a alegria; compreendendo o receio que ela tinha de si, o músico tratou de acalmá-la:

— Fique tranquila, minha Christine: está segura, aqui. Eu nunca faria qualquer coisa para machuca-la, e ninguém aqui a feriria de qualquer modo. Está a salvo, meu doce Anjo.

Ela suspirou e, num gesto hesitante, tocou o rosto de Erik. Ele moveu o rosto, pressionando-o contra a palma macia, deliciado com aquele toque tão delicado; o gesto, porém, a assustou, fazendo-a retirar a mão depressa, com um murmúrio:

— Desculpe-me, eu... Eu não queria. Desculpe-me, desculpe-me – e começou a tremer, encolhida como se esperasse ser espancada. Madame Giry a acalmou:

— Não fez nada de errado, menina. Acalme-se, vai ficar tudo bem. – e então para Erik – ela precisa de ajuda para tomar banho, mas Meg e eu não conseguimos leva-la até o banheiro...

Em resposta, Erik se aproximou devagar e passou os braços respeitosamente por sob as costas e as pernas de Christine, carregando-a; colocou-a sentada na cadeira do banheiro, que levara para lá com este fim, e perguntou:

— Importam-se se eu a banhar?

Madame Giry deu de ombros, e anuiu: geralmente diria que não, mas Erik já banhara a jovem tantas vezes, que isso já não era relevante. Além disso, era o único que tinha força para pôr e tirar a menina de dentro da banheira. Delicadamente, de modo a não assustar a já traumatizada menina, a senhora perguntou:

— Christine, Erik precisa banhá-la. Você permite?

A jovem não reagiu, e poderia mesmo não ter escutado, não fosse o leve dar de ombros, e a expressão de resignação que se espalhou em seu rosto. Quando Erik começou a abrir-lhe a camisola, porém, uma lágrima escorreu, e a moça deixou escapar um soluço de medo. O Fantasma, mortificado, a fez erguer o rosto, e declarou:

— Não fique com medo. Eu tenho cuidado de você por todos esses dias; não a machuquei antes, nem vou fazê-lo agora. Mas preciso lhe dar um banho.

Ela não se moveu. Ficou inerte, o que fez Madame Giry pedir licença e deixar o recinto, acompanhada da filha, lutando para ocultar as lágrimas. Era duro para uma mãe, ainda que adotiva, ver sua filha daquele modo...

Não menos doloroso era para o Fantasma: ele vira Christine crescer. Vira-a passar de menininha atrevida e curiosa a uma jovem bela, gentil e talentosa, sempre ansiosa por conhecer e aprender, bastante recatada e, às vezes, de língua solta... E agora a via totalmente rendida, sem coragem sequer de defender a si mesma, ou o pudor que costumava ter. Colocando-a na água – cuidando para não deixar a perna engessada se molhar - ele sussurrou com raiva, mais para si do que para ela:

— Aquela bastardo, desgraçado Raoul quebrou sua alma...

Ouvir o nome de Raoul pareceu despertar algo dentro da moça; ela praticamente deu um salto para trás, agarrando-se à borda da banheira, tentando sair sem sucesso. Em pânico, gritava:

— Por favor, não! Não chame Raoul! Não, eu não fiz nada! Eu não fiz nada! – Erik tentou segurá-la, o que aterrorizou a menina ainda mais, fazendo-a arranhar e dar tapas no Fantasma, tentando se soltar – Largue-me! Pelo amor de Deus, não! Solte-me! – ela gritava e se debatia enlouquecidamente, enfiando a perna engessada na água, tentando desesperadamente sair dali. Quando os braços de Erik prenderam os seus e ele a abraçou, imobilizando-a, caiu num choro convulsivo – Por favor, não! – implorou – Eu fui uma boa menina... Não me entregue a Raoul. Por favor... – seus soluços eram incontroláveis – por favor, não deixe ele me machucar! Eu não fiz nada... Diga a ele que não fiz... Diga a ele...

Ao sentir o corpo dela amolecer – ela apenas soluçava, sem reagir – o Fantasma tornou seu abraço mais carinhoso e protetor, e a fez encará-lo:

— Ouça de uma vez, meu amor: ninguém mais vai te machucar. Ninguém. Está sob minha proteção, e não vou permitir que qualquer outro a toque, entendeu?

Em pranto ainda, ela anuiu, e o Fantasma começou a banhá-la, cantarolando baixinho ao ouvido da jovem. De repente, Madame Giry entrou no banheiro:

— Por Deus, o que houve?

— Ela ficou um pouco nervosa... – respondeu o músico – mas está tudo bem, Ann. Se quiser me ajudar com o banho dela, eu ficaria grato. – assim, enquanto Madame banhava sua filha, Erik somente a amparava, cantarolando baixinho para a jovem. A música a relaxou, e fez com que entrasse naquele estado letárgico e sem reação; porém, havia em seus lábios um esboço de sorriso, que tranquilizou o homem. Ele sentia a moça se encolher quando suas mãos tocavam o corpo dela, mas logo relaxava ao som de sua voz, de modo que, quando ele a tirou da água e a secou, a cantora estava quase adormecida. Mal percebeu enquanto era vestida, e posta a dormir. Apenas Madame GIry viu as lágrimas nos olhos de Erik, retidas, mas presentes. Como o pobre homem sofria!

— Meu amigo... Eu... Eu não sei o que lhe dizer.

— Tampouco eu sei, Antoinette. – respondeu ele, ajoelhado ao lado da jovem estática, talvez adormecida, sentindo seu coração despedaçado – ela entrou em pânico... Mal me reconhece... Eu preferia ver em seus olhos o medo e asco por mim, do que este olhar perdido e vago. Preferia ouvir gritos de raiva e insultos, a escutar seus gritos de pavor e seus pedidos para não ser machucada... O modo como ele a quebrou... – ele se debruçou sobre Christine, sentindo a mão da amiga em seu ombro – ela não merecia isso.

— Vamos dar um jeito, Erik. Ela vai se recuperar, você ouviu a doutora Renée. Mas precisa de tempo, para entender que não está mais em posse de – ela fitou a soprano, que tinha os olhos semicerrados – bem, daquela pessoa. Lembra-se de que você mesmo levou meses até recuperar a voz, quando o levei para o teatro? E até hoje não gosta que o toquem... Por quanto tempo não temeu e odiou as outras pessoas, Erik? Coisas assim deixam marcas, meu amigo.

— Sim... Deixam. – concordou o Fantasma, dando um beijo suave nos lábios de Christine e se levantando. Lembrava-se bem do quão apático ele mesmo ficara, aos treze anos, quando Antoinette o salvara dos ciganos. Passara alguns meses escondido nas sombras, com medo demais até para arriscar-se a roubar comida. Teria morrido se a amiga não lhe levasse o que comer, todos os dias... E agora, ele via Christine num estado bem parecido ao que ele próprio vivera... Mas ainda mais quebrada. Pois ele era duro e áspero, mas a soprano... Christine sempre fora gentil e delicada, e mais uma vez ele sentiu ódio ao pensar no modo sórdido como Raoul a ferira; porém, tratou de se recompor, e perguntou – onde está Meg?

— Conversando com a menina Louise. Elas se deram bem, ao que parece.

O Fantasma não respondeu; estava perdido em pensamentos demais para isso. Pensamentos sobre o que faria para trazer sua Christine de volta para si... E se algo poderia, de fato, fazê-lo.