Embora os planos originais envolvessem o grupo almoçar na casa do Fantasma e sua noiva, Erik convidou a todos para irem almoçar fora, num restaurante na Champs-Élisées. Foi uma surpresa geral, especialmente quando Christine se mostrou totalmente de acordo... Mas que tipo de feitiço havia sido lançado sobre aqueles dois?!

Além das Giry, de Madame D’Albignon e Louise Chanson, havia um amigo de Erik que Christine só conhecera de vista, em seus tempos de bailarina e Primeira Dama: Nadir, ou, como era melhor conhecido, o Persa. Viera acompanhado da esposa, uma jovem francesa de vinte e três anos, com a qual se casara pouco antes de todos os eventos na Ópera Garnier. E por mais que seus traumas ainda lhe falassem ao coração, o casal era tão gentil, e o próprio Erik parecia tão à vontade com ambos, que a cantora acabou por se sentir confortável, também.

Foram necessários dois carros para levar todos; Meg e sua mãe subiram no carro de Nadir e Celine Hayek – o Persa e sua esposa – enquanto Louise e Renée foram com Erik e a jovem cantora. Em meio a conversas acerca da noite anterior, não escapou aos olhos atentos de Christine o modo como as mãos da médica e da moça ruiva se tocaram por duas vezes, o que deixou a mais moça desconcertada e a fez imediatamente cruzar as mãos sobre o colo, levemente corada. O Anjo, se percebeu algo, nada disse, e a própria Renée parecia constrangida quando tocava por “acidente” os dedos da menina...

A despeito de tais ocorrências, os diálogos fluíam naturalmente, e estavam todos muito felizes ao deixar os carros no espaço coberto para os animais. O restaurante escolhido por Erik, como era de se esperar, era bastante elegante e refinado, construído em alvenaria e madeira envernizada, iluminado por velas em castiçais dourados, que juntos formavam um grande lustre central. Na fachada lateral voltada para a rua, grandes esquadrias de vidro duplo permitiam que os clientes vissem a rua sem, contudo, deixar entrar o frio do inverno. As mesas eram longas, de mogno envernizado e bordas arredondadas, cadeiras forradas de veludo verde-escuro. Tudo muito confortável e aconchegante!

Escolheram uma mesa próxima às amplas janelas duplas que permitia ver a neve caindo devagar na rua, e se sentaram numa das grandes mesas. A soprano e seu noivo se sentaram em uma das laterais, Madame Giry numa das pontas, ladeada pela filha biológica e pela adotiva; do lado de Meg estava Celine, e O Persa junto à esposa. Na outra ponta, Renée, e Louise sentada entre esta e o Fantasma.

Havia algumas outras famílias no lugar, e o leve burburinho das conversas permeava o ar; a ampla lareira acesa tornava o ambiente ainda mais aconchegante, e a jovem que os serviu tinha um sorriso gentil e amistoso. Tudo parecia perfeito! Até mesmo a ansiedade de Christine estava controlada, mantida longe pelo toque morno da mão de seu amado sobre a sua.

— Então, Monsieur Hayek – começou a soprano, em certo ponto da conversa – ouvi bastante a seu respeito, mas nunca imaginei que teria o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Não é sempre que se encontra um renomado jornalista, afinal.

O Persa sorriu e respondeu:

— Apenas Nadir, Mademoiselle Daae. A futura esposa de Erik, para mim, já é uma cara amiga.

— Seria muita intromissão minha perguntar desde quando se conhecem?

— Muito tempo – responderam os dois, em uníssono, o que rendeu um riso baixinho dos dois homens. Foi Nadir quem continuou:

— Há uns vinte anos, mais ou menos. Éramos só adolescentes, e seu noivo teve a cortesia de não matar o garoto bisbilhoteiro que caiu num dos alçapões da Ópera.

— Eu sou clemente. – declarou Erik, irônico – quando quero.

Todos riram baixinho das palavras do Fantasma, e Christine deitou a cabeça em seu ombro num gesto de carinho: queria que ele se sentisse amado por ela do mesmo modo que ela própria sentia o amor de seu noivo. Aconchegada no abraço dele, fitou discretamente O Persa e sua esposa: eram tão diferentes entre si – ele moreno de cabelos e pele, olhos esgazeados, barba negra e curta com alguns fios grisalhos, alto e de ombros largos... Ela pequena e delicada, a pele muito clara, exceto nas bochechas de um saudável róseo, similar ao dos lábios. Tinha cabelos ondulados de um tom dourado escuro, e longos cílios que emolduravam os olhos impecavelmente azuis. Uma perfeita bonequinha – mas pareciam tão felizes juntos! Não pôde deixar de pensar no quanto ela própria diferia de Erik, e no quão felizes vinha sendo nos últimos meses. A despeito dos pesadelos, terrores e traumas, ela quase agradecia pelas más escolhas e pelo horror que lhe ocorrera, pois duvidava que a menininha tola da Ópera pudesse ter sido realmente feliz com o Anjo da Música. Pelo menos, não do modo como era, hoje.

— Como tem sido o movimento no hospital, Renée? – perguntou Celine, entre um assunto e outro. A médica tomou um gole de seu vinho antes de responder:

— Bom, estou na área de emergências. Já me bastavam os acidentes do conservatório, como casos leves. Quis dar um pouco mais de ação à minha rotina, e comecei os plantões de emergência.

— Como tem estômago para isso, mulher?!

— Já vi muito sangue, na vida. – riu a doutora – e vermelho sempre foi minha cor predileta. – os outros talvez não houvessem percebido, mas Christine reparou no olhar breve, quase impossível de reparar, que a mulher mais velha lançou para Louise, com seus cabelos ruivos num tom quase sanguíneo. E embora nada perceptível ocorresse, Louise corou levemente; o olhar trocado entre Christine e Madame Giry mostrou que a senhora também percebera a situação, então trataram de desconversar:

— Bem, com o pouco movimento que têm tido as enfermarias do conservatório, aquilo deve estar um tédio, mesmo.

— Não diria isso, já que Christine e Meg adoram quebrar a monotonia com suas apresentações. –Renée riu – sabiam que algumas pessoas mudaram os dias de suas aulas ou visitas apenas para coincidirem com os dias em que vocês estão lá?

As duas adolescentes coraram intensamente, e Madame Giry repreendeu:

— Quer parar de provocar as meninas, criatura?!

— Só falei a verdade!

- Verdades que eu posso confirmar, pelo que ouço e vejo na redação – confirmou o Persa, com um sorriso – temos de filtrar a coluna artística, porque ao menos um redator por semana deseja usar a página para enaltecer ambas. Além, é claro, da jovem Heléne... Talento impressionante.

- É verdade que ela é cega? – perguntou Celine, curiosa.

- Sim, e toca melhor do que a maior parte dos pianistas que já conheci! – a conversa continuou seguindo, até que em dado momento Renée tateou os próprios cabelos, percebendo-os frouxos do coque de tranças que fizera.

- Com sua licença, amigos, preciso prender meu cabelo outra vez – ela sorriu – é um tanto rebelde. – e voltou-se para Louise, inocentemente – Louise, poderia me ajudar, por favor? Não sou muito boa em lidar com meu próprio cabelo.

A jovem ruiva duvidava muito haver algo que Renée não pudesse fazer por conta própria, mas aceitou; era, afinal, o pretexto que vinha procurando para falar a sós com a médica.

Madame Giry observou discretamente enquanto as duas iam ao toilette: tinha algumas suspeitas, mas intrometer-se na vida de Renée seria, no mínimo, indelicado, de modo que guardou para si os próprios pensamentos. Ainda assim, receava o tipo de consequência que o comportamento da amiga poderia acarretar.

O almoço continuou sem incidentes, todos saboreando os deliciosos pratos servidos e a bebida de excelente qualidade, Nadir e a esposa logo se integrando perfeitamente ao círculo de amizades próximas. Christine já não os encarava como estranhos, mas como amigos, e como poderia ser diferente, quando eles emanavam a mais pura amizade e simpatia?

- O que você faz, Celine? – perguntou a soprano, em dado momento – Erik mencionou que também era uma artista, mas em que área trabalha?

- Sou escritora. – a moça sorriu, levemente corada, e indicou o esposo – foi como conheci esta criatura. No começo eu escrevia com um pseudônimo masculino porque... Bem, dificilmente levam a sério uma mulher escritora. Achavam que eu apenas levava para a editora os manuscritos de um homem. Até o dia em que Nadir descobriu que era eu quem os escrevia. – ela suspirou, contendo uma gargalhada – Depois disso ele praticamente me obrigou a usar meu nome, e na época éramos apenas amigos.

- Correção, ela me considerava apenas um amigo – interrompeu o homem – eu já rastejava atrás dela há um bom tempo!

- Exagerado. – censurou a dama – eu nunca havia percebido, e você sabe.

- Claro que não, porque estava com o nariz sempre enfiado num rascunho, e não veria sequer um cavalo, mesmo se ele a atropelasse. – ele riu e beijou a cabeça da francesa – e por Alá, nunca mude seu modo de ser.

- É islâmico, Monsieur Hayek? – perguntou Meg, curiosa.

- De fato, Mademoiselle Giry.

- Mas então... Perdoe-me se a pergunta for muito indiscreta, mas... As mulheres islâmicas não usam um véu sobre a cabeça?

Foi Celine quem respondeu:

- Sou católica, Meg. Nos casamos nas duas fés, e cada um de nós segue seu próprio credo.

- Até onde conheci os persas – começou Erik – Nadir é um homem diferente dos demais.

- Eu sou único no mundo! – brincou o jornalista, erguendo um brinde – um brinde a esse grupo de pessoas inigualáveis que formamos, então!

Entre sorrisos e risos, iam erguer o brinde quando Christine interrompeu:

- Esperem: faltam Louise e Renée. – ela mordeu os lábios, preocupada – estão demorando demais! Irei ver o que houve.

Madame Giry quase estendeu a mão para impedir a filha, mas pensou o quão indiscreto isso seria... Bem, conhecendo Renée, ela não cria que a menina fosse presenciar qualquer coisa indecente, mas também não era uma boa ideia intrometer-se em qualquer conversa que a médica e a jovem criada estivessem travando. Ainda assim, fingiu que nada acontecia enquanto a menina ia até o toilette feminino.

Mal a mão da dama tocou o trinco da porta – convenientemente oculta atrás de um biombo – esta se abriu, revelando a figura muito pálida de Louise, que parecia claramente perturbada, enquanto Renée tinha o rosto ruborizado e constrangido. Preocupada, a moça morena perguntou:

- Está tudo bem? Demoraram tanto! – era claramente visível que não estava tudo bem, mas era direito das duas contar ou não o que houvera.

- Ah, sim! – respondeu a loura, retomando sua habitual atitude despreocupada – meu cabelo é realmente difícil de arrumar... Precisei soltá-lo inteiro e refazer o coque. Se Louise não me ajudasse, estaria até agora tentando tirar os grampos.

- Louise? – insistiu Christine, conhecendo bem a amiga.

- Está tudo bem. Eu apenas contei algumas lembranças a Renée e... Acho que fiquei um pouco emocionada.

- Entendo... – ela não cairia naquela mentira deslavada, mas não pressionaria ainda mais a outra – bem, voltemos à mesa? Estavam todos preocupados!

- Sim, claro – Louise deu o braço a Christine, e voltaram as três para a mesa. Ficou claro, porém, que algo realmente ocorrera, provavelmente uma discussão, devido ao clima tenso que reinou entre a médica e a moça ruiva.

O restante da refeição foi um pouco mais silencioso, não obstante o empenho de todos para manter a conversação animada. Fato era que a tensão que se apoderara das duas mulheres as quais haviam tido alguma conversa desconhecida parecera espalhar-se sobre todos. Assim, pouco depois subiram nos coches, e foram para a casa de Christine e Erik.

*

- Christine – Madame Giry tentou ser o mais discreta possível ao falar com sua protegida – reparou que Renée e Louise desapareceram outra vez?

- É claro. É impossível não perceber a ausência delas, uma vez que tudo fica quieto. – a soprano suspirou, tensa – algo está muito errado. Quando as encontrei no toilette do restaurante, Louise estava praticamente às lágrimas, e Renée bastante desconcertada.

- Eu não tenho liberdade para tanto, mas a menina é sua amiga próxima. Tente falar com ela.

- Tentei fazê-lo desde que chegamos, mas ela se esquiva como um gato.

A professora de balé comprimiu os lábios, preocupada, antes de responder:

- Darei um pretexto qualquer para irmos embora. Renée virá conosco, de modo que você e Erik ficarão apenas com Louise em casa – o Persa havia saído alguns minutos mais cedo.

- Não vou deixar minha amiga sair daqui sem saber o que ela tem. – declarou a moça, com ar determinado, o que fez a viúva sorrir ao lhe acariciar o rosto e cabelos:

- Tão determinada, quando decide algo... Não tem ideia de como é maravilhoso ver este olhar outra vez.

- Metade do que consegui recuperar devo a Louise, mãe. Não vou deixa-la sofrer sozinha, qualquer que seja o motivo.

- Eu sei disso. – Antoinette beijou a testa da filha adotiva – bem, esperemos que as duas retornem... – as palavras da senhora foram interrompidas pela voz de Mademoiselle Chanson:

- Não! Está bem?! Deixe-me em paz! – como um raio, a menina entrou na casa, vinda do jardim, agarrou o xale pendurado no cabideiro e saiu para a rua, sem ligar para a neve que caía. Ante o olhar atônito de todos, deu-se o irromper de Renée na sala a dizer:

- Louise, por favor, escute-me! – mas a ruiva já não a ouvia. Sem pestanejar, a jovem Daae pegou sua capa de inverno e a vestiu enquanto saía atrás da amiga, deixando a mãe adotiva, a irmã de criação e o futuro marido para cuidarem da situação com a médica.

- Louise! – seus passos escorregavam na neve semi-derretida sobre a terra, mas ela não diminuiu o ritmo antes de alcançar a outra jovem, que chorava copiosamente – pelo amor de Deus, Louise, o que houve?!

- Deixe-me, Christine! Deixe-me em paz! Chega, eu não... Eu não posso...

- Calma! – Ela abraçou a outra com força, deixando-a chorar até senti-la outra vez controlada – o que aconteceu, lá? Estava tudo tão bem e... Foi Renée, não foi? Ela te magoou? Machucou você?!

- Não! – exclamou a garota, horrorizada, mas então reconsiderou – ou melhor, sim... – e enterrou o rosto nas mãos – ah, eu não sei! Já não sei o que fazer de minha vida, o que será de mim... – Louise escorregou para o chão, e ergueu o rosto marejado de lágrimas para a amiga, que se abaixara ao seu lado, consolando-a – acha que estou louca, Christine?

- Louca? De modo algum, Louise! Você é perfeitamente sã! De onde tirou isso?!

- Eu não aguento mais, Christine... Não consigo mais... Eu tentei, eu juro! Mas não consigo...

- Acalme-se, querida, acalme-se – ela secou as lágrimas da outra – quer que eu leve você para sua casa?

- Não, por Deus, não! Meus pais não podem saber, nunca! Eles vão me trancar, eu sei! Se eles souberem... Ah, não! Não! – de imediato Christine compreendeu o que estava havendo, e fez a amiga se levantar, apoiando-a em seus ombros:

- Venha, vou te levar para minha casa. Vamos trocar esse vestido encharcado e sujo, e lá você pode se recompor. – Apertou o abraço – vai ficar tudo bem, querida. Venha, vou cuidar de você.

A passos lentos, a soprano levou a outra para casa. Entraram juntas e em silêncio; ante o olhar dos presentes, incluindo Renée, declarou:

- Agora não. Ela não está bem. – levou Louise para o banheiro do quarto de hóspedes e abriu as torneiras de água quente e fria. – Você está gelada... Tome um banho. Vou buscar um vestido para você, está bem?

Em silêncio a mais velha anuiu, despindo-se e entrando na água. Enquanto isso, a cantora pretendia ir até seu quarto, mas foi parada pelo quarteto na sala; Renée parecia desolada ao dizer para os demais:

- Eu não sei o que houve. – a médica estava muito vermelha – ela entrou em pânico! Não entendi nada! - ao ver Christine se preocupou – como ela está?

- Em choque. Mas o que aconteceu entre vocês, afinal?!

Renée parou, estática, e qualquer um podia ver que não sabia o que fazer, ou dizer.

- Eu não posso falar. Não sem a permissão de Louise...

- Você a beijou, não foi? – foi Madame Giry quem disse aquilo, e não num tom de quem esperava resposta. Perturbada, a médica respondeu:

- Não. Na verdade, foi o contrário. Ela me beijou. – ela ficou extremamente vermelha – olhem, eu preciso ir embora... – ela ia sair correndo, mas o braço de Erik a segurou:

- Não é uma boa hora para ficar sozinha, Madame. Tem nos ajudado muito: deixe-nos fazer o mesmo, agora.

- Ajudar? – ela tinha um tom irônico – ninguém pode me ajudar. Cuidem de Louise, que está transtornada, e deixem que eu me resolva sozinha.

- Ninguém está sozinho, Renée – Christine se aproximou sem olhares acusadores – eu sei o que está sentindo: vergonha, e medo de que a julguemos, como a maior parte o faria, mas... Olhe para nós! Nenhum de nós aqui se encaixa como “normal”: um assassino, as pessoas que o acobertaram, e uma mulher violada com fobia social... Como poderíamos julgar alguém?! – ela viu o espanto no olhar da médica, do qual começou a desaparecer a vergonha e o medo antes presentes - Você está apaixonada por Louise? Ótimo! São ambas excelentes pessoas, e que importa o que os outros dirão? Aqui você não terá julgamentos. – ela olhou para Madame Giry com uma advertência no olhar. – Fique, por favor. Espere que eu cuide de Louise, e acalme-se você também.

A médica tinha os olhos marejados de lágrimas quando fitou a pequena mulher diante de si, e declarou:

- Mais uma vez digo que Erik acertou em cheio ao chama-la de Anjo. – ela abraçou sua paciente e amiga – mas não posso ficar. Louise disse que me odiava, e nunca mais queria me ver... Não pretendo impor coisa alguma a ela.

Erik e Christine se entreolharam, cabisbaixos, e o Fantasma se manifestou:

- Certo... Mas permita-me acompanha-la até sua casa. Está frio para ir a cavalo, posso leva-la em meu coche. – e para as Girys – estendo-lhes o convite.

As três mulheres aceitaram, despedindo-se de Christine, que subiu em seguida para buscar um vestido para Louise, a cabeça a mil. Que situação inesperada! Mas é claro, ela entendia o medo tanto da mulher mais velha, quanto da garota: o mesmo medo que ela sentira de que descobrissem sobre sua violação. O mundo era cruel para com os que saíam do padrão estipulado como “normal”, e uma mulher apaixonada por outra seria motivo para trancarem ambas num sanatório.

Escolheu um vestido maior, que coubesse melhor na jovem mais alta, e desceu outra vez, para encontra-la abraçada aos joelhos dentro da banheira, chorando copiosamente. Com carinho, puxou uma banqueta e se sentou ao lado da amiga, acariciando os cabelos presos num coque:

- Louise... Como você está, querida?

- Estou tão confusa, Chris... – ela chorava e tentava limpar as lágrimas, sem muito sucesso, visto que outras afloravam logo em seguida – Por que não sou normal como outras pessoas? Por que não sou capaz de me apaixonar por um rapaz, como qualquer menina de minha idade? Eu sou anormal! Sou doente e, se minha mãe souber que isso está acontecendo de novo, vai me trancar... Num convento ou sanatório, não há grande diferença... Ah, eu odeio Renée! Odeio-a por me fazer amá-la, por trazer de volta essa doença podre que eu carrego...

- Doença? – sim, Christine sabia que as pessoas consideravam a homossexualidade uma espécie de loucura – Lou, apaixonar-se não é doença!

- Por outra mulher?! Não me diga que é normal!

- Você não se apaixonou meramente por uma mulher: apaixonou-se por uma pessoa digna, divertida, prestativa e bondosa! Ela ser mulher é meramente um detalhe, e o gênero de alguém jamais deveria ser motivo para um amor ser ou não aceitável. Amor é amor.

- Fala assim, mas é apaixonada por um homem.

- Um assassino com humor altamente variável, que me perseguiu e quase matou meu noivo anterior. Acha que meu amor por Erik é normal? Só pelo fato de ele ser um homem? – ela riu baixinho – e sabe o que é pior? Meu amor por ele é, sim, normal: porque amor, quando é recíproco não tem nada de anormal. Anormal é um casamento em que o homem maltrata sua esposa. É uma relação em que um dos dois se arrasta aos pés do outro, que apenas o humilha e despreza. – ela sentiu uma pontada de culpa ao mencionar isso, pois era bem próximo do que ela fizera a Erik, ainda que motivada por medo, e não desprezo – e essas coisas o mundo não enxerga como errado...

- Chris, eu não sei o que fazer... –Louise, abraçou a jovem morena, que não se importou com as roupas se molhando – estou tão dividida... E mesmo se eu tivesse coragem de aceitar, de ir contra minha família e sair de casa... O mundo sempre nos julgaria...

- Louise, ser “normal” num mundo doente não é necessariamente uma virtude. A vida que você tem é essa, e precisa aproveitar as coisas boas que lhe forem dadas. – e ante o medo no olhar da outra – mas disse que isso estava acontecendo “de novo”... O que significa já ter ocorrido uma vez. – um suspiro escapou aos lábios da morena, pensando em como ajudar a jovem – por que não me conta o que aconteceu? Não apenas naquele toilette, e no jardim aqui em casa, mas... Por que não me explica tudo? Pode se sentir melhor, depois.

Anuindo tristemente, a ruiva começou sua narrativa.

POV Louise - flashback

Minha vida foi o que se poderia chamar de absolutamente normal, até os quinze anos. Meu pai é um homem bom, e tem muito amor por mim e meus três irmãos, todos rapazes mais jovens que eu. Minha mãe, por outro lado, é extremamente religiosa, e nos punia a qualquer possível ideia de um pecado... Muitas vezes nosso pai segurava sua mão para impedir um castigo físico sobre um dos filhos e ela, como boa esposa cristã, obedecia. Mas quando não estava nos punindo, era uma boa mãe, também. Nos tratava com carinho a maior parte do tempo, e era uma vida razoavelmente feliz.

Quando fiz quinze anos, porém, fiz uma amiga: uma jovem de dezoito anos, Nicole; ela parecia uma brisa de primavera, com seus cabelos quase brancos de tão louros, olhos castanhos, a pele tão clara quanto a neve, salpicada de pequenas sardas no nariz e bochechas... No começo foi uma bela amizade, mas ambas começamos a desejar mais, a significar mais uma para a outra. Ninguém desconfiava, pois, como única menina da família, era esperado que eu tivesse uma amizade tão próxima com alguém que se mudara para a casa vizinha... E assim nos tornamos bem mais do que amigas. Era nosso segredo, aquela paixão escondida que só podia se mostrar no jardim, quando ficávamos sozinhas...

Mas o que é bom termina, e ao cabo de um ano os pais lhe encontraram um noivo, dizendo que ela já passara da idade de se casar. Nicole teve um acesso de raiva quando tentaram fazê-la se casar, e disse que nunca seria infiel à pessoa que realmente amava... E pessoas com raiva falam mais do que pretendem. Os pais dela ficaram horrorizados, assim como os meus. Fui arrastada para casa debaixo de golpes de cinta dados por minha mãe, que berrava e me xingava dos piores nomes... Pareceu durar muito tempo, mas creio que não tenha sido mais do que um ou dois minutos, antes que meu pai a detivesse, dizendo que já era o bastante. Ao contrário de mamãe, ele estava controlado, embora visivelmente decepcionado.

Enquanto minha mãe dizia furiosamente coisas como mandar-me para um convento, trancar-me num sanatório, declarando em alto e bom tom que eu era louca, pecadora, imunda e nomes menos possíveis de se relatar, meu pai falou comigo com paciência... Disse que eu agira muito mal, que algo assim era uma vergonha e uma abominação... Mas “compreendia” que meninas da minha idade eram curiosas, e que isso certamente era apenas uma fase, que logo passaria. Mandou minha mãe se calar, dizendo que eu não seria internada por uma mera curiosidade de menina, mas arrancou de mim a promessa de que não faria mais coisas assim... Prefiro nem lembrar o modo como meus irmãos escarneciam e me desprezavam, e nos meses que fiquei trancada em casa.

Pensei que nada podia ficar pior, até ler um dia o jornal da manhã: na página do obituário estava o nome de minha Nicole, que se enforcara para fugir à humilhação e desprezo da família... Meu coração pareceu ser esmagado, e chorei por semanas à fio, até parecer que não havia mais lágrimas em mim. Depois disso, curvei a cabeça á conveniência e nunca mais me aproximei de outras mulheres; às vezes, para satisfazer minha mãe, até mesmo comentava sobre um ou outro rapaz gentil, mas nunca senti algo por qualquer um deles. Nunca senti algo por ninguém, até Renée entrar em minha vida.

Ah, Renée... Começamos com a cumplicidade de duas pessoas tentando cuidar do mesmo paciente... Mas ela era tão divertida, engraçada, e ao mesmo tempo tivera um passado sombrio! Não sei quando aquilo se tornou amor... Talvez em uma das conversas a sós, ou durantes a inúmeras piadas... Talvez quando ela se revestia da máscara de médica profissional, e falava daquele modo técnico que me fascinava; pois, para mim, Renée era a prova de que – ao contrário do que eu ouvira por uma vida inteira – uma mulher podia se igualar a qualquer homem, ser livre e independente. Eu amei sua vitalidade, seu humor, sua força, sua bondade... E quando me apercebi, eu a amava por inteiro.

Durante semanas trocamos gracejos e indiretas tão polidas que mal poderiam ser percebidas como tais. Nas últimas conversas, por vezes nos tocávamos: mãos, cabelos, nada indiscreto. E durante aquele almoço de Natal, por várias vezes meu joelho se encostou ao dela, e nossas mãos se encontraram por sob a toalha. Criando coragem, escorreguei a mão de modo a tocar a perna de Renée, e foi nesse momento que ela se levantou para ir ao toilette, me chamando. Tive medo de ter passado os limites, mas não houve reprimendas ou rejeição... Ela conversava normalmente, falando sobre penteados e cabelos, e ocasionalmente suas mãos acariciavam meu rosto... Não consegui mais resistir, e puxei-a para mim, tomando seus lábios num beijo ardente!

Ela ficou tensa, a princípio, e tive certeza de que cometera a maior tolice de minha vida... Mas logo em seguida senti que era correspondida, e nos enlaçamos num beijo profundo, entremeado a abraços que estreitavam nossos corpos... Eu queria me perder e afogar naquele oceano de sensações maravilhosas, até me lembrar repentinamente da promessa que fizera a meus pais... Senti vergonha de mim mesma, ódio mesmo, e me afastei bruscamente. Foi nesse momento que Christine nos encontrou, e tentamos fingir que nada ocorrera.

De volta à casa de Monsieur Destler, nos desvencilhamos dos demais e fomos ao jardim... Ela se declarou, dizendo que estava apaixonada por mim, mas eu não queria ouvir aquilo! Não queria reviver o que passara com Nicole... Não queria mais amar, porque não queria mais perder ninguém, e assim comecei a lhe dizer que eu não sabia o que dera em mim, que fora um impulso estúpido, que não podia haver nada entre nós. Quando Renée me pressionou, pedindo que eu a ouvisse até o final, gritei que a odiava, e que nunca mais queria vê-la, e saí correndo para a rua. Foi quando Chris me alcançou e trouxe de volta.

Sentimentos rodavam dentro de mim, tão fortes que pareciam querer me esmagar de dentro para fora: amor, raiva, medo, decepção comigo mesma, vontade de fugir e de ficar ao mesmo tempo... Eu era um grande oceano de sentimentos confusos e revoltos como as ondas de uma tempestade, e não fazia a menor ideia de como reencontrar meu equilíbrio. Só havia uma certeza: eu amava Renée, e isso era a pior coisa que poderia me acontecer.