Made of Stone

XXXIII. Demônios diários de uma vida infeliz


— Alex?

Pisquei, só podendo enxergar a escuridão do meu quarto.

Eu estava grudado na cama, o suor tomando conta do meu corpo inteiro e, ainda assim, eu me sentia tremer dos pés à cabeça. Havia uma brisa estranha, provavelmente entrando pela varanda, apesar de eu ter certeza que havia a fechado.

Meus olhos dilataram quando percebi que o que me acordou foi um sussurro baixo do meu nome, em uma voz que soava infantil. Eu não via sinal algum de luz onde meus olhos podiam vislumbrar, o que queria dizer que a porta não estava aberta, então ninguém me chamava dali.

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Meu coração começou a retumbar forte no peito, ao passo que um calafrio me subia pela coluna e se concentrava na minha nuca, formigando pelo pavor do que estava acontecendo. Não me atrevi a olhar para qualquer lugar além do meu teto escuro, até ouvi-la novamente.

— Alex!

Por um instinto maior do que eu, com os olhos arregalados, apoiei-me nos meus cotovelos para focar nos pés da minha cama, de onde vinha a voz de criança. Senti meu corpo tremer ainda mais ao passo que todos os meus pelos eriçavam ao vê-la.

Lá estava ela, pequenina, vestida em branco, as mechas louras soltas.

Era tão pequena que sua barriga batia no alcance da cama, a pele tão pálida que parecia azul, a franjinha desgrenhada como se houvesse acabado de acordar e os olhos azuis cercados por aquela esclera branca que mais parecia vermelha dada a quantidade anormal de veias sangrentas. As pupilas azuis estavam foscas, os lábios estavam azulados e a garganta avermelhada por arranhões.

Quis chorar, mais uma vez, mas não pude. Estava assustado demais para isto. No fundo, me perguntava se eu sequer poderia vê-la com tantos detalhes no escuro caso estivesse acordado ou se sequer poderia sentir meu próprio corpo encharcado de suor e tremedeira caso estivesse dormindo.

Esperei que dissesse algo, mas quanto mais tempo ela passava em silêncio, me encarando, mais o pavor crescia no meu âmago.

— O que foi que você fez, Alex? — gritou ela, tão subitamente que meu corpo levou um sobressalto, naquela vozinha infantil de seis anos. Mas aquela fala não era dela, e no minuto que eu me dei por conta disto, ela repetiu, desta vez, com uma voz grossa de homem adulto: — O que foi que você fez?!

Levantei em um pulo, aterrorizado, e corri para longe da cama.

Tentei abrir a porta, mas toda vez que minha mão alcançava a maçaneta, era como se minha pele apenas encontrasse ar, atravessando-a. O desespero cresceu em mim, ao passo que minha respiração pesara tanto que eu fui forçado a tossir, um som aumentando de volume no meu ouvido como a canção aterradora de um filme de terror.

Em seguida, senti um empurrão forte no peito e caí para trás. Senti minhas costelas reclamarem pelo feitio e tossi mais uma vez, levando minha mão a ele e esfregando-o, podendo sentir meu coração querer escapar dali pela minha boca. Ela se aproximou e sentou no meu estômago, as pequeninas e gorduchas mãos ainda estendidas na minha direção.

Comecei a chorar alto, implorando por perdão mais uma vez, mas ela não me respondia. A súbita constatação de que eu estava dormindo me atingiu com força e eu quis me forçar a acordar com afinco, mas não funcionava, e eu soube que teria que passar por aquilo de novo.

Suas mãos pequenas e gorduchas afundaram no meu peito dolorido. Choraminguei, sentindo sua mãozinha passar pelas minhas costelas e alcançar meu coração, esmagando-o lentamente.

Me senti morto, mais uma vez, e desejei assim estar.

Fechei os olhos, pensando que finalmente iria unir-me a ela, mas tão logo aceitei meu destino, me peguei acordando com brusquidão.

Vislumbrei um par de olhos azuis, semelhantes às bolas de gude que havia visto por último, antes de fechar os olhos. A única diferença é que estes demonstravam a vida, enquanto os grandes e foscos olhos azuis dos meus sonhos gritavam a morte.

— Alex?

Com um pulo, impulsionei meu corpo para trás, sentindo os ombros e a cabeça baterem na parede. Minha garganta arranhou e percebi haver gritado, a voz sumindo tão logo quanto a imagem da criança dos meus sonhos.

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Pisquei, a respiração pesada, ao encarar os olhos arregalados e preocupados da minha mãe, que sussurrou meu nome, provinda de cima de mim.

— Alex, tá acordado?

Demorei um pouco, devido ao meu estado assustado, para perceber que eu me encontrava no corredor do segundo andar, do lado de fora do meu quarto, atirado no chão.

Minha mãe estava na minha frente, vestida com uma camisola de dormir, os cabelos loiros bagunçados e o rosto inchado devido ao fato de recém haver acordado. Ela estava agachada na minha frente, tinha a mão delgada no peito, como se para acalmar-se, e seguia me encarando, esperando que eu acordasse por completo.

Coloquei a mão no meu peito também, para garantir que seguia intacto, ao me apoiar na parede e levantar-me devagar, a tontura fazendo latejar minha cabeça. Eu podia literalmente sentir as batidas do meu coração como se eu o estivesse tocando, de tão fortes. Meu peito subia e descia com rapidez, e minha respiração estava alta até mesmo para mim.

Tossi em seguida, sentindo a garganta doer, e engoli em seco, sob os olhos da minha mãe.

Olhei para os lados, tentando me localizar e entender como cheguei aqui. Apenas então vislumbrei a figura esguia do meu pai atrás da minha mãe, na porta do seu quarto, com os olhos escuros presos em nós. Também usava um pijama e tinha os cabelos escuros amassados, e também havia uma ruga entre suas sobrancelhas.

Se eu não o conhecesse o suficiente, diria que está preocupado, mas a irritação no seu olhar disse o bastante sobre onde sua preocupação jazia: no fato de ter mais um problema relacionado a mim.

— Você tava dormindo — explicou ela, a voz mansa, mas tomada de preocupação, fazendo-me voltar a atenção para o seu rosto. Os olhos azuis seguiam alargados. — Tava tendo um pesadelo — continuou, pesar em sua voz. — Eu queria te acordar, mas achei que seria pior.

Passei a mão trêmula pelo meu rosto, sentindo-o grudento pelo suor, como se minha pele fosse desfazer-se ali mesmo. Assenti, incapaz de dizer qualquer coisa.

Seria mesmo pior se ela tentasse me acordar me tocando.

Não há nada explicitamente de errado em tentar acordar alguém com sonambulismo quando percebe que a pessoa está tranquila, ainda mais se já sabe o histórico dela, embora o melhor seja deixá-la passar por isto. Mas acordar alguém, especialmente uma criança, em um terror noturno pode gerar um choque de realidade muito grande em alguém que já está aterrorizado.

O melhor é esperar que volte a dormir ou tentar chamar seu nome algumas vezes. A maioria sequer se lembra do que sonhava quando estava passando pelo episódio, como se jamais houvesse acontecido.

Sei disso porque fomos ensinados e instruídos muitos anos atrás.

— Não vejo você ter terror noturno desde que era criança — continua ela, na ausência de algum som meu além da minha respiração falha, um tanto assustada. — E você... Você tá longe da sua cama.

Pisquei, olhando para o meu lado, onde minha porta estava aberta, de onde eu provavelmente havia acabado de sair. Aquilo era mesmo estranho.

Eu estava tendo um episódio de sonambulismo ou de terror noturno?

— Pois é — respondo, a voz rouca, meus sentidos voltando aos poucos.

— Alex...

— Não — interrompo, sabendo o que ela está pensando.

As rugas de preocupação que tomavam seu rosto, a forma como estava encolhida, com a mão no peito e os olhos arregalados diziam o suficiente. Mas eu não sou mais criança e isto não é mais um problema, foi só uma exceção bizarra com a qual eu podia lidar sozinho.

Me recuso a ser centro de atenção dos meus pais novamente, ainda mais com este tipo de atenção.

— Só me diz — insistiu ela, rapidamente, me impedindo de dar as costas. — É a primeira vez que isso acontece desde que era pequeno?

Relanceio suas costas, mas meu pai já havia voltado a entrar no quarto de casal, me deixando nas mãos dela mais uma vez. Evitei um suspiro, voltando os olhos para ela.

— Sim — minto, para cortá-la.

Ela assentiu, mecanicamente, ao piscar algumas vezes. Em seguida, seu lábio inferior tremeu e eu franzi o cenho quando a vi encher os olhos d’água.

— Você disse... — balbuciou, os olhos piedosos. — Você tava dizendo...

Meu corpo inteiro retesou, parecendo despertar-me por completo.

— Não quero saber — interrompi, com rapidez, e quando ela fez menção de abrir a boca de novo, prossegui: — Já posso ter uma ideia e não quero saber — finalizei, em um tom rude, antes de dar as costas.

— Alex!

Não lembro o que exatamente eu estava sonhando mas eu não precisava ser vidente para ter uma noção.

Fecho a porta do meu quarto e acendo a luz, fazendo uma vistoria rápida para me certificar de que não havia nenhum vislumbre do fantasma da minha irmã por aqui. Suspirei, fechando os olhos e me apoiando na parede quando percebi que não, esfregando o rosto. Embora o fato do vidro que levava à varanda realmente estar aberto, mesmo eu havendo fechado antes de dormir, houvesse me alarmado um tanto.

Saber que eu havia deitado na minha cama e acordado em outro lugar da casa, sem qualquer lembrança de havê-lo feito, era uma sensação horrível e eu não desejo a ninguém. Ter que gritar para poder despertar de um pesadelo incluso.

Sinceramente, era uma sensação que eu não tinha desde criança e não sentia falta. Acontecia na época em que eu tinha episódios de sonambulismo, dos quais eu nunca me lembrava, mas dava para ter uma ideia quando acordava em outro lugar da casa ou quando, nas primeiras vezes, eu era acordado abruptamente por meus pais.

Pesadelos, sonambulismo e terror noturno eram as comuns parassonias que me assolavam a infância depois da morte da minha irmã. Não eram incomuns para uma criança passando por tanto estresse e por luto, e depois de algumas medicações e cuidados, esses distúrbios deviam ter ido embora.

Até parece!

Eles acontecem quando estou dormindo, então não posso saber ao certo se realmente pararam para então retornar, ou se eles só diminuíram de frequência. E não é como se houvesse alguém prestando atenção em mim o suficiente para saber.

O que eu sei é que, nos últimos anos, eu acordei algumas vezes de cara com a parede ou deitado na varanda. Também sei que foram três vezes as que eu berrei até acordar, uma delas encolhido debaixo da minha mesa, sem lembrança do que sonhava. Esta havia acontecido nos primeiros dias de aposta, assim como o dia em que acordei deitado na varanda, jurando que era minha cama.

Mas esta era a primeira vez, desde a infância, em que eu me encontrava em algum lugar fora do meu quarto. Era incomum que algo assim acontecesse se não relacionado com sonambulismo, mas a evidência de terror noturno estava ali.

Cocei o pescoço, com irritação, antes de correr para debaixo da minha cama, puxando a minha caixinha de madeira com os maços de cigarro e restante de maconha. No entanto, como esperado, não restava nada além da erva e não era dela que eu precisava. Talvez, ainda, me causasse alucinações como da última vez.

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Levantei, com um suspiro, largando a caixinha de lado, e congelei no lugar.

Aquilo...

Senti as batidas no meu peito aumentarem de velocidade e de intensidade ao passo que criava coragem para olhar para o espelho ao lado da minha cama mais uma vez. Meus olhos haviam perpassado por ele, sem qualquer importância, quando eu podia jurar que havia...

Girei o rosto com rapidez, focando os olhos no espelho, mas apenas encontrando o reflexo do guarda-roupa, para onde ele estava apontado.

Deixei um suspiro pesado escapar, a leveza do alívio mal cabia no meu corpo.

Esfreguei os olhos, forçando a ignorar o que havia acabado de ocorrer, antes de correr para a minha cômoda. Abri as gavetas, quase desesperado, tropeçando no meu calçado e jogando-o longe pela irritação, antes de encontrar um maço com dois cigarros dentro.

Apenas quando os vislumbrei me dei por conta de que meu tempo de aposta não havia acabado ainda. Deixei-me desabar no tapete do quarto, cerrando as mãos trêmulas com força, esperando que suco de laranja* fosse o suficiente para que eu não me declarasse um perdedor.

Uma semana nunca se arrastou tanto na minha vida.

*

Era quinta-feira, por fim.

Caminhei em direção ao colégio, sentindo-me pesado, depois da pior semana que tive em muito tempo. Foram horas e mais horas de insônia, de tremedeira, de dor de cabeça constante, de ansiedade até os nervos. Horas de pesadelos dos quais eu não podia ou conseguia acordar, alguns estranhos e bizarros episódios de parassonias, e ausência de café ou álcool porque eles só estimulavam a fissura por nicotina.

E o pior de tudo: a irritação.

Eu ainda podia senti-la, rastejando pela minha pele, como milhares de formigas. Sentia que minha alma tinha escapado do corpo, que eu carregava mais de cem quilos nas costas, que eu havia desenvolvido algum problema de visão devido a constante tontura. Havia comido tanto nos últimos dias que tive mais episódios de azia do que horas de sono - ou melhor, horas de pesadelos.

Mas a teimosia é grande e o orgulho, maior ainda.

Uma aposta é uma aposta, e eu não tinha permissão minha de perder.

— Eita, porra! — exclamou Mary Jane, assim que me avistou, quando sentei ao seu lado na sala de aula. — Pela cara destruída, vou chutar aqui que conseguiu não fumar até agora — constatou, me cutucando com diversão.

Revirei os olhos, exausto, mas assenti em resposta, me debruçando sobre a classe, com os olhos focados no rosto delicado de Mary Jane. Ela sorriu, levando uma das mãos para tirar os fios do meu cabelo, já pedindo por um corte, da frente dos meus olhos.

— Tão ruim assim? — perguntou ela, com um tom de piedade.

— Pior — resmunguei, com um beiço.

— Pobrezinho — constatou ela, mas sorria mesmo assim, os dedos finos acariciando meus cabelos desgrenhados.

Sorri de volta, fechando os olhos para apreciar o gesto incomum.

Havia um tempo em que qualquer demonstração de carinho provinda de Mary Jane me deixava enojado e me fazia querer pôr uma ordem de restrinção entre nós dois. Meu estômago embrulhava toda vez que ela me beijava, me abraçava, segurava minha mão, e eu lutava contra todo o mais primitivo em mim que me pedia para ter a infantil reação de empurrá-la para longe. Literalmente.

Mas o mundo dá voltas.

Quem diria que, depois de tudo o que aconteceu, ela seria a única pessoa da minha antiga panelinha a estar ao meu lado?

No dia em que me assumi para todos, no começo do ano passado, eu já sabia que a MJ não iria me arrancar do armário. Eu havia conversado com ela logo que cheguei no colégio e a impedi de entrar na sua sala de aula, diferente da minha naquela época, querendo ouvir se ela havia espalhado rumores sobre mim por aí.

Você acha mesmo que eu faria isso?

O tom de sua voz, extremamente magoado e enfurecido, foi o suficiente para que respondesse a própria pergunta. E também o suficiente para que eu percebesse que havia pisado na bola.

Só que sabe, aquele medo aterrador de que todos soubessem sobre mim e aquilo chegasse aos ouvidos dos meus pais de alguma forma, me comeu por semanas o suficiente para que eu já estivesse aprendendo maneiras diferentes de lidar com aquilo. No fim, da boca dela, descobri que essa minha empurrada para fora do armário, tão aterradora, não iria rolar como achei que fosse. Mary Jane não seria aquela antagonista de filmes norte-americanos a quem eu poderia culpar e eu não seria uma vítima neste contexto, traído por uma suposta amiga por pura vingança.

Haha, Alex, você assiste muito filme adolescente!

Acontece que aquela ideia assustadora, no fundo, trazia um certo alívio. Essa de haver um vilão, e eu ser a vítima, e de ser jogado para fora do armário por outra pessoa - já que, de certa forma, eu já estava escudado para sair de lá. Eu já sabia que, no fim, meus pais acabarão descobrindo sobre mim. Eu já sabia que eu não sou o tipo de pessoa que vai conseguir ficar a vida toda em silêncio. Eu sempre soube, na verdade, que iria sair de casa aos dezoito, dar no pé e não dar satisfação a ninguém a respeito. E então, quando acontecesse, sequer importaria se minha mãe quisesse me arrastar para ser purificado em uma igreja ou se meu pai gostaria de me bater até que minha sexualidade estivesse tão deformada quanto a minha cara para se passar por hétero.

Se eu fosse jogado para fora do armário, se eu fosse a vítima de um vilão - ou de vários deles, considerando o tipo de família que eu tenho -, eu teria toda a desculpa do mundo para continuar um covarde e não haver, por conta própria, decidido tomar esse passo.

Mary Jane acabou com o meu plano interno e só quando ela fez isto é que eu percebi a existência dele. Indiretamente, ela acabou me fazendo ter uma das poucas atitudes corajosas que tive na vida e abrir a porta do imundo armário no qual vivia sufocado. E assumir a responsabilidade das consequências disto que, por sorte, até agora não vieram. Ao menos, não por parte dos meus pais.

— Me desculpa — pedi, vendo que ela me direcionou um olhar confuso e divertido.

— Ué?

Suspirei, levantando o rosto, já amassado de haver ficado meia hora da aula com ele deitado por sobre meu braço, e esfreguei-o rapidamente. O professor preguiçoso havia, para variar, nos direcionado uma tarefa para fazer em aula para que ele pudesse passar o resto dela finalizando a leitura de um dos livros que originaram Game of Thrones.

— Eu sei que você já me desculpou por haver te enganado quando a gente se conheceu — mencionei, e ela revirou os olhos puxados pelo súbito assunto. Soltei um riso, mas continuei, pensativo: — Mas eu nunca pedi desculpas por haver pensado que você me faria algum mal.

Ela inclinou-se na minha direção, com outro suspiro.

— Alex, olha, eu já assisti histórias de aceitação o suficiente para saber como funciona — mencionou outra vez, sobre as ditas cujas das séries BL que ela assiste. — Eu sei que tem gente que realmente faz coisas assim por se sentir traída e ter zero empatia com a comunidade LGBTQIA+. É diferente comigo — falou, colocando a mão no peito — porque eu também faço parte dela. E eu te entendo, mesmo que eu ainda esteja no meu próprio processo de aceitação.

— Eu sei — concordei, com um sorriso mínimo. — Mas eu não falo disto. Eu podia estar com você por interesse próprio, mas isso não me impedia de te ouvir e te conhecer. — Pela sua expressão, percebi que ela entendeu onde eu queria chegar. Desviou o olhar rapidamente. — E, pela expressão que você fez naquele dia, eu soube que fui um babaca. Você tava mais do que ofendida, parecia confusa sobre como eu havia chegado à conclusão de que sequer cogitaria me apunhalar pelas costas. Uma coisa é haver te enganado e não ter tido interesse em estar contigo de verdade, outra bem diferente é não ter sequer prestado atenção no que você dizia ou em que tipo de pessoa você é.

Quando estava com ela, havia um muro que eu erguia só para isto, construído especialmente para que eu jamais tivesse qualquer tipo de conexão com ela. Mais do que não querer que ela encostasse em mim, eu sequer queria ouvir sua voz ou ver seu rosto em detalhes. Eu associei a imagem dela a tudo que eu devia querer, sentir ou ser nessa vida, tudo o que me era imposto pela sociedade, pela minha família, e até pela parte internamente preconceituosa dentro de mim.

Mas ela nunca teve culpa disso.

— Eu só... — Pigarreei, percebendo haver tornado as coisas estranhas. — Você tem feito muito por mim, MJ, e eu sinto que não fui o suficiente para merecer. Nunca tive a chance de me desculpar por aquilo, e queria fazer isto agora.

Um sorriso espalhou por seu rosto ao passo que ela balançava a cabeça de um lado para o outro, estalando a língua em seguida. Ergueu os olhos para mim e assentiu.

— Que bobo — falou, dando um tapinha no meu braço. — Faz mais de meio ano que a gente é próximo e você vem se desculpar por isto só agora? — Estalou a língua mais uma vez, jogando os cabelos lisos para trás. — Isso é passado. Você me conhece de verdade agora e eu também te conheço bem. Mas... — Me olhou pelo canto de olho, dando um sorrisinho fofo. — Obrigada.

Por nada, dongsaeng*.

Ela revirou os olhos. — Já disse que não se usa assim!

— Mas assim é fofo.

Terminamos a tarefa designada rapidamente - ok, MJ terminou rapidamente por nós dois - e passamos o restante jogando conversa fora com o que restava de energia no meu corpo. Os cafunés dela, ora ou outra, traziam um resquício de calmaria e sono dentro de mim, mas nunca durava muito, porque meu emaranhado de pensamentos despertava o nervosismo outra vez e a insônia acordava junto.

No intervalo, encontramos com todos os demais. Naquela altura, meu corpo era uma casca e minha alma estava em algum lugar vagando pelo pátio do colégio.

Ao menos, tive o prazer de ver os rostos surpresos por eu haver chegado até ali sem fumar. Faltava só minutos para que eu completasse a semana longe da minha amada nicotina, finalmente. Descobri, no meio da conversa deles sobre o assunto, que haviam apostado em cima da minha aposta.

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A cara de pau desses filhos da puta!

Foquei os olhos em Caleb e estreitei-os.

— Você também?

As orbes verdes alargaram-se e ele negou, balançando a cabeça de um lado para o outro, feito o neném que sempre foi.

— Não, eu disse que você conseguiria — afirmou ele, com um sorriso um tanto sem jeito. — E eu não apostei!

Assenti, mordendo os lábios para não mordê-lo.

— Devia ter apostado — brinquei, vendo-o piscar lindamente. — Perdeu grana.

Caleb fez uma careta, mas eu apenas ri.

Para ser sincero, nem eu mesmo acreditava que conseguiria vencer a aposta, não se eu realmente parasse para pensar a respeito. É óbvio que eu sabia que possuía um vício relacionado ao cigarro, eu sei disto já faz um bom tempo. Mas saber é bem diferente de sentir na pele o mesmo vício do qual eu tinha conhecimento quando não pudesse saciá-lo.

Foi bem mais difícil do que eu supus.

Quero dizer, eu cresci a vida inteira me privando de todas as coisas que eu queria, que eu sentia, que eu sabia sobre mim. Já é costume ter que engolir o ímpeto de saciar meus desejos, meus vícios, minhas vontades, e pior ainda: engolir tudo em seco.

Isto vale para até mesmo agora. Ter há alguns passos de distância algo que eu quero tanto possuir, como se minha vida dependesse disto, mas não poder sequer virar em sua direção.

Logo, me privar do cigarro era para ser uma tarefa costumeira, se for pensar a respeito. Acontece que esse prazer é um dos únicos ao qual me dou ao luxo durante minha vida toda e adicioná-lo às coisas das quais tenho que cortar da minha vida foi devastador. Eu sabia que era viciado, mas não pensei que isto afetasse tantas áreas da minha vida, a ponto de desestabilizar tudo com sua ausência.

Esfreguei os olhos, parecendo haverem ressecado pelo tempo sem dormir.

Estávamos em torno do chafariz costumeiro e já havia passado das dez da manhã, o que queria dizer que meu tempo de aposta literalmente chegava a um fim, junto do próprio intervalo entre as aulas. Todos estavam conversando, mas eu mal conseguia prestar atenção em nada além dele.

Seus olhos estavam um tanto inchados pelo sono que parecia não haver sido lavado de seu corpo a manhã toda. Ele usava sua camisa favorita debaixo da jaqueta do colégio, e eu podia ver o vislumbre das cordas de um pingente no seu pescoço. Havia uma pequena mancha acinzentada em seu rosto, como grafite, mas limpá-la seria estranho nas circunstâncias atuais.

Eu me declarei para esse garoto.

Havia sido a terceira vez na minha vida que eu disse que gosto de alguém, a segunda vez em que era sincero e a única vez em que senti algo tão puro.

Às vezes, me batia uma vontade imensa de chorar só de olhar para ele. Não era tristeza, nem amargura, nem desesperança. Não era nada ruim. Era uma pulsação viva de energia, tão inofensiva, tão inocente, tão pura, que tudo o que parecia fazer era acariciar minha pele, abraçar meu corpo e encher meu coração de amor.

Eu sinto que, se algum dia eu chegar a ser completamente submerso em podridão, o que eu sinto por Caleb jamais será sequer tocado por ela. Eu posso ser preto e branco em uma mistura acinzentada da cabeça aos pés, mas o sentimento dedicado a ele sempre será colorido.

Desviei o olhar para nossos amigos quando percebi que meus olhos não saíram dele esse tempo todo. É por isso que as orelhas dele estão vermelhas?

Confirmei minha pergunta ao perceber que ele evitava direcionar os dois mares verdes para mim.

"Nada de me olhar dessa forma", eu havia implorado, mas vê-lo tentar desempenhar essa função com tanto afinco não é fácil. E ver que ele falha é pior ainda, porque faz minha cabeça ir para lugares arriscados. Me faz questionar se ele realmente não sente o mesmo que eu, se realmente não sente mais do que atração para ser tão forte assim a ponto dele sequer conseguir esconder.

Porém, como se despertasse ao ouvir meus delírios apaixonados, a vozinha na minha cabeça começou a soar com rapidez para destruí-los.

Como pode questionar os sentimentos dele se ele já confirmou que não sente o mesmo? Quantas vezes mais esse garoto precisa dizer que não gosta de você para que acredite?

Engoli em seco, observando-o pelo canto de olho.

Nenhuma vez mais, respondi a mim mesmo, pelo amor de deus!

Os olhos dele refletiam as árvores que eu enxergava ao longe, atrás dele, como um vislumbre pequeno de natureza só para quem tivesse o prazer de observá-lo. Aquelas orbes eram a coisa mais colorida que eu enxergava nos últimos tempos, cada vez mais cinzas, e todo o Caleb havia se tornado a parte mais vivaz da minha miserável vida. Eu literalmente cheguei ao ponto de ir ao colégio só para tê-lo um pouquinho para mim.

Afinal, não é como se eu pudesse tê-lo de verdade.

E que bom, não é?

Fechei os olhos, inspirando fundo, mas minha perna balançava em uma ansiedade mais forte do que eu, ao passo que ouvia soar a voz da minha consciência novamente.

Isso é bom, Alex, reforçava a mim mesmo, qualquer pessoa que tenha a sorte de tê-lo é melhor do que você.

Suspirei, remexendo os dedos machucados, a voz em minha cabeça ficando mais e mais alta, ao tentar trazer um tanto de consciência dolorosa até mim, já que esta escapava facilmente a qualquer vislumbre de esperança boba.

Se tanto quer que ele fique com você, então não quer vê-lo feliz. Tudo o que quer é ser egoísta e pensar no melhor para você, e não no melhor para ele. Isso, por conta própria, já diz muito sobre o tipo de amor que sente e o tipo de pessoa que você é.

E você continua o mesmo, não é, Alex?

— Alex, tá quase na hora! — cantarolou Mary Jane, ao meu lado, se referindo ao fim da aposta. Dirigi-lhe um sorriso rapidamente, meus pensamentos ainda altos, e murmurei um "até que enfim".

Você não pode mudar nem se quiser, está escrito todinho no seu DNA, em detalhes perturbadores.

— Acho que isso merece uma contagem regressiva, não é? — brincou Dan, batendo o ombro no meu, e eu concordei que não seria mal.

Você sempre vai ser essa pessoa manchada, deturpada e podre, que jamais deveria ter existido.

— Vou deixar sua cartela aqui já, porque mantenho minha palavra — acrescentou Bex, largando a cartela de cigarros pela metade ao lado de Mary Jane, no chafariz. Fiz uma reverência agradecida, com um riso, ao sentir a boca salivar só de ver o vislumbre do meu cigarro.

Você estraga tudo o que toca, e ainda tem a audácia de querer tocá-lo?

É isso o que você chama de amor?

Cocei a garganta, jurando poder sentir o nódulo dela nos dedos, e soltei um riso quando eles ligaram o cronômetro ao faltar um minuto para a finalização da semana mais angustiante que existiu. Pedi que Korn entregasse o celular cronometrado para mim.

— Cinco, quatro...

Você diz que o que sente por ele é tão intocável pela imundície que te envolve quanto o que sentia por ela, então só vamos esperar para ver se ele não acaba da mesma for...

— Um!

Pisquei, recebendo a comemoração à minha volta com um sorriso amargo depois de calar os meus próprios pensamentos em um segundo. Havia um limite para o suportável e ele havia sido alcançado. Não que houvesse adiantado calar a voz perturbada da minha consciência, já que ela ainda reverberava como um eco repetitivo na minha cabeça.

Não é como se eu pudesse escapar de mim mesmo, afinal de contas.

Estendi a mão para a dupla que também celebrava, apesar de haverem perdido a aposta, e mexi os dedos para indicar que esperava algo. Os dois reviraram os olhos antes de catar nos bolsos míseras notas amassadas para contar os cinquenta conto da aposta e deixá-los na minha mão. Pisquei um dos olhos para eles ao aceitar, vendo-os estalar a língua.

Voltei a me sentar enquanto eles discutiam sobre quem havia sido perdedor de verdade a julgar pelo meu estado de espírito, e chegou-se a unanimidade de que fui eu. Não podia discordar - mas discordei -, girando nos dedos a cartela pela metade que Bex havia devolvido, pensando no prejuízo desta semana em comparação ao lucro dela.

A abstinência da nicotina já devia ter passado depois de uma semana, os primeiros três dias eram prova disso, mas a ansiedade continuava ali. Minha mão chegava a tremer e minha boca a salivar pensando em correr para o ponto de fumo e dar uma bela e profunda tragada.

Só que então, um garoto sentou ao meu lado.

Encarei-o, vendo que ele alcançou minha mão e envolveu-a com a dele, dando uma apertadinha de leve. Senti todos os pensamentos maldosos retornarem no mesmo instante para que nenhuma bobagem iludida e egoísta brotasse em mim, mas tão logo ele me presentou com um sorriso, todos os pensamentos cruéis desvaneceram feito pó antes de sequer finalizarem.

— Eu não achei que fosse conseguir — admitiu ele, em um sussurro um tanto constrangido e outro tanto de admirado. Ergueu os olhos para mim e o sorriso aumentou, como se para me apoiar. — Parabéns.

Talvez o lucro fosse maior do que o prejuízo, no fim das contas.

Sorri de volta, me sentindo estranhamente leve pela primeira vez na semana, e me aproximei um tanto mais dele ao esbarrar nossos ombros.

— Eu também não — sussurrei de volta, como um segredo, ao admitir também.

Caleb soltou um riso, e eu girei minha mão para enlaçar os dedos nos dele, largando um foda-se momentâneo para nossa situação. Levei nossas mãos para minha boca e deixei um beijo casto na sua, sorrindo para ele com tanto esmero quanto consegui acumular.

— Obrigado, Caleb.

*

A leveza que me envolveu com o mínimo de atenção de Caleb era seguida de um "entretanto" e este veio quando cheguei em casa.

Como de costume, o esforço para fazer algo pequeno e bom não compensa jamais, porque logo algo grande e ruim faz questão de destruí-lo. Devia ser o curso natural das coisas. Foi isto que eu pensei quando girei a maçaneta do meu quarto logo após o colégio.

Depois de haver passado uma semana vivendo um inferno para ganhar uma simples aposta e uma simples nota de cinquenta - também havia o momento com o Caleb, mas no fim do dia, não compensava o que viria a seguir -, quando abri o meu quarto, encontrei minha mãe sentada na minha cama com uma expressão de quem comeu algo e não gostou.

Saber que era algo ruim estava na cara - literalmente, na cara dela - para qualquer um, mas saber que era algo grande também, só ficava claro quando você já sabe que jamais a encontrou em seu quarto, com esta cara, ao te esperar do colégio.

Não depois de crescido, ao menos.

Congelei no lugar ao perceber que todas as minhas gavetas estavam abertas e que a única caixinha claramente suspeita - aquela da maconha - debaixo da cama estava em cima dela.

Ela mexeu nas minhas coisas?

Toda a calmaria anormal que bateu em mim no colégio evaporou no mesmo segundo, enquanto eu sentia a irritação, pequena como um leve formigar, espalhar-se pelo meu corpo feito câncer em questão de segundos. Fechei os olhos e frisei os lábios, tentando conter ao menos parte dela.

— O que você fez? — grunhi, jogando minha mochila no chão.

Ela suspirou pesadamente.

Sua postura estava ereta, sentada na minha cama com as pernas delgadas cruzadas e os braços, também cruzados, abaixo do peito. Os cabelos louros estavam erguidos acima da cabeça e ela ainda usava a roupa branca do seu serviço. Apontou, com um gesto da cabeça, para a caixinha em cima da cama, ao lado de três maços de cigarros abertos - provavelmente algum vazio - que ela devia ter encontrado nos fundos das gavetas.

Suponho que eu devia agradecer aos céus por ela haver encontrado essa caixinha antes de provavelmente prestar atenção na caixa de CDs que não possui CD algum dentro.

— O que é isto? — perguntou, a voz falhando na arte em manter-se calma.

— Você mexeu nas minhas coisas? — verbalizei, a voz soando tão baixa quanto indignada.

Ela bufou, descruzando os braços ao levantar-se.

— Você não pode me exigir do contrário! — defendeu, ao passo que eu estreitava os olhos. — Você tem agido muito estranho nos últimos tempos e eu é que fui idiota de demorar a perceber! Não mais — acrescentou, rapidamente, balançando a cabeça. — Não mais, Alex!

Não mais? Agora que eu já sou um adulto perante a lei, você vem me dizer que "não mais"?

Soltei um som pelo nariz, como um riso seco.

É mesmo muito irônico que, justo quando eu paro de fumar pela primeira vez na vida, ela tenha descoberto meus esconderijos para substâncias como estas. É mesmo bem satírico que ela tenha precisado perceber meus sinais de abstinência de tabaco para descobrir que eu o usava, em um primeiro lugar.

— É mesmo? — debochei, pegando minha caixinha de madeira com brusquidão e a fechando do jeito que estava quando saí de casa.

— É, sim! — exclamou, puxando a caixinha das minhas mãos.

Fechei os olhos, tentando tirar a paciência do mais profundo do meu ser, mas não soube se conseguiria.

— Você não vai mais usar estas porcarias, tá me ouvindo? — perguntou, tentando manter a voz firme, mas ela falhava toda vez. Soltei um som pelo nariz, abrindo os olhos ao balançar a cabeça negativamente. — Alex!

Frisei os lábios, querendo não soar tão debochado quando respondi: — Sim, senhora. — Mas ela estreitou os olhos ao perceber que eu não a estava levando a sério.

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Como poderia?

— O que mais tem por aqui? — inquiriu ela, em seguida, ao dar uma olhada rápida ao redor e fazer um gesto vago. — O que mais, Alex? — Fiz uma careta e lhe dei as costas, juntando minha mochila para colocá-la em cima da mesa. Senti quando ela puxou meu braço, e inspirei fundo mais uma vez. — Alex! O que mais você tá usando?!

Soltei um suspiro pesado, encarando-a nos olhos com tanto rancor quanto o sentia no mais profundo do meu peito. Sequer gostaria de pensar no quão absurdo era que ela estivesse se fingindo de mãe agora.

— Tudo o que você possa imaginar — menti, em um tom sinistro.

Ela soltou um arquejo, seja por acreditar de imediato, seja por estranhar o meu tom, seja por não esperar uma resposta - ainda mais, uma resposta como esta. Com certeza, acreditou, porque certamente não me conhece o suficiente para saber quando minto. Afinal, isto é o que acontece quando você não presta atenção no próprio filho, só trabalha e quando tem tempo livre, vive enfurnada em uma igreja o tempo todo.

Essa história de que mães te conhecem do avesso é coisa de filme.

A realidade era a que me encarava neste momento.

— Então é por isto que você anda tão estranho — deduziu, as coisas fazendo muito sentido na cabeça loira dela.

— Estranho? — perguntei, soltando um riso seco. — Eu não ando muito diferente do normal, você é que não me conhece.

Ela estreitou os olhos.

— É claro que eu te conheço, Alex! — defendeu-se, ultrajada. — Você perdeu peso, vive com olheiras, anda tendo pesadelos e terror noturno de novo! — Desviei o olhar, incomodado, ao trincar a mandíbula. — Parece um morto-vivo o dia todo! Não estuda! Não dorme à noite! Não sai mais com seus amigos!

Passei a mão no rosto mais uma vez, sentindo-a tremer de raiva, antes de levá-la aos cabelos e desejar arrancá-los.

— Mas não é de se admirar, não é mesmo? — continuou, com a pergunta retórica, ao apontar para a caixinha novamente. — Além das garrafas que encontrei da outra vez, agora isto! Tá tudo explicado! — Inspirei fundo e expirei, exageradamente. — Será que você não vê o quanto isto tá te fazendo mal? Será que não vê que é por causa de coisas assim que você anda tão estressado?

Obviamente, eu não respondi.

— Se as suas parassonias voltaram, você só as agrava com esse tipo de porcaria! — exclamou, e por um momento eu desejei que ela seguisse qualquer outra carreira que não a farmacêutica. — Eu vim aqui porque eu sabia que tinha algo errado — afirmou, e eu estalei a língua, pensando que ela chegava tarde demais. Havia algo de errado há muito tempo. — A gente precisa consultar com um psiquiatra de novo e tomar precauções se você anda sonâmbulo outra vez.

A gente?

“A gente” nunca existiu.

— Por Deus, Alex, você tem um quarto com varanda! — exclamou, aterrorizada, ao apontar para lá. — Tem noção do quanto isso é perigoso?! E se você resolve perambular na varanda enquanto dorme?! Alex, olha pra mim! — Ergui o olhar, trincando a mandíbula de tal forma que meus dentes doíam, ao passo que minha pele comichava. — Você não tá bem, meu filho — amansa a voz, mas não o suficiente para que isto deixe de ser uma repreensão. — Olha só pra você!

Eu não estou bem?

Olhar para mim?

O nível da hipocrisia estava me levando aos confins da minha memória, repassando todos os momentos em que ela anda feito um fantasma pelos cantos quando está mal e são muitas vezes. Diminuíram, mas ainda são absurdas vezes. E eu jamais disse para ela se olhar e ver o quanto está mal, porque não seria justo, seria?

Ela havia perdido uma filha.

Ela tem o ticket express para se sentir mal toda vez que bater a depressão, pelo resto da vida. Ela tem permissão divina de não dar atenção ao único filho que restou, de estar presente apenas quando vem a calhar, de resolver bancar papel de mãe quando passa uns dias bons sendo benzida na sua igreja.

Na ausência de uma resposta da minha parte, ela suspirou.

No entanto, os olhos focaram na cartela de cigarros em cima da minha cama, lembrando-a disto, e os lábios tremeram, quase como se quisesse chorar. Mágoa, indignação e incredulidade passaram por seu rosto mais uma vez, como se eu houvesse cometido um crime.

— Eu nem sabia que você fumava — acusou, a voz magoada, como se não soubesse com quem podia se chatear mais, com ela mesma ou comigo. Eu, sinceramente, também não saberia dizer. — Desde quando? — inquere, séria. Reviro os olhos, mas ela repete, mais firme: — Desde quando?

Ri, achando graça, com escárnio.

— Há tanto tempo que nem me lembro — cuspi, mas antes que dissesse mais alguma coisa, senti o tapa no meu rosto.

Trinquei a mandíbula, levando uma mão à área da minha bochecha que latejava e ergui os olhos com fúria para ela, sentindo meu corpo inteiro tremer novamente.

Miserável, pensei, precisava bater no mesmo local que ele bateu meses atrás também?

Seu lábio inferior tremeu e os olhos encheram d'água ao passo que repetia meu movimento de cerrar a mandíbula com a força que tinha. Tentava manter a postura ereta de quem tinha razão, mas falhava miseravelmente.

Fraca, xinguei mentalmente.

Não era fraca como mulher porque eu sei da relação abusiva que meu pai exerce sobre ela, mas era fraca como mãe e fraca como pessoa. Não sabia usar a voz quando devia, não sabia lutar por si própria, se remendava todo dia com rezas que não duravam, não sabia proteger o próprio filho e agora mesmo sequer sabia o que estava fazendo ao tentar educá-lo, tarde demais para que funcionasse mesmo que desempenhasse a função de forma adequada.

Assim que o pensamento rancoroso e cruel me passou pela cabeça, tive vontade de chorar mais uma vez. Me senti aquele monstro de sete cabeças, a criatura desprezível e digna de nojo e repulsa que meu pai sempre pensou sobre mim.

Eu não era digno de amor ou atenção, mas ainda assim reclamava quando não os obtinha. Chamava minha mãe de fraca quando eu não conhecia pessoa alguma no mundo mais fraca do que eu.

Parabéns, Alex!

— Como pôde? — perguntou, em nada mais que um murmúrio ao passo que tentava encontrar a voz. Pisquei, saindo dos meus pensamentos maldosos e focando nela. Katya estava em uma mistura de raiva e dor, duas emoções que eu conhecia bem a ponto de reconhecer em outro alguém, ao passo que tentava controlar as lágrimas. — Como pôde fazer isto depois de tudo o que passamos?

Tudo o que passamos?

Quando soube para onde aquela conversa iria, minhas pernas foram mais rápidas do que eu. Perdi o restante da paciência, virando-me para deixar o quarto, já que ela não o fazia por conta própria, e eu certamente não iria ficar para ouvir o restante do que ela estava prestes a dizer.

Só que ela segurou meu braço com toda a força pequena que tinha, impedindo-me de maneira que eu não quisesse puxar meu braço para não machucá-la.

— Olhe para mim quando estou falando! — exigiu, a voz tão alterada que sequer podia manter-se firme. — Como pode fumar quando...? — Arqueja, os pensamentos voando, ao se interromper. — Você está estragando os seus pulmões quando sabe que... — interrompeu-se, e eu franzi o cenho. — Agatha morreu de pneumonia, Alex! — berrou, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.

Fechei os olhos ao ouvir o nome dela.

Se havia uma coisa que nós três fazíamos, em conjunto, era evitar sequer pronunciar o nome dela. Seu quarto, na outra casa, havia sido desmanchado por completo antes de nos mudarmos e nada restou. As fotos estavam guardadas, isto se sequer existiam ainda, além das que eu roubara e escondera. No seu aniversário e no dia da sua morte, todos os anos, não fazíamos comida, não ligávamos a televisão, não vivíamos. O único som da casa nestes dias era o som do choro da minha mãe.

Isto explicava o porquê dela estar tão transtornada com alguns maços de cigarros e um restinho de menos de um grama de maconha.

Ela não estava preocupada em ser mãe e me dar discurso antidrogas porque fazia mal e que ela, como farmacêutica, entendia isto mais do que como mãe. Ela estava com medo que eu morresse de forma semelhante e que já não restasse nada além dela mesma e o escroto do meu pai nesta casa infeliz. Ela estava preocupada no que diabos fazer quando fosse obrigada a encarar a situação de merda da vida dela.

Um segundo depois, eu os abri.

— E você está estragando os seus pulmões, sabendo que ela se foi por conta dos pulmões dela!

Senti meu rosto contorcer-se em uma careta, ao passo que o fio de paciência se quebrava e todo o ódio, rancor e dor transbordavam como se estivessem compactados aqui dentro.

Tive medo na mesma hora, mas não tive controle algum.

— Agatha, Agatha, Agatha! — cuspi, o volume aumentando a cada nova vez que eu repetia o nome dela.

Estranhei o nome que eu sempre evitava, pronunciado em um tom de voz amargo, quando geralmente só o pronunciava em um tom tão doce quanto ela era. Minha voz tinha vida própria, como se não fosse minha, mas expondo a mim.

Senti-a soltar meu braço no mesmo instante, como se levasse um choque.

— E eu?! — berrei, tão alto que minha garganta arranhou, batendo a mão no peito com tanta força que machucou. — E eu, caralho?! — gritei, a ponto de vê-la encolher-se. — Você perdeu a sua filha, mas eu continuo aqui! — berrei, com a mão no peito, sentindo a voz tremer e a garganta reclamar. — Eu ainda tô aqui, porra!

Eu a vi se encolher, miúda, ao piscar demasiadas vezes. As lágrimas ainda escapavam de seus olhos como se fossem produzidas sem parar, mas a expressão estava congelada em um misto de espanto pela minha reação e dor pelo que ouvia.

— E eu — grunhi — perdi tudo! Tudo! — Ela frisou os lábios que tremiam, me olhando como se fosse a primeira vez que me enxergava na vida. — Eu perdi minha irmã, eu perdi o meu pai, que já era um péssimo pai antes mas que agora é só um espaço vazio, e eu perdi a minha mãe — grunhi, a visão embaçada. — Não me restou nada, Katya, nada!

Nos encaramos, por alguns segundos, feito um reflexo.

Eu já chorava antes mesmo de perceber que meu rosto estava molhado e o dela avermelhou com rapidez devido a cor naturalmente pálida dele. Seus olhos azuis estavam avermelhados pelo choro e alargados, ainda em choque, pelo que ouviu.

Apertar os dentes não funcionou para que meus lábios parassem de tremer e os soluços fossem impedidos, mas eu os apertei ainda assim, na base do ódio. Tampouco impediria as palavras metralhadas, trancafiadas em algum bueiro dentro de mim, intoxicadas pelo tempo que apodreciam ali escondidas.

Eu não devia ter aberto a boca, porque sabia que não haveria maneira de fechá-la. Depois que cometi esse erro pela primeira vez alguns meses atrás, mais o seguiram como um efeito tragicômico em cadeia.

A dor começou a me comer pelas beiradas.

— Nós ainda estamos aqui — conseguiu formular, em um murmúrio baixo, após finalmente engolir em seco.

O riso começou com uma leve tosse, quase como se eu houvesse me engasgado com algo, e continuou até que eu estivesse gargalhando abertamente. O som era seco e engasgado no processo de rir sem conseguir impedir o choro, ao mesmo tempo, e soava estranho aos meus ouvidos, como se sequer viesse de mim.

— "Nós"? — debochei, enfim, quando apenas o choro restou.

Ela levou uma mão ao peito, tentando não soluçar ao alto, ao apertar o pingente de coração que sempre levava ali, com nossas fotos, uma de cada lado. Desviei o olhar do acessório, sentindo o coração afundar em algum lugar do meu corpo, mas isso não seria o suficiente para me calar.

— "Nós" quem? — questionei, como se ela estivesse alucinando. — O pai que me puniu a vida toda por ter nascido? — Ela mordeu os lábios, não conseguindo conter o soluço desta vez. — Ou você? — questionei, gesticulando vagamente para ela, ignorando a dor em seu olhar. — Você é uma alma em pena. Um fantasma dentro desta casa. Olhe ao redor — sussurrei, abrindo os braços. — Só restou eu. — Engoli o soluço quando a minha voz vacilou, antes de repeti-la: — Só eu.

Eu a vi fechar os olhos, chorando sem qualquer restrição, a careta aprofundada em dor.

Abe... — choramingou, mas eu limpei o rosto com rapidez.

Soltei um som pelo nariz, descrente.

— Não mais — neguei, reforçando ao movimentar a cabeça de um lado ao outro. — Eu sou o Alex. E se eu continuo nesta casa é porque no momento, eu não tenho escolha — grunhi, rancoroso. — Mas pode contar os dias, porque eu vou dar o fora daqui o mais rápido possível e, se tudo der certo, vocês nunca mais vão me ver.

Katya soluçou, dando um passo na minha direção, mas eu recuei dois.

Não importava que minha voz houvesse soado chorosa como a de uma criança desamparada e as palavras soassem infantis e imaturas.

— Não diga isto, por favor — choramingou, a mão apertando tão forte o colar que suas juntas estavam brancas. — Você sempre terá um lar aqui, comigo — especificou, sabendo que eu tinha pai de enfeite. — Sinto muito se te causei dor, meu filho, mas a gente pode resolver. Fugir do que sente, fugir do que dói, não é a solução — tentou em um murmúrio trêmulo, mas eu neguei.

Soltei o ar pelo nariz, desdenhando.

— O que sabe?! — grunhi, afastando-me quando ela tentou se aproximar uma vez mais.

— Eu sinto muito — chorou mais uma vez, mas eu evitei encará-la.

Eu não queria enxergar a dor em seus olhos novamente, como um reflexo dolorido dos meus.

Eu sei que sente muito, mãe, mas "sinto muito" não resolve nada.

Trinquei a mandíbula para que mais nenhum soluço viesse, e encarei a varanda aberta, nenhuma outra palavra pronunciada pelo que pareceu uma eternidade. Apenas um em cada lado do quarto, os sons dos choros tentando ser controlados e falhando, e o silêncio do restante da casa.

Eu sei que ela tenta, que se esforça e que faz o melhor que pode. Eu sei que o meu pai é responsável pela maior parte dos meus traumas de infância e memórias ruins e que eu não tenho uma lembrança sequer em que fosse ela quem me destratasse. Sei mais do que eu gostaria sobre a dor que ela sente, sobre o limbo no qual se encontra há anos, sobre o esforço de levantar da cama todo dia. Eu sei que ela me ama e eu sei que ela sente muito.

Eu sei, eu entendo, eu vejo.

E eu sei.

Limpei o rosto, sentindo-me doente, como se o buraco dolorido no meu peito houvesse sido causado por um câncer que apodreceu meu coração.

Não havia nada que eu pudesse fazer.

Não havia nada que ela pudesse fazer.

Uma coisa dessas não se conserta, está danificada demais para isto.

Enquanto eu não preciso de um "sinto muito", eu também sei que não é possível conseguir um "eu conserto isso", então não há nada que reste a ser entregue nas minhas mãos. Nada que venha dela, nada que venha dele, nada que seja possível. Eu não estou pedindo nada, e mesmo que tivesse, nada poderia ser feito.

Isso não é culpa dela, é só um fato.

Mas ainda assim, ainda assim, eu não consigo deixar de sentir rancor, de evitar estar perto dela, de cortá-la no meio das conversas, de sequer querer olhar na sua cara. Alimentei isso por tanto tempo que agora explodiu na minha cara - e na dela.

Eu sei sobre sua dor, suas crenças, seus problemas, suas escolhas, seus erros. Eu sei tanto, mas desejava não saber nada. Passei a vida justificando cada negligência justamente por saber, por entender, por ver com meus próprios olhos, por me colocar em seu lugar. Fiquei em silêncio porque a dor dela sempre foi mais válida do que a minha - e, sinceramente, sempre vai ser. Qualquer dor minha é merecida.

Mas...

Eu só queria que fosse ela quem soubesse, quem visse, quem entendesse. Eu queria que, para variar, fosse ela a saber sobre mim e a me colocar em primeiro lugar.

Limpei o rosto mais uma vez, com raiva, ao engolir tudo mais uma vez.

— Você nunca devia ter me aceitado na sua vida — declarei com rancor, por fim, vendo-a soltar um soluço doloroso. — Se não fosse por você, meu pai não teria me assumido, eu não teria conhecido a Agatha, e nada disto teria acontecido!

— Por que você...?

— Talvez eu até mesmotivesse sido adotado por uma família a qual eu pudesse assim chamar — cuspi, por último, ao encher os olhos d’água.

— Não diga isto, Alex — pediu, em um sussurro choroso. — Te ter como meu foi a melhor coisa que eu fiz na vida — declara, com a voz embargada, cada palavra atingindo mais fundo no meu peito.

Girei o rosto na direção dela com rapidez, sequer conseguindo digerir as palavras, perdido sobre sentir-me exasperado ou tocado por elas. Todos os sentimentos pareciam se contrariar em uma batalha interna.

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— Não diga isto — repeti, mas de forma um tanto rude, como se de fato me magoasse que ela me amava. E quiçá magoasse mesmo. — A melhor coisa que fez foi a Agatha.

Um vislumbre de piedade se alojou em seus olhos, instigando um pouco mais o sentimento apodrecido aqui dentro, ao passo que chorava. O último que eu precisava era que sentisse pena de mim.

Ela negou veemente. — Meu filho, eu amo os dois igualmente — declarou, obstinada, a mão no coração como se ali houvessem dois reservatórios de amor.

Desviei o olhar mais uma vez, fechando os olhos para que talvez assim as lágrimas parassem de ser produzidas e eu pudesse permanecer com raiva dela sem qualquer sinal de fraqueza.

Mas quem eu quero enganar?

Eu já havia feito um escândalo, chorado feito um bebê, declarado demônios nutridos diaramente no peito há uma década e praticamente implorado por atenção. Eu era um sinal de fraqueza ambulante. E não havia raiva sem piedade, não aqui dentro. Se isso fosse possível, eu não seria o caos que eu sou.

Abri os olhos, a mandíbula cerrada, antes de focá-los nela.

Frágil, cansada, miserável, perdida.

Eu era a cópia humana do meu pai, mas vendo-a naquele estado, pensei que nunca havíamos sido tão parecidos quanto agora. Era a primeira vez que eu me via refletido nela feito um espelho.

Engoli em seco, mas não desviei os olhos dos dela quando pronunciei, sem emoção: — Talvez este tenha sido o problema.

Seu rosto contorceu-se em dor mais uma vez.

Não.

Chega!

— Alex...

— Sai do meu quarto — interrompi, com frieza, ao vê-la tentar se aproximar mais uma vez. — Me deixa sozinho.

— Não, a gente precisa conver...

— Eu disse pra sair do meu quarto! — berrei, apontando para a porta. — Dê o fora! Vaza daqui! Eu quero ficar sozinho!

Os olhos azuis piscaram demasiadas vezes ao encolher-se pelo meu tom de voz, o rosto tão avermelhado pelo choro que parecia que explodiria a qualquer momento, o pequeno e miúdo corpo parecendo curvar-se contra ele próprio.

— Me deixa sozinho! — gritei, apontando para a porta mais uma vez.

É o que eu sei fazer de melhor, acrescentei, ficar sozinho. Ser sozinho, crescer sozinho, aprender sozinho, sofrer sozinho, amar sozinho.

Ela ainda se sente no direito de ficar magoada por haver sido expulsa daqui aos berros e se me perguntar, isso é uma bela de uma ironia. Me deixar sozinho é a especialidade da minha família e eu nunca precisei pedir por isto antes, eles sempre fizeram isto de bom grado e nunca pareceram magoados em me largar de mão. Ficar sozinho é o que eu estive fazendo a vida toda e olha que eu não fiz um trabalho tão ruim assim. Porque no fundo, eu nunca precisei de ninguém além de mim mesmo. E certamente não é agora que vou começar a precisar.

Eu não preciso dela, tentei convencer a mim mesmo, não preciso de um amor falho.

O que eu preciso mesmo, por mais tragicômico que seja, é estar mais sozinho do que isto, porque não parece ser o suficiente. Eu preciso estar tão longe dessa casa, dessa família, dessas memórias, que eu não precise ter que lidar com isso nunca mais. Eu preciso ir embora e nunca mais voltar.

Eu preciso...

Encarei a mala empoeirada e esquecida em cima do meu roupeiro, relanceando a porta ainda aberta e a caixinha de madeira em cima da cama.

Estancado no lugar depois que ela fez o que eu pedi, com a mente fervendo, eu só pude respirar com dificuldade. Minha cabeça começou a ficar mais e mais barulhenta ao passo que os pensamentos se entrecruzavam tanto que eu mal conseguia segui-los. Meu corpo tremia da cabeça aos pés, seja por raiva, pela adrenalina ruim, pela ansiedade. Meus olhos ardiam porque não paravam de expelir lágrimas feito o imbecil que eu sou.

Eu não vou conseguir esperar até o fim do ano, não é?

Eu estou no meu limite há meses e cada segundo que passa eu me sinto mais e mais sufocado. Cada célula do meu corpo me implora para sair desse lugar, para me afastar, para poder me sentir menos agoniado.

Eu não posso esperar a finalização do ensino médio, aquilo parece bobagem agora, sem sequer saber se eu não reprovaria outra vez. Eu não quero ficar aqui para descobrir, eu quero dar no pé.

Eu preciso dar o fora, e precisa ser agora.

O problema era que havia gastado o dinheiro com o violão e só havia juntado metade, pensei, ao encará-lo ao lado da cama. Metade não seria o suficiente.

Eu não podia revendê-lo, podia?

Se eu for pesar as coisas, então dinheiro sequer é importante, porque o que mais vale é ir embora. Eu sequer me importaria de ter que passar por perrengues, viver em abrigos ou até mesmo no meio da rua se isso me conseguisse um pouco de liberdade.

Foda-se o dinheiro, não é?

Pela primeira vez desde que ela se retirou do meu quarto, feito o fantasma que a acusei de ser, eu me movi.

Empurrei a porta com toda a força que pude, sentindo o chão do quarto vibrar, e me virei para a cama. Alcancei o maço de cigarros esquecido ali, sequer me lembrando do momento em que ela o largou. Abri a cartela, colocando um deles na boca, e correndo atrás do isqueiro. Onde está o maldito?, pensei, começando a ficar mais nervoso ainda.

Remexi nas gavetas, derrubando tudo o que encontrava no caminho, sentindo o corpo tontear com a velocidade que o sangue corria nas minhas veias. Encontrei o isqueiro de caveira, guardado no fundo da gaveta por ser bonito e pouco eficiente, e tentei fazê-lo funcionar.

Uma, duas, três, vinte vezes.

Puta que pariu!

No entanto, assim que ele funcionou e eu fiz menção de acender meu cigarro com a minha mão direita, eu congelei no lugar. Era a mesma mão que Caleb havia afagado e a mesma que eu havia enlaçado na dele quando a beijei, logo após haver me parabenizado com olhinhos brilhantes em orgulho.

Droga, pensei, tomado de raiva, ao encarar o isqueiro na mão que tremia.

Puta que pariu, que desgraça, que inferno.

Fervi de ódio por não poder fazê-lo e acabei jogando o isqueiro para o outro lado do quarto, vendo uma lasca do armário voar quando ele o atingiu.

Antes que eu percebesse, meu corpo tremia por outro motivo.

Senti o soluço antes de poder ouvi-lo, largando a caixinha de qualquer jeito no tapete ao derrubar o que havia dentro e curvar-me sobre meu próprio corpo. Deixei-me desabar ali mesmo, apoiado na cama para amenizar o impacto, e o choro alto veio sem minha permissão. Passei as mãos nos cabelos pela frustração e enrosquei os dedos neles, puxando com um pouco de força até largá-los pela dor, mas nem isso aplacava a dor emocional.

Encolhi-me ao trazer os joelhos para o peito e abraçá-los para me sentir ao menos um pouco acolhido, mas isso só me fez soluçar ainda mais. Enfiei o rosto ali, balançando o corpo para frente e para trás como se isso aliviasse um pouco a bagunça interna.

Tudo o que restou foi a mente - finalmente - em branco e a dor pulsante no peito.

Eu preciso de ar.

Eu preciso sair daqui.

Eu preciso ir embora.