Made of Stone

XXIV. De todas as liberdades do mundo


Fase 3

2019

— Que pena que o Alex não vai poder vir ao meu casamento.

Enquanto a casa ao lado enchia de convidados e o burburinho de pessoas aumentava cada vez mais de volume, unindo-se ao som da música, ainda terminávamos de nos preparar para a cerimônia.

Suspirei, tomando uma pausa para coçar o pescoço devido ao tecido do terno alugado.

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— Você tá lindo, meu bem.

Olhei pelo espelho, encontrando os olhos castanho-esverdeados da minha mãe tomados de carinho. Soltei um riso pelo nariz. — Eu é que devia estar dizendo isto para a senhora — retruquei, baixando os olhos para o vestido branco que eu ajeitava pelas suas costas. — E quem disse que ele não vem?

Minha mãe arqueou as sobrancelhas perfeitamente desenhadas e não se contentou com o reflexo do espelho, virando o corpo na minha direção ao ignorar meu protesto.

Justo agora, que eu recém estava pegando o jeito dos laços!

Sorriu, genuinamente alegre, ao passo que eu largava de vez meu trabalho em seu vestido.

— Ele vem?

Sorri de volta, dando de ombros.

— Ele disse que não perderia seu casamento por nada no mundo — contei, observando a satisfação passar por seus olhos. — Adiou a viagem de volta por você, mãe — expliquei, incapaz de não sentir-me, também, um tanto aquecido pelo gesto. Estalei a língua em seguida. — Não é à toa que os amigos do Theodore pensam que é o Alex o seu segundo filho e não eu!

Mamãe gargalhou, a expressão faceira deixando-a impossivelmente mais linda.

Para ser sincero, a festa do casório era para ser a coisa mais simples do mundo, visto que ocorreria - já havia começado, inclusive - no jardim da casa ao lado. Meus tios postiços emprestaram a casa para a festa com poucos amigos, porque era maior e mais bonita, mas também por causa da construção.

A cerimônia ocorreria ali mesmo, com um pastor que conseguimos de última hora, após minha mãe já estar casada no papel com Theo, o que ocorreu na Prefeitura semana passada. A festa era para ser simbólica e tudo isso, já que no dia de assinarem os papéis, não fizemos nada mais que comer uma pizza e vazarmos de casa para que eles ficassem sozinhos.

Cerimônia simbólica, festa simples, jardim de casa. Então por que diabos eu estava usando um terno alugado com esse calor?

Coisas de mãe. Ou melhor, coisas de mãe pobre.

Se eu vou usar esse vestido chiquérrimo, gastar com cabelo, manicure e pedicure, e ainda usar tanta maquiagem na cara que vou parecer uma palhaça — numerara ela, enquanto comemorávamos com pizza —, vocês também vão se arrumar feito gente chique.

Sem falar que, apesar da gente ter sido pobre a vida toda - e sinceramente, agora já não mais, já que minha mãe conquistara um emprego estável muito bom e as coisas viraram para nós -, este não era o caso do Theodore. O cara não é pobre, e os amigos e familiares dele tampouco.

— Você parece tudo, menos uma palhaça, mãe — deixei claro, quando ela observou o resultado final no espelho.

Sorriu-me com alegria.

— E você está um principezinho.

Suspirei.

Cinco palavras dela e... Eu tenho cinco anos de idade mais uma vez.

Revirei os olhos, apenas para vê-la rir mais uma vez.

Mães!

*

Esperei, impacientemente, pela cerimônia.

Quero dizer, quem eu quero enganar?

Esperei, impacientemente, pelo Alex.

Ele havia viajado para a cidade natal dele durante quase todo o mês de janeiro. Apesar de haver passado o natal e a virada do ano aqui em Hybrifield, seus pais partiram para passar as férias em Mallow Coast e ele partiu junto.

Obviamente, ele não ficou com os pais. Segundo ele, ficou na casa dos antigos amigos dele. Simples assim, sem entrar em detalhes.

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Depois do tombo que foi a reprovação para ele, Alex demorou uns dias para voltar ao normal, e por mais bizarro que parecesse, voltou. Ficou as primeiras semanas isolado e depois retornou das cinzas, especialmente para farrear com a panelinha dele antes que cada um seguisse seu rumo.

Mason insistiu que ele devia estar em negação, mas eu achei melhor não lhe dar ouvidos. Eu já estava paranoico o suficiente com todos os meus demais problemas.

Quero dizer, ele mal falara comigo nos últimos meses. Mandou menos da metade das mensagens que costumava mandar enquanto estava na cidade natal dele. E quero dizer, aquela também é a cidade do não-exatamente-namorado dele.

Vá saber se ele não ficou esse tempo todo com aquele cara e mentiu sobre estar com os antigos amigos?

Sem falar que eu tinha que lidar com o casamento da minha mãe, meu padrasto se mudando para cá, meu irmão buscando apartamentos para viver sozinho, a reforma da casa que vivi a vida toda.

Mamãe e Theodore até pensaram em vendê-la e comprar outra - meu coração quase parou ao pensar nisto -, mas o terreno é nosso e nossa vila de fim de mundo havia sido asfaltada e valorizada nos últimos tempos. Então, por fim, resolveram reformá-la - basicamente arrumá-la e aumentá-la para o pátio traseiro - e agora a casa estava de pernas para o ar.

Hoje mesmo, quase caí três vezes por tropeçar em materiais de construção, sem falar na humilhação de sair do banho com uma toalha na cintura e me deparar com algum cara trabalhando porque esqueci que eles viriam no dia.

Minha vida estava de pernas para o ar, não só a casa.

Eu nem sei por que fiquei aliviado de saber que não íamos nos mudar daqui, já que nossa casa é claramente amaldiçoada por um passado ruim. Obrigado, pai.

— Vai fazer um furo no meu namorado, Caleb.

Dei um pulo, deparando-me com uma expressão risonha na cara do meu irmão.

Franzi o cenho, demorando a entender que eu estava com o olhar em um ponto fixo, com a cabeça tão perdida em pensamentos obscuros que nem percebi que este ponto era o Richard Turner.

— Definitivamente não era minha intenção — falei, pensando que se me perguntassem se o cara estava usando uma roupa de palhaço, eu não saberia confirmar.

— Pois era a minha — brincou ele, referindo-se ao fato de que não tirava os olhos do namorado também.

Remexi-me no lugar, desconfortável, chamando atenção dele.

— Você tá louco que acabe, não é? — questionou, me olhando de forma analítica, sobre a festa.

Parei de bater o pé no chão assim que ele se pronunciou, também percebendo que eu tinha dos dedos na boca ao puxar a pele em torno das unhas e que provavelmente estava com uma expressão nada agradável.

Desviei o olhar para o local perfeitamente arrumado para um casamento de conto de fadas.

— Ou será que não é isso? — continuou ele, os olhos cravados em mim.

— Meus amigos não chegam nunca — inventei, olhando para longe.

— Seus amigos ou o Alex? — Virei o rosto para ele, estreitando os olhos. Will sorriu, encolhendo os ombros casualmente. — Mamãe me contou que ele tá vindo.

— E o Alex é o quê, se não é meu amigo? — questionei, quase como uma acusação.

Que saco, também!

Will nunca perde a oportunidade de me encher o saco sobre o Alex, de fazer comentários e perguntas enigmáticas sobre nós, como se soubesse de algo quando, na verdade, só quer jogar verde para saber sobre algo que nem existe.

— Eu é que te pergunto.

Inspirei e expirei fundo, pedindo paciência ao universo.

— Você pergunta demais.

— E você — enfatizou ele, aproximando muito o rosto do meu, de forma que eu enxergasse suas sardas — responde de menos.

Bufei.

— Por que tá aqui me incomodando ao invés de aproveitar o seu namorado? — questionei, apontando para o renomado professor universitário ao outro lado do pátio. — Vocês não se veem pouco?

Will riu.

— Sinceramente, agora nas férias eu tenho visto mais ele do que você — acusou, batendo o ombro no meu. — Você tá sempre na casa de alguém — comentou, e eu o encarei. — Tá evitando ficar perto dos dois pombinhos?

E, a julgar pelo tom de voz que havia amenizado até desprover-se completamente do humor, imaginei que eu pudesse fazer o mesmo.

Will me entendia.

— E você não? — retruquei, referindo-me ao fato de que Will também havia passado quase um mês longe de casa, em Lydris, com o Turner. Will desviou o olhar. — É estranho. Você sabe que é estranho — afirmei, antes que ele negasse. — O casamento, o Theodore se mudando para cá, a reforma...

Will sorriu, sem muita vontade.

— Eu sei — murmurou de volta, olhando ao redor também. — Mas ela tá feliz. — Assenti. — E “estranho” nem sempre é ruim, ou é?

Analisei-o rapidamente.

Os olhos verdes como os meus, o cabelo castanho claro - desta vez, perfeitamente penteado para o lado direito -, as sardas quase translúcidas no nariz e bochechas e o perfil magricela.

Mamãe tem razão. Se eu for parar para pensar a respeito, Will se parece muito com nosso pai, embora, ao mesmo tempo, não se pareça nada com ele. Isso é estranho também.

Estranho nem sempre é ruim.

— Sem falar que você vai ficar com o mesmo quarto — adicionou ele, referindo-se ao lado bom da coisa. — Não vai mudar tudo.

Soltei um riso pelo nariz.

— Mas bem que eles podiam reformar meu quarto também... — comentei, fazendo graça.

Will gargalhou.

— Caleb!

Olhei para onde me chamaram, encontrando três dos meus amigos ali, bem arrumados, em uma cena que achei até bonitinha para desenhar.

Grace em um vestido florido e cabelos erguidos em um coque, Mason em uma roupa social - engomadinho como só a mãe dele sabe deixá-lo - e Cristina com um vestido escuro, que parecia deixá-la ainda mais ruiva. Um ao lado do outro, me olhando com expectativa e desconforto, quase como um quadro renascentista.

Quis gargalhar, mas guardei o pensamento para mim.

Ao menos em algum momento deste dia estranho, eu senti vontade de rir verdadeiramente.

— Cadê seu par? — perguntei a Grace, que fazia uma careta vez ou outra ao ajeitar o vestido que parecia lhe cair desconfortavelmente.

— Meu par o caralho — respondeu, e ao mesmo tempo uns amigos de Theodore ao lado fizeram uma cara feia para nós.

Segurei o riso, imaginando o que eles deviam pensar. “Ora essa, essas crianças de hoje em dia falando palavrão, que absurdo!”

— Sério, cadê ele? — questionei, imaginando que com o Ian, devia vir o Alex.

— Deve ter engasgado com a gravata e morrido — retrucou Grace, e Cristina riu.

— Se ele é parecido com o Alex, então vai demorar — comentou ela, dando de ombros, e Mason assentiu positivamente, em uma linguagem de casal que só os dois entendiam.

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— O que isto quer dizer? — perguntou Grace, por mim.

Cristina olhou para Mason, que ajeitou os óculos e respondeu por ela, de forma simples: — Eles são vaidosos.

Vaidosos? — perguntei, testando a palavra na boca.

— Sim — afirmou Cris, assentindo. — Tem caras que são vaidosos: demoram para se arrumar, tem muita roupa, são convencidos. Alex é assim — disse ela, e eu franzi o cenho, de certa forma recapitulando tudo sobre ele na cabeça. — Dá pra dizer, não dá?

Mason assentiu, compreendendo, e Grace riu.

— Sim, dá — concordou ela, gargalhando. — Sempre que ele usa aquele boné que você deu para ele — comentou, me cutucando — e tira por algum motivo, ele fica uns cinco minutos mexendo no cabelo pra ajeitar!

Arqueei as sobrancelhas, coçando o pescoço com desconforto. — Nunca notei.

— Eu prefiro outro tipo de cara — comentou Cristina, olhando para o Maze, que sorriu timidamente, ajeitando os óculos pelo milésima vez pela vergonha.

Grace olhou para mim e revirou os olhos. Assenti, entendendo o que ela quis dizer. Então, vi a expressão dela mudar quando focou em algum ponto atrás das minhas costas.

Virei para trás, sentindo a cor se esvair de mim.

Alex.

Bom, na verdade, Alex e Ian. Os primos Cunningham.

Se isto não era aquela cena de filme colegial norte-americano, em que os atletas entram em cena em câmera lenta e com uma música badass no fundo, eu não sei o que era.

Quis vomitar. Um pouco pela cena ridícula e outro pouco, literalmente, pelo nervosismo que revirou meu estômago de enxergar Alex depois de quase um mês.

E ok, ele estava lindo e glorioso com a roupa social escura e os cabelos lambidos e tudo o que envolvia a sua majestosidade. Só que para mim, era sempre assim, esteja arrumado para um casamento ou não. E por mais que me magoe muito admitir, eu não havia conseguido pôr para trás o que quer que sinto pelo Alex. Estava ali ainda, incomodando e maltratando meu peito. Pensei que ignorar faria desaparecer, mas este plano estava se esvaindo aos poucos.

Eu gosto de você!, meu eu interior gritava, e tudo o que queria era calá-lo. Tinha vontade de retrucar: não, não gosta, fica quieto!

Porque no fundo, fala sério: o que eu sei sobre gostar de alguém, não é mesmo?

Minha cabeça está uma confusão desde o beijo, mas isso não quer dizer que tenha a ver com o Alex. Tem a ver que eu gostei de beijar um garoto, e não que eu gostei de beijar o Alex, especificadamente. Talvez só queira dizer que eu gosto de garotos.

Eu gosto de garotos.

Viu só?

Não é difícil admitir: eu gosto de garotos.

Talvez tudo o que eu precise fazer é admitir para o mundo esta parte, para que a parte do “eu gosto do Alex” se cale de vez, percebendo que é um erro de logística - ou de lógica? - e essa parte de mim está focando na coisa errada.

Eu não gosto de garotos, eu gosto do Alex. É muito simples.

Céus, não!

Eu gosto do Alex, eu não gosto de garotos.

Não!

Eu gosto de garotos e gosto do Alex.

Merda.

— Eu disse: vaidosos — comentou Cristina, de forma entediada, quando eles pararam na nossa frente.

Eu iria evitar olhá-lo na cara mas ele me cutucou, com um sorriso, e eu fui obrigado a fazê-lo. Era como se tudo tivesse caído de volta ao seu devido lugar com o Alex de volta na cidade.

— Pensei que fosse uma cerimônia simples — comentou, com um risinho, ao me olhar dos pés à cabeça.

Se o sangue havia se esvaído do meu rosto quando o vi, agora todo ele subia para circular pela minha cara. Ri, nervoso.

— Tá falando de mim ou de você? — retruquei, cutucando-o de volta.

— Ou de vocês, né? — acrescentou Maze, apontando para os dois.

Foquei os olhos na outra pessoa que havia chegado, recém me dando conta do Ian e a que, exatamente, Mason se referia. Os dois estavam muito bem vestidos - ricos, não é? -, com cabelos lambidos e postura de madame.

Ian era mais alto que o Alex - inclusive estava crescendo tanto que a mãe estava levando-o para fazer acompanhamento médico -, e com a altura, também vinha a voz que estava engrossando e os traços, mudando. Ian podia até ser um garoto de quinze anos, mas ele parecia ter dezoito, no mínimo, e vestido feito gente do jeito que estava, parecia ter uns vinte.

— Caramba, você tá tomando hormônios? — perguntou Cris, olhando para cima, antes de virar para o Mason e comentar: — Toda vez que eu o vejo, ele parece estar mais alto.

Mason fez uma careta, porque odiava ser o mais miúdo dos rapazes do nosso grupo. Embora tivesse minha altura, era bem mais magro e até mesmo Cristina talvez fosse uns três centímetros mais alta do que nós.

Grace que era pequenina.

— Nossa, você parece... — comentou ela, olhando para o Ian, em choque, mas não soube completar.

Gente — completou o Alex, por ela, gargalhando.

Ian, que encarava com Grace com expectativa pelas prováveis primeiras palavras gentis acerca dele, fechou a cara para o primo. — Poxa, obrigado — agradeceu, debochado.

— É, você tá bem decente — concluiu Grace, mudando a expressão para uma entediada. — Bem diferente do normal.

Ian revirou os olhos, aproximando-se dela. — Você quer dizer que eu tô gato pra caramba, não? — ousou, dando um risinho engraçado.

Céus, passou tempo demais com o Alex mesmo!

Grace riu. — Não — respondeu, simplesmente. — Eu quis dizer o que eu disse mesmo.

Ian fez uma careta que o deixou mais parecido com o “normal” ao qual Grace se referia, e eu voltei a acreditar que tinha os seus quinze anos quando bufou, emburrado. Mas eu bem vi que ele ficou observando Grace pelo resto da noite.

Posso apostar que vão acabar juntos um dia.

Eu apenas observei a interação de todos enquanto arrumávamos um lugar para sentar, tentando evitar olhar, falar ou ouvir o Alex. Mas ele fez questão de sentar ao meu lado, puxando o Ian do lugar e trocando com ele.

Não demorou para que ele puxasse assunto.

Que ridículo! Que idiota! Que babaca!

Semanas mal falando comigo depois do beijo, aí volta a falar normalmente, aí reprova e mal fala comigo outra vez, viaja por um mês e agora volta a falar de novo?

Não sou obrigado.

Ele comentou sobre a cerimônia algumas vezes, e eu só resmunguei algumas respostas, evitando olhá-lo na cara, embora sentisse os olhos dele em mim. Até que, Alex sendo Alex, tinha a necessidade patológica de falar alguma coisa constrangedora.

Ele nunca consegue ficar muito tempo sem essa proeza.

— Você tá lindo, nenê — falou, e eu o encarei, com ódio no coração.

"Você está um principezinho", dissera a minha mãe, de forma similar.

Ele tinha um sorriso maravilhoso no rosto e olhos tomados de carinho por mim, e tudo o que eu queria era quebrar aquele nariz.

Eu não sou criança!

— Não me chama assim — resmunguei, com as sobrancelhas unidas contra ele.

Alex me ignorou, ainda com um sorriso brincando nos seus lábios.

— Eu até fiquei curioso: é sua mãe que tá casando ou é você?

Como ousa?

Senti meu rosto queimar de vergonha, amaldiçoando a roupa desconfortável no meu corpo e querendo que ela entrasse em ebulição.

Respira, falei para mim mesmo, tentando relaxar. Eu nem devia falar com ele e agora, com pouquíssimas palavras, ele já havia conseguido entrar na minha pele. Isso não devia ser humanamente possível.

E de onde vem todo esse ódio?

Eu sou a pessoa mais pacífica do mundo.

As piores brigas de infância que tive com o meu irmão foi porque ele ficava todo estressadinho com alguma coisa e eu só dava de ombros, o que o deixava mais irritado. As únicas discussões no colégio que eu tive foram com a maior calmaria do mundo. Mesmo na briga com o Bruce, eu estava até que bem controlado. Eu nunca me rebelei, eu raramente bati uma porta, eu jamais ergui a voz para a minha família, meus amigos ou qualquer um.

Eu sou o pacifismo em pessoa.

De onde tanta raiva?

Fiz uma careta, desviando o olhar para focar no pastor, que já esperava pela entrada da minha mãe em seu devido local.

— Não tenho noiva — limitei-me a responder, percebendo que ele continuava a me olhar por uma resposta.

— Não? — questionou, a voz divertida. Soltou um suspiro e ajeitou-se na cadeira, como se minha resposta o deixasse fisicamente confortável. — Bom, melhor para mim.

Foquei os olhos nele em uma milésima de segundo, alargando-os pelo desaforo que ouvi. Nem sei qual das coisas que senti se sobressaiu às outras, mas acredito que o choque impediu qualquer uma por alguns segundos.

Como ele podia me dizer uma coisa dessas, mesmo que de brincadeira?

Mas bastava olhar o rosto risonho dele que qualquer ódio se desvanecia por completo. Não só porque fazia um mês que eu não via aquele riso e porque estava preocupado que não visse novamente, mas porque aquele jeito divertido de ser representava o Alex de quem eu sentira falta.

Alex sempre foi e sempre seria assim. Foi sendo assim que viramos amigos, que passei a gostar dele e que passei a amá-lo. Sua cara de pau e sua idiotice de falar coisas ridículas sem pensar duas vezes eram umas das coisas que eu mais odiava nele.

Mas também eram as que eu mais amava.

— Idiota — resmunguei, por fim, ao empurrá-lo.

Alex riu, segurando o braço que o empurrava ao virar o corpo na minha direção na cadeira. Me encarou por um momento antes do sorriso se esvair e o olhar se tornar sério quando pigarreou e frouxou o aperto no meu braço até largá-lo por completo.

Franzi o cenho, tentando entender a expressão estranha, mas desisti, esperando que ele dissesse algo. Comecei a me sentir incômodo quando o silêncio estendeu-se enquanto me encarava com tanto sentimento, mas nada saía de seus lábios.

Ao invés disto, ele se aproximou em um rompante e me abraçou.

Pisquei, tentando entender, mas ele não me largou por um tempo. Pelas suas costas, vi que Will e o Turner olharam na nossa direção, mas nem consegui processar o fato porque estava processando o abraço repentino.

Uma coisa de cada vez.

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Senti o nariz dele no meu pescoço, fungando, e fiz o mesmo, como um reflexo, tentando não demonstrar o quanto aquilo foi bom.

Eu meio que senti falta dos abraços repentinos e das brincadeiras e de me perder debaixo de seu braço quando ele me arrastava por aí com os amigos em suas traquinagens. O abraço do Alex tinha cheiro de Alex e toque de Alex e gosto de Alex e foi o mais envolto por Alex que eu estive em meses - meses, porque antes da viagem a gente ainda estava meio distante. Estivemos distantes por um tempo.

Então, ficamos distantes mais uma vez quando ele se afastou.

Ignorei os comentários brincalhões dos nossos amigos, sentados todos ao meu lado esquerdo e, devido ao meu corpo voltado ao Alex, praticamente às minhas costas.

Alex sorriu fraco, desta vez, parecendo um tanto receoso sobre o que diria: — Senti sua falta, Caleb — murmurou, e eu pisquei, surpreso. — Senti mesmo.

Aquilo me pegou de surpresa, então imagino que seja esta a expressão que se demorou no meu rosto enquanto minha mente entrava em pane.

Minutos atrás, eu planejava não dirigir-lhe a palavra. E agora eu esquecia todo e qualquer motivo para não falar com ele toda a chance que eu tinha.

Um par de palavras e um abraço, e o feitiço estava feito.

Estou nas mãos dele novamente.

— É? — murmurei, sem me dar conta.

— É.

Sorri de volta, sem conseguir pronunciar uma sequer palavra.

Droga.

Eu gosto mesmo do Alex.

Engoli em seco, ajeitando-me no meu lugar e tentando torrar os meus pensamentos. Intrometi-me nos assuntos dos demais, vendo que Alex continuava quieto ao meu lado, até que a cerimônia começasse.

Eu nunca fui muito fã de casamentos e coisas docemente românticas e, em especial, eu não era muito fã do Theodore, mas o casamento foi lindo.

Não foi como o casamento de dois jovens iludidos, com uma festança e toda aquela história de “o noivo não pode ver a noiva antes da igreja” e tudo o mais. Minha mãe circulou por ali com o Theodore muito bem vestidos de noivos antes dela percorrer o caminho gramíneo - e não em câmera lenta como nos filmes, diga-se de passagem - para casar com ele. Era como se tivesse pressa, como se não pudesse perder um segundo para estar casada com ele. E nada disto de beijar a noiva depois de declarados casados, porque ele roubou uns três beijos dela antes disto.

Eu normalmente me sentiria um tanto enojado de ver minha mãe - minha mãe! - aos beijos, apaixonada. Mas cada mínimo detalhe desta relação, desta cerimônia e deste noivo me traziam um tanto de alívio. Era todo o contrário do que o primeiro e único matrimônio da minha mãe significava.

Ela estava tão feliz!

E um cara que rouba beijos da noiva no meio do discurso do pastor é um cara apaixonado. Eu não acho que, um dia, ele vá merecer o mulherão que minha mãe é, mas também acho que ele sabe disto. E saber disso, quiçá, seja o suficiente.

A partir do que vi na cerimônia, cada sorriso que dei em relação a eles não foi nem ao menos minimamente forçado, como os anteriores eram. A partir de amanhã, no entanto, não posso afirmar que isto se manteria assim.

Amanhã é outro dia.

A única coisa que me prometi foi de, a partir desse novo acréscimo na família, tentar engolir todo e qualquer sentimento ruim acerca do par romântico da minha mãe perambulando pela casa que vai ser dele também.

Vou fazer isso por ela, mesmo que meu intuito seja de dormir com um olho aberto todas as noites em que ele estiver aqui. E mesmo que eu realmente que eu durma com um olho aberto todas as noites.

*

Após o casamento da minha mãe, eu fiquei algumas semanas fora de casa para deixar os dois sozinhos. Ela garantiu que não precisava, mas eu e o Will sabíamos melhor do que isto. Ele foi para a casa do amigo do Turner com ele, já que o professor passaria uns dias na cidade, e eu fui para a casa do Maze.

No restante das férias, acho que nenhum de nós ficamos muito tempo nas nossas próprias casas. Sempre estávamos na casa de alguém. Se não um de nós, então todos.

Soubemos aproveitar bem a casa do Alex também. Ele havia retornado antes dos pais, então tinha a casa só para ele durante um tempo. Não preciso nem dizer que foi confusão atrás de confusão, de festinhas com os amigos dele até festas maiores com mais pessoas do colégio. Quero dizer, agora eram pessoas da faculdade.

Apesar do Alex haver voltado ao “normal”, agora que passávamos mais tempo com ele, percebi que Mason estava certo quando disse que ele não estava lidando com tudo muito bem.

A primeira bebedeira não me pegou de surpresa, mas quanto mais se seguiram, mais eu percebia que havia algo de errado. Percebi que bebia demais e fumava mais do que o normal. Percebi, também, que cigarro não era a única coisa que ele fumava. E que os sorrisos eram desconfortáveis e, por vezes, falsos, quando os amigos falavam sobre faculdade, emprego, apartamentos e futuro.

Eu sequer conseguia imaginar como ele se sentiu quando, ainda em dezembro, foi na formatura e na festa dos amigos como convidado e não como participante. A gente evitou tocar no assunto, mesmo que nas fotos das redes sociais em que ele aparecia com os formandos do ensino médio, ele portasse um sorriso de orelha a orelha.

Nas fotos, é mais difícil dizer se um sorriso é falso.

Não é como se ele houvesse virado alcoólatra e bebesse durante os dias, mas ele certamente bolava mais festas que o normal e participava de mais delas como desculpa para tal. No restante do tempo, entretanto, ele apenas fumava seu cigarro normalmente e agia como ele mesmo. Talvez por este motivo eu tenha demorado a perceber que havia algo de errado. No dia a dia, quando sóbrio, era sutil demais para perceber. E quando embriagado, óbvio demais.

Passei a me questionar, também, se o que quer que houvesse de errado tinha completamente a ver com a reprovação ou se havia algo a mais incomodando-o.

Isto começou quando Alex finalmente falou melhor sobre as férias dele em Mallow Coast. Eu havia evitado perguntar-lhe sobre, porque não tinha certeza se eu queria mesmo saber, mas não precisei. Em determinado momento, dias após seu retorno, o assunto surgiu por parte dele e ele me contou sobre a viagem em detalhes.

— Ah, eu fiquei longe de casa o tempo todo, você sabe — falou, batendo o ombro no meu. — Sequer vi meus pais depois que cheguei lá. Fiquei o tempo todo com meus velhos amigos — reforçou, o que já havia comentado antes. Pensou por um instante antes de acrescentar: — Sinceramente, nem sei se posso chamar meus antigos colegas de “amigos”. Eu já não conheço mais eles, não tão bem quanto antes — revelou, um tanto triste sobre a constatação.

Assenti, ouvindo atentamente.

Estávamos lado a lado, sentados no tapete do quarto dele, as costas apoiadas nas poltronas, de frente para o videogame. Estava pausado e eu nem me lembro em que momento da conversa isso aconteceu, por estarmos entretidos com ela.

Mason e Ian ainda estavam na piscina lá embaixo, se recusando a sair, e Grace recém havia saído e subido para tomar banho antes de se vestir. Ainda podíamos ouvir o barulho do chuveiro no fim do corredor.

— Faz sentido — murmurei, chamando sua atenção. — Você ficou aqui por dois anos.

— É... — Suspirou, por fim. — Mas foi bom voltar às minhas origens. — Sorriu, ajeitando-se melhor no lugar ao dobrar uma das pernas e levar o joelho ao peito, abraçando-a. — Nos juntamos nas casas deles, fomos em festas, pulamos de Bangee Jumping e matei minha saudade da praia. Foi bom.

Mordi os lábios, para que eles não perguntassem o que rondava pela minha cabeça de novo e de novo, mas eles foram teimosos: — Dean tava junto?

Alex arqueou as sobrancelhas, relanceando-me com um meio sorriso e eu me recusei a desviar o olhar, querendo sustentá-lo a fim de que demonstrasse a trivialidade da pergunta em questão.

— Não — respondeu, por fim, depois de absorver a pergunta —, Dean não é amigo dos meus amigos.

Franzi o cenho, pensando um pouco se aquela resposta era o suficiente, mas não era.

— Mas viu ele? — insisti, fazendo Alex sorrir mais largo.

Ele virou-se na minha direção, os olhos escuros estudando-me com interesse. Desta vez, fui obrigado a quebrar o contato visual, encarando o controle que ainda jazia nas minhas mãos.

— Não estaria você com ciúmes do Dean, não é, Caleb?

Quase me engasguei, sentindo todo o sangue do meu corpo subir para a minha cara. Querendo arrancar aquele sorrisinho do rosto dele, fiz uma carranca tão feia que percebi o esforço que ele fez para friccionar um lábio no outro no intuito de não rir.

Se possível, isto me deixou com mais ódio ainda.

— Claro que não! — reclamei, cada letra de cada palavra pronunciando uma mentira desastrosa.

Talvez eu estivesse com um pouco de ciúmes, mas era porque eu ainda não tinha enterrado o que eu sentia pelo Alex. Não tinha orgulho disto, mas esse tipo de sentimento intruso, como o ciúmes, iria passar assim que eu conseguisse aniquilar o outro sentimento maior que dera origem a ele.

— Não é o que parece — retrucou ele, a voz divertida. — Por que tanto interesse se o vi ou não? — questionou, também, analisando-me mais de perto.

— Porque somos amigos — respondi rapidamente, chateado — e eu sou o único que sabe dele. Achei que poderia querer contar pra alguém.

Ora, isto não é totalmente mentira. Ou é?

Alex assentiu, perdendo um pouco do sorriso ao pensar a respeito por um instante. Um longo instante que me fez querer chacoalhá-lo para que deixasse de ser lento quando estou apressado. Só que então, um sorrisinho brincou em seus lábios uma vez mais.

— Então quer que eu conte o que fizemos?

Abri e fechei a boca algumas vezes.

Eu tinha que dizer que sim para manter a pose, mas não queria ouvir o que fizeram. Podia imaginar muito bem, com detalhes agonizantes que minha mente fazia questão de criar contra a minha vontade.

— Isso quer dizer que você esteve com ele? — perguntei, no lugar de uma resposta.

Alex me observou bem, antes do sorriso sumir de vez. Engoliu em seco, desviando o olhar para a tela pausada do videogame, sério demais para aquela conversa. Por um instante, cheguei a me arrepender de insistir.

— Eu o vi por tipo, meio segundo — sussurrou, virando o olhar para me encarar mais uma vez, sério, antes de sorrir amarelo. — Tá, foi mais do que meio segundo, mas...

Suspirou pesadamente, ficando em silêncio logo em seguida, perdido em pensamentos. Remexi-me no lugar, impaciente, e isto pareceu chamar-lhe a atenção, porque apressou-se em continuar:

— Mas conversamos por pouco tempo — revelou, dando de ombros. Embora eu pudesse discernir um pouco de chateação em sua voz, ele forçou um sorriso novamente, despistando-a. — Então não fizemos nada.

Isso quer dizer que tê-lo visto por pouco tempo o deixou magoado, pelo seu tom de voz.

— Ah — deixei-me murmurar, perdido. — Sinto muito.

Apesar de me sentir aliviado e satisfeito por um lado, por outro sentia meu coração apertar bem mais do que o faria se ele tivesse me contado que ficaram juntos. Porque o afastamento dos dois só deixou claro, ao menos para mim, o quanto aquele cara significava para o Alex.

Senti-me subitamente minúsculo.

Alex riu, me observando. — Sente?

Engoli em seco, olhando-o rapidamente antes de assentir. Não pude evitar me sentir irritado de novo pela forma como ele conseguia dominar qualquer conversa.

Quero dizer, por que outro motivo ele retrucaria minhas afirmações com perguntas o tempo todo?

É como se ele duvidasse do que eu digo, e se duvida de coisas assim, é porque duvida que não sinto nada por ele. É porque duvida que não gosto dele, que não sinto ciúmes dele e que não sinto muito ao saber que ele mal viu o seu não-exatamente-namorado, ficando chateado por isto.

Isso me fazia sentir horrível, como se eu não tivesse controle nenhum sobre a situação. Como se eu fosse transparente e fisicamente incapaz de mentir. Ao menos, para o Alex.

— Claro — menti, a voz baixa, engolindo em seco logo após.

A expressão de Alex mudou, quase de súbito, tornando-se um tanto culpada. Sério, engoliu em seco, e assentiu com lentidão, os olhos evitando meu rosto.

— Tem razão — murmura ele, forçando um sorriso, os olhos me relanceando com rapidez antes de focarem no jogo novamente, tirando-o do pause e tornando a jogar. — Obrigado, Caleb.

Franzi o cenho.

Tão bipolar.

Por que me provocar em um momento e no seguinte, se arrepender?

Se eu fosse parar para pensar a respeito, perceberia que desde o nosso beijo, Alex evitou qualquer provocação estranha como essa, qualquer provocação que ele não faria com qualquer um de nós e apenas comigo. Se fosse pensar além, perceberia que essa é a primeira vez desde o ano anterior, desde o nosso beijo, que eu o tenha visto "brincar" comigo desta forma novamente.

E no minuto seguinte, se arrependia.

Por quê?

Não que importasse, não que estivesse no topo de questionamentos sobre as ações estranhas do Alex e tudo o que o envolve. Haviam muitos questionamentos. Haviam muitas dúvidas. Minha cabeça bombardeava pensamentos ruins com relação ao Alex e não me refiro apenas àquele dia. Os dias que o seguiram continuaram assim.

Não conseguia deixar de pensar no inútil que eu tenho sido em relação a tirá-lo da minha cabeça. Não devia ser tão difícil vê-lo como apenas um amigo, mas estava resultando ser o pior dos desafios do mundo. Também não deixava de pensar que ele sabe disto, que sabe que eu gosto dele e que o vejo da maneira como vejo. Ao mesmo tempo, outro pensamento cruza com esse ao me garantir que ele pode até ter o palpite de que gosto dele, mas não pode saber de certeza já que eu nunca contei, e eu não devo deixar que isto aconteça nunca.

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Por fim, não conseguia deixar de pensar que muitas coisas ruins andam acontecendo com ele. Quero dizer, a reprovação foi a rainha dessas coisas, mas também havia esta mágoa de que mal vira o cara que ele gosta, e também havia a família dele, que não ficaria em Mallow Coast para sempre e voltaria para atazaná-lo.

Havia em mim, também, aquela culpa desde a reprovação do Alex. Eu sei que não faz sentido, e sei que não é verdade, mas eu não consigo evitar a sensação de que eu fui a causa desse desastre por havê-lo desejado. E, pensando sobre tudo isto, eu não consigo deixar de pensar que tudo começou quando parei de ver o Alex como um amigo. Quero dizer, algum dia eu o vi assim?

Se eu atraí tanta energia ruim para que ele ficasse, foi por causa do que sinto. Se eu passo o tempo todo pensando no Alex, é por causa do que sinto. Se eu provavelmente envio tanta energia negativa para este tal de Dean, é por causa do que sinto, e vá saber se não tem a ver com o afastamento dos dois.

Eu nunca devia ter baixado a guarda. Nunca devia ter visto o Alex do jeito que eu vejo. Nunca devia ter deixado que ele se aproximasse de mim. Agora, não há maneira de eu cortá-lo da minha vida. É simplesmente impossível, então eu vou ter que achar uma forma de cortar o que sinto, mesmo estando com ele quase o tempo todo.

Saímos juntos, andamos juntos, jogamos juntos e por vezes, dormimos juntos. Ele é meu amigo e é amigo dos meus amigos. Ele estuda no mesmo colégio que eu. Ele é parte da minha vida.

Céus, será que ele sabe mesmo o que eu sinto?

*

— Como assim “você não sabe nadar”? — questionou, certo dia, enquanto tínhamos uma espécie de festa da piscina.

Dei de ombros.

— Não sabendo — resmunguei, sem muita paciência. — Não é como se eu tivesse morado em praia ou tivesse família rica com piscinas em casa para nadar — alfinetei, vendo-o rir.

— Ok, justo — concordou, sorrindo de canto. — Mas é seu dia de sorte, porque você tem um amigo muito solidário que morou em praia, que teve piscinas fundas e que sabe surfar feito um deus, que pode te ensinar!

Fiz uma careta, olhando do Alex para a piscina e da piscina para o Alex.

— Nem a pau!

Alex tentou me puxar para perto dela. — Ah, vamos! Aproveita a oportunidade! — insistiu ele, com olhos pidões. — Olha esse sol, olha essa piscina, olha essa água geladinha e seus amigos se divertindo!

Demorei um tempo olhando de um para o outro antes de puxar meu braço e cruzar os dois no peito.

— Nem que me pague.

Alex bufou, desanimado, mas não desistiu.

Todas as vezes que tinha um sol lá fora ou que estávamos na casa dele ou que estávamos na piscina, ele insistia sobre me ensinar a nadar. Aparentemente, água, piscina e mar são as melhores coisas do mundo. Eu não esperava menos de alguém que morou e cresceu em uma praia, que gosta de cantar e tocar violão e não perde uma oportunidade de torrar no sol.

Não fui criado assim.

No fim das contas, acabei cedendo por desistência. Alex conseguia ser muito chato quando metia alguma coisa na cabeça, e essa foi uma delas.

— Tá bom — concordei, uma milésima vez, com as ideias inescrupulosas do Alex.

Nas primeiras vezes, ele apenas fez demonstrações na piscina e fora dela, enquanto o máximo que eu conseguia era sentar na borda e molhar as pernas. Quando finalmente entrei na primeira vez, fiquei agarrado na escadinha o tempo todo até me acostumar.

Foi só na oitava tentativa de que me ensinasse a nadar que eu tentei confiar nele o suficiente para que não me deixasse afogar.

Quero dizer, se for pensar nas coisas de forma simples e objetiva: é óbvio que o Alex não me deixaria afogar. Eu tinha plena certeza disto. Agora, na prática, é outra história. Talvez tenha a ver com instinto de sobrevivência, aquela sensação de terror ao pensar que absolutamente tudo pode dar errado e que por mais que ele não queira me deixar afogar, ele vai acabar deixando.

— Quase lá, Caleb — disse ele, como se ensinasse uma criança. — Agora o outro braço.

Ele se referia ao outro braço abraçado nas escadas porque eu não queria sair dali, enquanto eu arrisquei um deles para apoiar-me nos ombros dele.

Eu já sentia as mãos enrugadas devido ao tempo excessivo dentro da água, enrolando para não aprender coisa nenhuma. Respirei fundo, dando uma olhada para os demais dentro da piscina: Ian e Grace, separados por toda a longitude desta. Mason e Cristina, cansados de serem queimados pelo sol - porque aparentemente, protetor solar não funciona com nenhuma das peles pálidas deles -, estavam sentados nas cadeiras em torno da piscina, cobertas do sol.

Ok, eu consigo fazer isto.

Soltei a outra mão, enrolando-me no Alex de uma maneira muito vergonhosa, mas muito necessária. Minha dignidade que se explodisse, eu não ia dar chance ao acaso de morrer naquela piscina!

Senti Alex rir no meu ouvido, tentando se desvencilhar um pouco de mim para conseguir se mexer, ao menos.

Azar o dele.

Queria me ensinar tanto?

Agora que lide com isso.

— Meu deus, Caleb, você provavelmente dá pé aqui — informou ele, referindo-se ao fato de que eu estava com as pernas envoltas no corpo dele e que não as moveria dali.

Afastei o rosto apenas para encará-lo com os olhos estreitos.

— Você tá mentindo! — acusei, ofendido, ao apontar para a beirada da piscina, que estava mais cheia do que da última vez, quase transbordando. — O Mason tava na ponta do pé que eu vi! Ele é da minha altura!

Alex riu novamente e eu quis esmurrar o rosto bronzeado dele.

Nos minutos seguintes, ele andou por toda a piscina comigo agarrado nele, sem me mexer, para que eu me acostumasse. De fato, funcionou, porque eu fui relaxando aos poucos. O problema é que, ao passo que eu relaxava, o instinto de sobrevivência ia embora, e com ele, a ausência de importância que eu estava dando para a nossa proximidade.

Aquilo começou a se tornar um problema, a minha dignidade retornou com tudo e a vergonha junto dela, ao passo que eu percebia a forma comprometedora com a qual estávamos grudados.

— Ok, me ensina a nadar — ordenei, abruptamente muito interessado em adquirir esta habilidade para nadar para longe dele.

Desvencilhei-me, tentando alcançar a ponta do pé no fundo, mas assim que água chegava no meu pescoço, eu entrava em pânico e me aproximava dele outra vez.

Eu estava muito consciente do calor do corpo dele em contraste com a água, que tocava o restante do meu corpo, e a forma como a pele dele, ainda mais bronzeada neste verão, brilhava com o sol. Os cabelos pretos e molhados, que haviam crescido um tanto, quase tocavam suas sobrancelhas da mesma cor, pingando no nariz e escorrendo até a boca.

Me afastei de supetão, esquecendo por um minuto que estava dentro d’água e vi a expressão de espanto dele quando apressou-se em me segurar. A água já havia alcançado minha boca quando ele me puxou para o corpo dele, e meu coração quase teve uma parada pelo susto.

— Caralho, Caleb, não é assim que se aprende! — reclamou, preocupado. — Quase se afogou!

A partir daí, meu entusiasmo, que já não era muito grande, diminuiu a zero. Deixei que me ensinasse a boiar, me segurando o tempo inteiro, porque ao menos não ficava encostado totalmente nele e tinha que fechar os olhos devido ao sol, mas depois desisti por completo.

Que as aulas de natação se explodissem junto da piscina!

Mas a conversa estranha que ele puxou enquanto eu "boiava" - entre aspas, porque ele me segurara o tempo todo - ficou marcada na minha mente.

— Você é um gato, Caleb — comentou, absolutamente do nada.

Quase me engasguei, me remexendo na água, mas ele segurou meu corpo firme e pediu para que eu continuasse prestando atenção em boiar para não afundar.

— Um gato? — questionei, estranhando.

— Um gatinho dentro d’água — continuou seu devaneio bizarro.

Ao invés de ficar irritado, eu soltei um riso pelo nariz. Que devaneio mais aleatório!

— Por quê? — questionei, seguindo o fluxo.

Ele soltou um riso.

— Um gato, Caleb — disse, simplesmente, antes de detalhar: — Antisocial, inexpressivo, exigente, neutro... — numerou, e eu resmunguei um “ei!” antes que ele risse e finalizasse: — Cachorros são diferentes. São grudentos, puxa-sacos, desequilibrados, carentes e não conhecem amor próprio. Todo o amor que têm, dedicam a todos e não a si mesmos — comenta, soltando um riso pelo nariz. — Eu gosto mais de gatos — acrescentou, com um risinho, ao beliscar minha cintura. Reclamei mais uma vez, e mais uma vez, ele fez eu me concentrar em não me afogar. — Gatos são tão leais quanto cachorros, sabe? — Mas não esperou uma resposta. — Como os cachorros, eles sempre encontram o caminho de volta pra casa, a diferença é que eles saem livremente. Ao contrário dos cachorros, eles são independentes, autosuficientes e livres — sussurrou a última palavra, como se fosse mágica. Se eu pudesse enxergá-lo com o sol na minha cara, eu confirmaria que seus olhos brilhavam pela ideia. — Livres.

Pisquei, processando a informação sem entender por completo.

Alex, então, declarou: — Você é um gato, Caleb.

Franzi o cenho, não sabendo o quão exato era aquilo. Provavelmente nem um pouco exato, mas resolvi não retrucar a filosofia de sua mente.

— E você? — questionei, embora já soubesse a resposta.

Espiei por entre as pálpebras, levando uma mão, com cuidado, para tapar o sol. Percebi que ele olhou ao redor, sem notar que eu o encarava desta vez. Tinha os olhos presos na casa, o sorriso esboçado era um tanto triste, assim como a voz, quando rebateu:

— Não é óbvio?

Removi a mão do rosto e tornei a fechar os olhos, entristecido pela constatação dele.

Eu soube o que ele estava pensando sobre a liberdade quando percebi que olhou ao redor. Ele estava preso ali, e não livre. Preso naquela casa, naquela família, naquele luto pela irmã que parecia eterno e agora, também, estava preso naquele mesmo ano colegial. Sempre dependente.

Eu até que entendia a sua metáfora, se pensasse a respeito.

Alex é um cachorro, sempre foi. Grudento, carinhoso, carente, hiperativo, super-protetor, preocupado excessivamente com todo mundo e pouco consigo mesmo. Sempre por perto, sempre com contato físico, sempre animado para nos arrastar para alguma ideia maluca.

Realmente, só falta lamber nossos rostos como Magic costuma fazer!

— Cachorros também são livres — tentei, em uma fracassada tentativa de entregar a ele o que ele quer.

Alex sorriu, e eu sabia que ele tinha aquele olhar carinhoso, mesmo sem vê-lo.

— Cachorros são presos emocionalmente aos donos — frisou, brincalhão, mas seu tom mudou ao continuar: — Presos às suas casas, ao seu mesmo potinho de ração e ao mesmo jardim que se rolam a vida toda.

— Magic não era livre — comentei, excessivamente empenhado em dar-lhe algum consolo —, e nós o libertamos. Alex? — chamei, e ouvi um resmungo como resposta. — Cachorros também nascem em famílias ruins, sabe, e eles podem acabar em uma família boa. — Como ele ficou em silêncio, completei, mais específico: — Talvez os cachorros só precisam chegar na maioridade e terminarem os estudos para escaparem pela cerca, encontrarem um novo lar e serem livres.

Alex começou a rir aos poucos e terminou gargalhando. Dei um tapa nele o mais estável que pude para não atrapalhar meu equilíbrio.

— Não me bate — riu, me ajudando a equilibrar-me outra vez. — Tô rindo porque amei. — Estalei a língua, segundos antes que Alex estalasse um beijo molhado na minha bochecha. — Obrigado.

Joguei água na cara dele, envergonhado, mas isto acabou me desequilibrando e tive que enroscar-me nele outra vez, na base do pânico. Alex me abraçou quando o fiz, tornando tudo mais desconfortável ainda. Eu queria sair daquela piscina logo, sentia que ia me liquidificar ali dentro depois de mais de horas na aula que não deu em nada. E o Alex, feito o carente que é, ainda por cima resolve me abraçar!

— Você é mesmo um cachorro — comentei, esmagado em seus braços, agarrado nele para não me afogar.

— Eu sei — riu ele, estalando outro beijo, desta vez, em meu ombro.

Naquela brincadeira de aprender a boiar, eu acabei com toda a parte frontal do corpo queimada. Eu passei o protetor grudento e tudo, e de nada funcionou.

Aquela foi a mesmíssima última vez que entrei na piscina antes daquela noite horrível no fim do ano, em que estávamos brigados. Acho que, no fundo, eu tinha completa razão em associar piscina, água e verão a coisas ruins. Talvez, ainda, eu já estava prevendo o que estava por vir sem sequer perceber.

De qualquer forma, as “aulas” de natação destas férias foram deixadas para lá, já que deu coincidência de não nos reunirmos mais na casa dele antes das semanas de aula começarem, com exceção da última reunião que ele fez fora da piscina.

Apesar de tudo, as férias foram mais bem aproveitadas que as do ano anterior. Desta vez, tínhamos Grace, e ela tinha cada ideia maluca que simplesmente precisavam ser realizadas por todos nós. Desde as coisas mais simples como cinema, saídas para comer fast food, reuniões em casa para comer pizza e jogar tabuleiros, twister e mímica; até as mais divertidas, como parque de diversões, Paintball, patinação no gelo e Castelo de Terror. Eram eventos e locais que existiam na cidade há tempos e que perderam a graça depois da inauguração, mas não deixavam de ser divertidos em grupo, vez ou outra.

Nunca teríamos feito nada disso se não fosse pelas cabeças geniosas de Grace e de Cristina, que compactuava com algumas das ideias dela, como o Castelo de Terror. Se fôssemos apenas os garotos, terminaríamos fazendo o mesmo que sempre fazíamos nas férias: nada diferente do que fazíamos o resto do ano. Com exceção de Alex, que apoiou todas as ideias - óbvio -, apesar de não haver estado em todas elas.

No último fim de semana antes das aulas começarem, Alex nos juntou todos em sua casa. Nós cinco e toda a panelinha que, na segunda-feira, também começaria um novo ciclo. Alguns começariam empregos, outros já começaram, e boa parte deles começaria a faculdade, enquanto Ben já ia para o segundo ano desta.

Alex se esforçava, se esforçava demasiado, mas eu podia sentir na boca o gosto amargo da situação. Nós cinco estávamos indo para o ensino médio e todo o restante estava longe do colégio. E então, havia Alex, preso entre um grupo e outro.

Eu passei a festa inteira com o estômago revirado, e preferi ficar longe do álcool e da comida. Era seguro afirmar que eu ainda tinha certo trauma da minha primeira bebedeira.

Com um copo de refrigerante, só aproveitei a companhia dos demais, no que parecia uma rara reunião em grupo. Ao menos, seria raro reunir todos em um mesmo ambiente durante um tempo, já que cada um teria horários diferentes para os seus compromissos. Eu os ouvi conversando sobre isto. Aliás, ouvi a conversa deles durante a festa inteira. Alex também ouvia, mas embora participasse vez ou outra, estava bem menos falante que o normal.

A maior falação foi sobre a relação de Jake com o Bruno, o que eu entendo, porque era muito estranho vê-los juntos. Se eu, que já sabia sobre, achei estranho, só consigo imaginar os demais. Ian ficou chocado, o que gerou uma discussão com Grace que se estendeu por toda a noite. Além disso, falaram sobre estudos, emprego, apartamentos, cidades, as famílias e o mundo afora que os esperava. Mas o assunto sempre voltava para o Bruno e Jake, o que era hilário.

Mas o tempo passou e passou e passou.

A madrugada chegou e, com ela, o silêncio dos arredores, o cansaço e embriaguez pesados e o sono. Eu estava sentado pela última hora e Grace tinha a cabeça apoiada em mim. Ian estava podre de bêbado, atirado em uma cadeira de praia da piscina - ele estava tão grande que precisava de um lugar só para ele ficar -, e Mason e Cristina dividiam uma onde ela dormia no abraço do loiro.

A festa já havia chegado a um fim e quase todos os mais velhos já aparentavam estar bêbados e/ou atirados pelos cantos. A música havia cessado e ninguém queria levantar para ver o que havia acontecido, então a área em torno da piscina ficou estranhamente quieta, apesar das vozes das conversas mirabolantes entre eles.

Alex havia se enfiado dentro do escuro pátio entre as folhagens para fumar, e tudo o que podíamos ver era a fumaça. Quando retornou, juntou o violão apoiado no banquinho e sentou-se nele, meio atirado, ao dedilhar melodias aleatórias nele, como se escolhesse qual música tocar.

Como as demais vezes nestas férias, quando a festa chegava ao fim, Alex ficava muito quieto. Era como se batesse a embriaguez nele de vez e isso o deixasse meio melancólico. Os olhos estavam vermelhos - pelo álcool ou pela maconha, não tenho ideia - e pequenos devido ao sono, as sobrancelhas unidas em pensamentos ruins.

Para mim, mais do que as festas mirabolantes e a quantidade delas, mais do que as drogas lícitas e ilícitas excessivas e mais do que os sorrisos falsos e comportamentos estranhos, eram estes períodos quietos de fim de festa que mais deixavam visível o estado de espírito ruim no qual o Alex se encontrava. Eram estes momentos quietos, com os olhos avermelhados, as olheiras e o cenho franzido, que mais gritavam melancolia.

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Agora, ele sorria quando alguém brincava com ele sobre a seriedade incomum, largava alguma mentira em forma de piada e retornava àquela nuvem obscura em torno de si.

E eu, preocupado, observava-o o tempo todo.

A melodia começou a se repetir e percebi que ele havia ficado preso em uma só música escolhida antes de começar a murmurar a letra dela.

Houve um tempo
Em que eu estava sozinho
Nenhum lugar para ir
E nenhum lugar para chamar de lar
Meu único amigo era o homem na lua
E até mesmo ele, às vezes, ia embora também

Franzi o cenho, não reconhecendo a canção, mas percebi que Faye pareceu satisfeita ao ouvi-la, erguendo os braços em saudação e cantando-a baixinho junto do Alex, o que o fez sorrir minimamente. Ela alisava os cabelos da namorada, deitada em seu colo, que sorria para a música também.

Então, uma noite
Logo quando fechava meus olhos
Eu vi uma sombra voando alto
Ele veio até mim com o sorriso mais doce
Me disse que queria conversar um pouco
Ele disse:
“Peter Pan: é assim que eles me chamam
Eu prometo que você nunca ficará sozinho”
E sempre, desde aquele dia...

Alex sorriu, dedilhando um período de melodia sem letra, para estender o silêncio. Aquela parte da música parecia alegrá-lo de um jeito curioso, visível pelo curvar leve de seus lábios, embora a nuvem sinistra em seu entorno não houvesse dissipado nem um pouco.

Eu sou um garoto perdido
Da Terra do Nunca
Geralmente dando uma volta com o Peter Pan
E quando estamos entediados
Nós brincamos na floresta
Sempre fugindo do Capitão Gancho
“Corre, corre, garoto perdido”
Eles dizem para mim
“Para longe de toda a realidade”
A Terra do Nunca é o lar
Para garotos perdidos como eu
E garotos perdidos como eu
São livres

Observei-o sorrir, na ausência de letra que se seguiu apenas com o violão, quando Bruno brincou sobre a música ser depressiva demais para a noite. Anne concordou, mas Faye e Grace ao meu lado defenderam sobre ser uma música boa.

Eu concordava com ambas as partes, mas não me atrevi a dizer nada.

A letra em si já trazia uma melancolia trágica, mas a melodia lenta e a voz rouca do Alex a deixou ainda mais triste.

Ele me borrifou com pó de duende
E me pediu para acreditar
Acreditar nele e acreditar em mim
“Juntos vamos voar para longe
Em uma nuvem verde
Para o seu lindo destino”
Enquanto sobrevoávamos sobre a cidade
(A cidade) que nunca me amou
Eu me dei por conta
Que eu finalmente tinha uma família

Alex foi diminuindo o espaçamento entre as melodias quando a música foi chegando ao fim, ao mesmo tempo que o volume da voz diminuía e ficava mais grave e o som parecia ensurdecedoramente triste.

Como foi que a reunião durou por mais meia hora depois desta canção, eu não tenho a menor ideia, porque sentia o clima pesar em meu entorno e uma vontade de chorar de apenas olhar para o Alex.

Engoli em seco, sentindo o coração apertar a cada vez que ele repetia a última parte do refrão, e ele o fez por seis vezes.

A Terra do Nunca é o lar
Para garotos perdidos como eu
E garotos perdidos como eu
São livres

Cruzei os dedos antes que o violão deixasse repercutir por todo o pátio a última nota melancólica e desejei, com todas as minhas forças, que Alex pudesse ser tão livre quanto desejava ser.