CAPÍTULO UM

ESPIO MEU REFLEXO no vidro da janela do quarto, enquanto ouço o gotejar do chuveiro no banheiro que fica há poucos metros distantes de mim. Não por vaidade, mas, por curiosidade.

O rosto de uma pessoa pode mudar muito em nove meses. Esse é o tempo em que eu estou longe de Cittá. Atualmente moro em St. Lúcia, na serra.

Meu pai e minha mãe estão a mais de dois meses trabalhando no interior, ao qual nós – Eu, meu irmão e minha irmã – chamamos de Sítio.

No reflexo, vejo um rosto estreito, olhos grandes e longos como os de uma águia. Assim, como minhas sobrancelhas que parecem as asas de um corvo tomado pelo breu. Quanto ao nariz do reflexo, ele é delgado e levemente torcido para a esquerda. Não pareço mais uma criança, apesar de ter completado dezesseis anos.

Ouço o chuveiro fechar-se e o gotejar da água que caia sessar.

- Pronto – diz ele, ao prender seu corpo contra o meu. Seus olhos surpreendem os meus no reflexo. É tarde demais para desviar, ele saberia que há algo diferente, mas, ele não fica preocupado, ao contrário, ele sorri quando avalia nossos corpos unidos sendo refletidos pelo vidro da janela.

- Sim – respondo.

- Você está nervoso?

Por um momento, visualizo-me com duas vidas possíveis. Uma ao seu lado, a qual me bastaria. No entanto, a outra é baseada na total incerteza que a algum tempo brota em meu coração. Não sou o mesmo de nove meses atrás. Muita coisa mudou desde que eu deixei Cittá. Eu mudei.

- Dia difícil – digo. – Meu pai e eu...

- Sim, eu sei.

Ele beija meu rosto e desliza suas mãos até meu abdômen, retirando meu suéter vermelho lentamente. Meu peito fica nu e com o ar gelado do apartamento fico arrepiado. Seus lábios se chocam contra a minha clavícula, ele me acaricia como se nosso mundo estivesse acabando. Colocando-me em seus braços ele guia-me até a cama.

Somos dragados pelas rajadas de prazer que exalamos a cada toque, carícia e beijo retribuído. Meu membro rijo grita para sair da minha cueca. Nossas carícias vão ficando ferozes com o passar do tempo. Sinto a ferocidade com que ele puxa meu cabelo. Meus dedos tocam seu peitoral duro, liso e sou levado a inclinar meus lábios até seus mamilos. Ouço o arfar de sua respiração quando faço isso.

- Lucas – diz ele, puxando meu cabelo e erguendo seu rosto para me avaliar.

- Miguel – sussurro. Minha garganta parece estar inchada. Engulo em seco, jogando-me sob os lençóis meus olhos encontram o teto em gesso e depois o lustre, com luzes amarelas. Expiro o ar dos meus pulmões, e noto que Miguel está sobre meu corpo, com certa agilidade ele retira minha cueca e me deixa completamente nu.

Sinto-o colocando seu membro rijo no meu orifício anal, dou uma última olhada no rosto dele que está mergulhado no prazer e para seu peitoral que é definido. Volto meus olhos para o teto e o lustre, meus braços ainda permanecem abertos sob a cama. Meus olhos se fecham.

Abro meus olhos. Mas, estou no mesmo lugar. Uma sensação começa a brotar dos meus pulmões, é a falta de ar. Isso já vem acontecendo há alguns dias. Meu rosto está sob o peito de Miguel, parece que ele adormeceu. Seu sono é calmo como o de uma criança recém-nascida. Beijo a ponta dos seus dedos e aos poucos segundos vejo que ele abre os olhos para me fitar.

Ele sorri timidamente.

- Eu tenho que ir – digo. Meio indeciso. – Preciso tomar um banho antes, você se importa?

- Não, claro que não. – diz ele, ao me puxar para seus braços me dando um último beijo. – Não vá, fica mais um pouco!

- Não posso – respondo, tentando parecer calmo. – Meu pai e minha mãe estão mudando para Cittá. Hoje.

Seus olhos se estreitam em uma linha tênue criando um misto de dúvida e preocupação.

- Como é? – pergunta ele, me afastando. – Isso significa que...

- Que eu... – digo. Minha voz fica inaudível, mas, limpo minha garganta e as palavras saem como uma ordem. – Eu estou deixando St. Lúcia.

- Meu pai conseguiu o antigo emprego novamente há algumas semanas – argumento. – Nossas coisas já estão lá, eu só vim para me despedir de você.

Miguel se levanta da cama. Ele gira o pescoço na direção da janela coberta por cortinas de cetim bege. As veias de seu pescoço saltam à medida que ele contrai as mãos.

- Você não pode estar falando sério. – diz ele, seu tom de voz é sombrio. Ele não parece mais o mesmo. – Dois meses, cinco dias... – ele confere o relógio, sem olhar para mim – E onze horas de namoro e você vai embora?

Levanto minha cabeça e olho para ele que ainda está de costas para mim. Encaro seus olhos escuros e confusos que são refletidos pelo vidro da janela. Vou a sua direção para tocar suas costas, mas, quando estou perto o bastante ele se vira e me encara com os olhos cheios d’água. Minha mão recua.

Eu não o amo, mas, não consigo não me sentir mal fazendo isso.

- Ei! – digo, elevando meu tom de voz, ao me aproximar dele. – Ninguém mais do que eu queria que isso não estivesse acontecendo. Você sabe que eu nunca consegui dividir minha vida com ninguém, você foi o primeiro.

- Por que você está fazendo isso comigo? – questiona ele, com as lágrimas escorrendo por suas bochechas. – Fica comigo? Eu te amo... Tanto, Lucas!

- Eu gosto muito de você – comecei eu, tentando não chorar – Mas, tenho que admitir, essa mudança veio em ótima hora.

Eu percebi que eu havia falado o que não devia, consigo ver a desconfiança crescer no interior dos olhos dele. Mas, no fundo é a mais pura verdade.

- Você ia terminar comigo? – Miguel diz, elevando a voz ao agarrar meus cotovelos, com uma intensidade que eu nunca havia sentido. Meus olhos fitam os seus, meu... Meu medo surge com a sua expressão.

Acho que devo falar algo, mas, hesito. Posso ver a decepção e o pesar em seus olhos. E por mais distante que eu possa ser de qualquer pessoa, isso dói em mim. – Pode tomar o seu banho – ele diz, indo em direção à sala. – Bata a porta quando sair.

Ainda assim, me sinto mal e livre ao mesmo tempo. Uma liberdade que eu havia abdicado por causa dele e uma sensação de dor por deixá-lo. De imediato, meus instintos dizem que eu devo ficar. Ter uma vida ao seu lado. Eu não fui agraciado com o dom de dividir a vida com alguém. Por mais triste que Miguel esteja, eu estaria enganando a mim mesmo e a ele também se ficasse.

Fico algum tempo encarando meu rosto no vidro, mais uma vez. Posso ver as lágrimas escorrendo por minhas bochechas como o corte de uma faca que recentemente foi afiada. Levo meus dedos até meus olhos limpando-os. Vou para o banho. Sinto a água tocar o meu corpo, porém, ela se torna quase imperceptível. As lembranças do que aconteceu a pouco inundam meus pensamentos e eu não consigo tirá-las da minha cabeça. Miguel.

Quando chego até a sala, Miguel e eu olhamo-nos por um longo momento. Noto que suas mãos seguram firmemente um copo com suco de laranja. Os ombros e o pescoço estão diferentes, rígidos, duros como se estivessem sob grande pressão. Contudo, isso é insignificante. É a sua expressão facial que o deixa irreconhecível. Como se tudo o que há de bom nele tivesse se transformado num ressentimento taciturno e perturbador. Há dor em Miguel e eu sou a faca que está rasgando seu peito e dilacerando o seu coração. Eu posso sentir.

- Miguel?

- O que você ainda está fazendo aqui, Lucas? – diz ele.

- Eu só... Queria pedir... – digo, numa voz rouca. Mas ele não me dá tempo para completar a frase.

- Vamos acabar logo com isso – grita ele, sem camisa, vestido com um jeans qualquer e com um dos braços esticados sobre a parede que divide a sala da cozinha.

- Tudo bem. – sibilo, e minha voz torna-se mais branda.

Ele parece um pouco menos furioso agora que eu começo seguir em direção à porta. Olho de soslaio para trás, e sinto as lágrimas se formando no interior dos meus olhos. Ele retribui o meu olhar e sua expressão muda. Mas antes que ele possa falar algo eu saio do apartamento e bato a porta, descendo rapidamente o primeiro lance de escadas e ouço o som abafado do copo que Miguel segurava se chocando contra a parede, ainda assim, sigo em frente.

No quinto lance de escadas, eu paro em frente ao elevador que está no andar, entro nele, apertando o botão em metal com a letra P circulada de vermelho, segundos depois chego á portaria, cumprimento o porteiro que me conhece, e saio do prédio.

Do lado de fora do prédio, do lado de fora da vida de Miguel eu não posso deixar de me sentir livre, mas, o pesar por tê-lo feito criar expectativas a meu respeito ainda me machuca. E esse é um fardo que eu terei de carregar.

Corro em silêncio ao alcançar a rua central, retomando o fôlego, certifico-me de que estou a uma distância segura do apartamento dele. Meu coração palpita cada vez que seu nome vem à minha cabeça. Não posso fraquejar, não agora. Considero minhas opções, passando a mão por entre meus cabelos, avisto a torre do relógio.

Sigo em frente, olho para a torre, que é patrimônio municipal e constato que possuo algum tempo. Não posso dizer que me arrependo de ter mudado para St. Lúcia, se não fosse por ela ou o “ex-novo emprego” do meu pai eu não teria conhecido uma das pessoas mais importantes em minha vida, Amélia.

A garoa que cai em St. Lúcia é comum, exceto que hoje, ao contrário dos outros dias, está densa. Duas quadras a frente chego a Romero & Britto cafeteria, ela fica entre dois prédios altos e novos. O fluxo de pessoas é escasso, assim como o das ruas, minha mãe costuma dizer que St. Lúcia é uma cidade para velhos. Eu não concordo com ela. É uma cidade onde você pode construir uma família e ser feliz. Não que nas outras cidades você não possa, não é isso. Mas, aqui em St. Lúcia quase não há homossexuais e isso não agrada quem é simpatizante e vive aqui.

Abro a porta de vidro que desliza sob a canaleta de metal. O interior da cafeteria lembra a um bistrô Italiano. Aproximando-me do balcão onde são preparados os cafés expressos. Petúnia, uma mulher de meia idade rechonchuda se aproxima. Ela me atende desde que eu mudei para cá. Ela limpa a superfície do balcão com afinco e estende seus olhos até os meus.

- Então, é hoje? – pergunta ela, ajustando a maquina para o preparo dos cafés, após ter limpado o balcão. – Vou sentir a sua falta, não são todos os dias que a gente te um cliente tão assíduo.

- É, é hoje. – digo, fazendo um gesto com a cabeça. – também vou sentir a sua falta.

- Aqui. – diz ela, me entregando os dois cafés. – Um Latte macchiato e um café preto.

- A gente se vê, Petúnia – digo, sorrindo entre os dentes.

- Lucas? – chama ela, quando me viro. – Boa sorte, garoto.

- Obrigado. – digo, respirando fundo. – Eu vou precisar.

Saio da Romero & Britto, após ter pagado os cafés. Vou em direção à minha antiga escola. Com os dois copos de café nas mãos. Olho para o relógio em meu pulso do lado esquerdo e percebo que já está quase no fim da aula.

Acelero meus passos para que quando o sinal bater, eu já esteja lá. Esperando Amélia do lado de fora, com os dois copos de café. Um em cada mão. Como eu sempre faço, ou melhor, costumava fazer.

O sinal toca, aos poucos consigo ver a multidão se dispersando do lado de fora da escola, e então eu a vejo. Amélia tem cabelos curtos negros, suavemente ondulados, olhos castanhos escuros, lábios fartos e expressão facial marcante, ouso dizer que sua pele é tão lisa quanto uma porcelana.

Eu me aproximo dela, as lágrimas começam a ferver em meus olhos e meus lábios não me obedecem. Eles se abrem em um sorriso, não parece, mas eu acabei com meu namorado a menos de uma hora.

+++

- Você rompeu com o Miguel depois de ter feito sexo com ele. – Amélia diz, ela carrega uma expressão de espanto no rosto, mas, continua serena.

- No caso, eu não fiz sexo com ele. – Digo. hesitante. – Dessa vez, foi diferente...

- Como você está se sentido? – pergunta ela, num sussurro.

- Não sei. – digo.

Encaro Amélia. Ela encosta sua cabeça em meu ombro, nós estamos sentados na escadaria em frente ao relógio da torre. Não tenho uma resposta conclusiva para a pergunta que ela fez.

Sinto como se um forte temporal de emoções caísse sobre mim. O qual eu não sei decifrar. Passo os olhos lentamente à procura de lembranças da escola, de como os primeiros dias foram difíceis. Mas não as encontro.

- Bem, isso não é algo que se vê todo dia. – Amélia murmura.

- O quê? – pergunto.

- Fazer sexo com o “namorado”. – começa ela. – E depois terminar com ele.

Nossos olhos se encontram. Começamos a rir da situação, por mais trágica que fosse. Amélia compreendia a minha situação, ela sabe o meu segredo. Ela entende por que eu não posso ficar com ele.

Solto uma risada, mas, depois a abafo com a mão. Ela me abraça.

- Vai ficar tudo bem. – ela diz, colocando minha testa contra a sua. – Tudo bem.

As rajadas de remorso. Talvez seja isso o que eu esteja sentindo, elas fazem-me perder os sentidos. Porém, não desmaio, eu seria um fraco se isso acontecesse. Amélia segura minha cabeça, pressionando sua pele suave contra as minhas orelhas. Nossas peles ainda estão firmes, unidas por suspiros profundos. Minhas mãos estão cruzadas sob os joelhos, elas doem com o frio e o vento gélido que nos rodeia. Seus lábios se movem vagarosamente na direção dos meus.

Depois de algum tempo, seus braços apertam os meus ombros e ela mergulha seu rosto no meu peito, consigo sentir as lágrimas atravessando o tecido. Fico imóvel por um instante, no entanto, envolvo-a em meus braços soltando um suspiro.

- Ei. – digo suavemente. – Eu tenho que ir.

Ela levanta o rosto do meu peito e acaricia meu cabelo, empurrando-o para trás da minha orelha. Encaramo-nos em silêncio por longos minutos. Os dedos de Amélia movem-se distraidamente sob meus lábios.

- Vou sentir a sua falta. – diz ela, finalmente.

- Bem. – Minha garganta está seca, apesar de ter tomado um copo de café. Tento ignorar a onda de nervosismo que pulsa pelo meu corpo cada vez que ela me toca. – eu estive pensando, minha mãe disse que ela não cresceu e nem nasceu aqui, ela não pertence a esse lugar, assim como eu.

- Lucas! – exclama ela, com os olhos tristes balançando a cabeça. – Por favor.

- Hoje, enquanto eu caminhava para cá, eu pensei – digo, indagando. - E se... E se... Eu não tivesse conhecido você ou o Miguel?

Uma energia se espalha pelo meu corpo, como se eu estive cortando a mim mesmo. Meus olhos se inundam. Nós fitamo-nos uma vez mais. E sinto as lágrimas saindo de dentro deles.

- Eu só queria agradecer. – digo. Secando os olhos. – Por tudo, mesmo.

Sinto os braços de Amélia circulando minhas costas.

- Não se atreva a esquecer de mim. – diz ela, tentando sorrir. – Isso não é um aviso, é quase uma ameaça.

No final da rua vejo um táxi se aproximando.

- Você chamou um táxi para mim? – pergunto. Exaurido de tantas lágrimas.

- Sim. Eu pedi a ele que nos desse algum tempo. – responde ela, levantando-se e descendo as escadas. – Lucas, você tem que ir.

De mãos dadas, descemos as escadas. Rápida, ela abre a porta do táxi que ainda está funcionando. Amélia me abraça forte. Eu não sinto nada, apenas um vazio que toma conta de tudo ao meu redor. Não consigo dizer nada, na realidade, estou em choque. Meu estômago aperta quando vejo seu rosto. Seus olhos estão focados, parecem que podem explodir a qualquer momento.

Ela me empurra para dentro do táxi e bate a porta. Porém, o vidro está aberto.

- Espera! – digo. Ao motorista careca que está no banco da frente. – Amélia!

- Vá o mais rápido possível. – diz ela, olhando severamente para o motorista. Ele engata a marcha. – O que, Lucas? Quer ouvir que eu te amo, não é? Sim, eu te amo. Ligue para mim assim que você chegar lá.

Meus lábios se contraem em uma espécie de compreensão e meu peito infla. Eu continuo olhando para ela, mas, o táxi já está em movimento. Olho pelo vidro traseiro. Ela está ficando para trás. Com os braços cruzados, elevando uma das mãos, ela acena para mim. Ela está chorando, minha mão tem vida própria e faz o mesmo. Eu aceno para a minha pessoa. Amélia.

Sento-me corretamente no banco, colocando o sinto de segurança, no entanto, a essa altura já estamos dobrando a esquina. Seguindo em direção a minha antiga casa, meu antigo lar. O táxi faz com que a cidade vá ficando para trás. Ao longe, depois de algum tempo no interior do carro que fede a mofo, vejo minha mãe e meu pai, colocando as últimas malas em nossa Eco Sport. Pago o taxista e saio.

- Bem a tempo. – mamãe diz, passando um dos braços por de trás dos meus ombros.

Entro na caminhonete. Elena e Otávio, meus irmãos, já estão sentados lado a lado. Junto-me a eles. Meu pai dá a partida e vejo que suas mãos entrelaçam as de mamãe sob o console.

A caminhonete chacoalha quando entramos na interestadual e aos poucos as luzes da cidade vão ficando para trás, assim como, minhas angústias, minhas perdas e meus erros.

O que quer que tenha acontecido comigo durante esses meses, me fez mudar. E pela primeira vez, em muito tempo, eu não sei o que esperar do amanhã.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.