Lágrimas

One-shot - Lágrimas


Era tarde da noite, com a lua alta no céu e as estrelas cintilantes. Shion andava distraído pelas ruas, em direção ao que antes era considerado o centro de No.6.

Pensava em como sua vida andava nos últimos anos. Depois que Nezumi deixara-o, ele teve a feliz surpresa de Safu voltando; os pais da garota haviam morrido com o desabamento do muro, já que muitos destroços rolaram para dentro da cidade, e ele ofereceu sua casa.

Nos primeiros três anos ele havia se esquivado de toda e qualquer investida da garota que desesperadamente procurava por mais afinidade. Ele tinha em seu peito a esperança de que o escorregadio rato que detinha seu coração voltasse. Mas ele nunca voltara, e no quarto ano Shion se envolveu pela primeira vez com sua melhor amiga. A criança já a via como mãe e ao rapaz como pai, sua própria mãe o pressionava por mais crianças na casa e Hamlet, a única coisa que ligava-o ao ex-ator – o chamava assim pois não sabia se ele ainda fingia-se de mulher nos palcos ou se havia arrumado um emprego que mais condizia com sua personalidade arisca –, havia deixado de funcionar há algum tempo, provavelmente uma falha mecânica que seu criador resolveria em poucos minutos, e o albino até tentaria, mas como leigo no assunto tinha medo de causar algum dano irreversível ao pequeno companheiro.

Ele ainda fazia visitas regulares à Guarda Cães, levando comida para a garota. Com o distrito totalmente abandonado, seus cães se recusavam a deixar o hotel, assim como a dona, mesmo que o rapaz tenha se oferecido diversas vezes para ajuda-la a achar uma casa mais próxima dos centros comerciais; ela temia a morte, e, se continuasse largada ali, com certeza esta não demoraria a alcança-la. O problema era que Shion descobrira a única coisa que assombrava mais a garota do que morrer, e essa era a morte de sua alma. Ela temia esquecer quem realmente era; o quê realmente era, como muitos fizeram ao se mudarem para a cidade.

De certa forma a entendia, pois, com medo de esquecer qualquer coisa sobre Nezumi – mesmo que soubesse ser impossível –, o pequeno visitava com certa regularidade o espaço subterrâneo onde vivera com o outro, regularidade essa muito superior as suas visitas à Guarda Cães.

Finalmente parou de andar, vendo que havia chegado à praça esverdeada. Havia uma silhueta ao longe, se afastando e misturando-se calmamente à escuridão. Se percebia nitidamente que usava um cachecol, assim como ele...

Ignorou, sentando no banco de pedras e tábuas de madeira. Apoiou os cotovelos nos joelhos antes de passar a sustentar seu queixo com as mãos, abaixando suas órbitas escarlates para o chão. Se sentia indigno de olhar para o céu, como se o turbilhão de sentimentos fosse prejudicar a calmaria do mesmo, e, nesse exato momento, ele viu um pedaço de papel amarelado no chão, dobrado de modo extremamente perfeccionista, mesmo que amassado. Suspeitou ser da pessoa, que já havia saído de seu campo de visão, e o abriu em busca de um nome que o levasse ao escritor.

Sentiu seu corpo congelar assim que passou os olhos pelo papel. Sua garganta tornou-se apertada e seca, suas pupilas ficaram estupidamente grandes, apenas para diminuírem consideravelmente em seguida, sua testa encheu de gotículas frias de suor e foi como se o mundo sumisse; só haviam ele e o papel, o papel e ele. Shion ainda demorou alguns segundos para entender o porquê da folha em suas mãos ter ficado gradativamente embaçada, até que tocou as bochechas, sentindo-as molhadas por debaixo dos dígitos. Usou a manga do suéter para secar o rosto e inspirou fundo, tentando se acalmar.

Era a letra dele.

Ele estivera ali.

E, propositalmente ou não, Nezumi havia deixado aquele pequeno pedaço de papel cair.

Queria correr atrás do rato, implorar para que voltasse para si, que concertasse Hamlet, que o levasse junto consigo. Agora fazia sentido: os passos vagarosos, o cachecol e a estranha sensação de familiaridade que aquela imagem o trouxe, levando em conta de que era exatamente o que acontecera cinco anos antes, na primeira vez que seu melhor amigo, e atual ex-amante, o abandonara.

Deteve-se. Se Nezumi quisesse ser encontrado, ele sabia onde ir. E caso não quisesse, Shion nada poderia fazer. Era algo que o quebrava, mas também era a mais pura verdade.

Voltou a olhar o papel, meio temeroso, meio ansioso por seu conteúdo.

-

“Diário de viagem – XX/XX/XXXX

Eu finalmente voltei para No.6, depois de cinco malditos anos.

Vim atrás de uma pessoa que eu amei muito, alias, ainda amo. O problema é que eu tinha medo. Ele começou, em certo ponto, a me ler fácil demais, e para alguém que cresceu sozinho isso foi deveras assustador. Shion era meu ponto fraco sem dúvidas.

Mas quando finalmente decidi procura-lo, descobri que, às vezes, a Deusa pode ser boa demais. Eles estavam ali, naquela casa em cima da padaria, ele, sua mãe, a garotinha que ele salvara quando bebê e... Safu. Shion, que tanto disse me amar, estava agarrado naquela garota, os dois parecendo querer se aderirem um ao outro, como um casal normal geralmente faz para mostrar para o universo o quão idiotas e melosos são.

E isso era estúpido, porque Shion só deveria agir assim comigo, mesmo que eu certamente o afastaria – afinal, ele sempre o fazia, e eu sempre me afastava; esse era nosso comum.

Mas lá estava aquela vadia, se agarrando nele. A Deusa foi boa demais por deixa-la viver, e que ela me perdoe em ir contra sua decisão divina, mas Safu deveria ter continuado morta. O mais longe o possível de Shion.

Não tenho o direito de reclamar, certo? Fui eu quem deixei No.6, fui eu quem deixei o albino para trás.

Acho que amar é isso, se sacrificar pelo outro. Ele parecia tão feliz enquanto aquela vadia garota se esfregava nele.

De qualquer modo, esse romance nunca daria certo. Shion foi a pessoa mais incrível interessante que conheci, e, mesmo sendo irritantemente fofo provocativo, sempre se esforçava para me agradar, tanto arrumando a casa como na cama. Foda-se, ninguém vai ler isso mesmo, eu posso falar do que eu quiser, como o jeito adorável dele de corar em qualquer situação em que incite mais a sexualidade, o modo tímido dele tirar minha roupa, o jeito erótico como ele gemia – principalmente quando escolhia ficar por cima, mas daí eu teria de citar a forma provocante com a qual ele mexia os quadris, rebolando, e em como ele jogava a cabeça para trás depois de gozar –, os pedidos suplicantes de “mais forte, Nezumi”, ou “mais rápido!”... Acho que eu ocuparia todo esse caderno descrevendo as mil e uma facetas dele durante o sexo, mas isso já está deixando meu pau duro e não estou a fim de me aliviar agora, bem em cima do telhado dela.

Essa é boa, eu estou me explicando para um maldito caderno. Há. Há. Há. Vou me internar.

Eu o deixei ir, porque não queria prendê-lo num relacionamento que não iria para frente. Inventei uma desculpa esfarrapada e caí fora. Ele era um ser quase perfeito, só com um defeito, que no final não importava realmente; ninguém é perfeito, mesmo que aquele maldito garoto com nome de flor selvagem esteja absurdamente próximo dessa definição.

Agora ele está feliz com outro alguém, construiu uma família. Ele nunca a abandonaria para seguir viagem comigo, eu sei. Embora eu honestamente preferisse estar errado. Ele não teria o mesmo espírito indomado de Julieta nem em quinhentas mil reencarnações; ele prefere os contos como o de Cinderella, fora de casa, mas nunca longe ou fora dos limites de seu “reino”, que abrange o Distrito Oeste e a área da antiga No.6.

Eu cheguei tarde demais, como sempre.

Acho que vou voltar e passar algum tempo com aqueles gêmeos estranhos nos arredores da No.5, pelo menos eles sabem o que o Povo da Floresta passou.

Olhe eu novamente me explicando para um estúpido papel.

Acho que vou me internar mesmo.

E, mesmo que eu não consiga esquecê-lo, tentar parar de pensar naquela flor idiota. Afinal, o sentimento vai ter que, assim como todos os demais, ser guardado no fundo da minha mente, não é?

Não é...?

-

Shion ficou surpreso ao terminar de ler. A tinta das duas últimas letras estava borrada. Seria possível que Nezumi, o grande e orgulhoso Nezumi tivesse chorado ao escrever aquilo? E ele havia ficado no telhado da construção habitacional/comercial onde morava?

Só de pensar no amado sozinho, sobre o telhado de metal durante uma noite fria, dormindo encolhido e se atormentando por imagens de si e Safu juntos...

Haviam também algumas palavras riscadas, mas ainda legíveis.

Mas Shion pensou em não correr atrás.

Nezumi estava tentando dá-lo uma chance de recomeçar sua vida, mesmo que estivesse sacrificando a própria felicidade. Afastou o pensamento de imediato, dobrando a folha e apertando-a contra o peito, ao passo em que suas lágrimas escorriam devagar pelo rosto pálido. Passou a ponta dos dedos na marca rosada na maçã de seu rosto, dedilhando o contorno com cuidado até desviar a rota para sua nuca, sobre uma pequena cicatriz escondida pelo cabelo. A marca do dia em que aquele rato de biblioteca – citando literalmente o apelido que usava para irritar Nezumi – salvou-o da morte pelas vespas.

E, naquele momento, percebeu-se que não se manteria são por muito tempo sem aquele que amava. Tinha uma localização, imprecisa, mas estava ali. Apenas precisava pegar alguns mantimentos em casa e pronto, poderia partir. Pro inferno que era noite, se Nezumi conseguia, Shion também conseguiria. Nunca mais ficaria para trás.

E as lágrimas derramadas sobre aquela carta eram sua promessa.

“Eu vou te alcançar, Nezumi”, murmurou baixo, com a voz engasgada e sofrida.

Mal sabia que, alguns metros à frente, escondidos pela neblina, haviam dois olhos azulados observando-o de modo machucado. Ele chegou antes que eu pudesse pegar aquilo de volta... E vai chorar, se acalmar e voltar para a vadia daquela Safu, suspirou, dando de costas. Pegou a bolsa de viagem do chão e ajeitou a capa e cachecol nos devidos lugares, recomeçando sua caminhada rumo à No.5.

“Eu te amo, Nezumi”, pensou ser sua imaginação lhe pregando uma peça e continuou a andar, do mesmo modo despreocupado de sempre, vestindo sua máscara de indiferença, mesmo que estivesse em frangalhos por dentro.

Mas, se tivesse prestado atenção, teria visto que as palavras realmente deixaram a boca do menor, mesmo que ninguém fosse ouvi-las.

Porque ele precisava deixar Shion ir-se.

Doí em mim também, seu idiota, resistiu a tentação de olhar para trás, finalmente passando pelos restos de destroços do antigo muro.

E partiu, sem olhar para trás.

Você merece algo melhor do que eu.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.