Lá Liberté

Cartas a uma psicologa chamada morte.


Eu não sou uma pessoa de palavras, nunca fui. Eu cresci rapido demais. Aos cinco anos já sabia ler e escrever, aos nove já sabia que os adultos fazem sexo. Aos dez já sabia o que eu queria ser quando crescer, e também já sabia o real motivo das coisas. Mas o incrível é que durante todo esse tempo eu sempre soube o que era a vontade de tirar a própria vida. Eu não quero que isso pareça clichê. Eu não quero que você pense "Ah, apenas uma outra criança que acha que por qualquer coisa, já deve cometer suicídio".

Desde os meus nove anos eu vou na cozinha de madrugada. Desde os meus nove anos eu analiso todos os dias a faca de cortar carne. E eu sento no chão e penso "O que eu tenho a perder?". Eu nunca tive muitos amigos. Até o final do 4° ano eu era espancada diariamente no colégio. As pessoas me xingavam. Minha única amiga era uma (com o perdão da palavra) retardada, que parecia mais um cachorrinho. Quando eu mudei de escola no ano seguinte, já conhecia todas as pessoas da turma, que fizeram o primário comigo. Eles me odiavam. Eles ainda me odeiam.

Eu consegui dois amigos maravilhosos quando cheguei lá. Gabriel e Gustavo. Um ano depois, o Gabriel se mudou. Ele era o único que me fazia feliz. O meu melhor amigo. Eu fiquei tão mal que achei que fosse morrer. Mas continuamos amigos até hoje. O Gustavo se mudou três anos depois, e voltou a morar aqui esse ano.

Totalmente mudado. Drogado. Sim, você não leu errado. Drogado e tosco.

Enquanto o Gustavo estava fora, eu arranjei um grupo de amigos maravilhosos. Outro Gabriel, Fernanda, Isabella e Gabriela. Eles conseguem dar um pouco de cor ao meu filme dos anos 20. Um filme sem cor e sem som. Fernanda com o seu jeito tão pensativo, Gabriela com seu jeito neurótico, Gabriel com o seu jeito estressado, e por fim tem a Isabella, que passa por muitos problemas, mas aproveita a vida o máximo que pode. Eu invejo eles.

Eu não estudo quase nada, mas sou uma aluna muito bem-sucedida. Uma das melhores do colégio. Às vezes eu sou tão pressionada para estudar que eu acabo querendo jogar tudo para o alto e me trancar no quarto. Eu choro todos os dias até cair no sono. Eu imploro para não chamarem meus pais na escola, após me verem chorando pelo menos duas vezes por semana.

As pessoas não gostam de mim. Não sei se é pela minha cara ou pela minha falta de carisma. Mas aqueles que gostam de mim provavelmente me descreveriam como uma pessoa "alegre, elétrica e feliz". Mas todas as histórias tem dois lados, não é? E agora eu estou finalmente podendo contar o meu.

Eu sei o quanto machuca ser filha de pessoas que não te enxergam mesmo que você esteja na frente deles pisando em seus pés. Uma vez a minha tia disse que famílias são bonitas apenas em fotografias. Eu realmente acredito nela.

Os meus pais me dão tudo: Livros, roupas caras, celulares. Tudo o que eu pedir. Mas tem coisas que eles não podem me dar, uma coisa chamada liberdade. Eu me sinto extremamente sufocada. Todos os dias da minha vida são cansativos.

Desde os meus dez anos eu sonho em fazer intercâmbio. Eu sempre quis. Meus pais sempre vetaram os meus planos. Eu sempre quis ser livre, viver uma vida diferente mesmo que fosse apenas por seis meses. Apenas por um ano.

As pessoas sempre acabam dizendo "eu te entendo". Mas acredite, elas não entendem. Elas nunca passaram por uma situação igual. Elas não tem o seu QE e nem o mesmo pensamento que o seu, para poder te entender.

Em janeiro desse ano eu comecei a namorar. Meu namorado é a pessoa mais incrível que eu conheço nesse mundo. Ele é um dos alunos mais aplicados do colégio, ele canta, é uma pessoa sociavel, é gentil e carinhoso comigo. Mas sempre deixam claro que eu não sou boa suficiente para ele. É frustrante e cansativo. Todos me comparam com a ex dele, e fazem o favor de falar que ele só está comigo porque somos parecidas fisicamente. Eu trato ele como um lixo e agora que eu percebi isso, penso em como eu posso ser assim. Um lixo de pessoa que maltrata a única pessoa que a ama.

Eu me sinto perdida. Eu me sinto cansada há anos. Até agora não tive coragem de acabar com a minha vida porque a minha prima disse que o suicída é uma pessoa egoísta. Eu não quero ser uma pessoa egoísta.

Em novembro do ano passado eu pesava 89kg. Agora eu peso 59kg. Essa diferença ocorreu após anos sendo xingada de baleia, de ter sido espancada por ser gorda. Essa diferença ocorreu porque eu parei de comer. Incontáveis as vezes que eu vomitei o meeu jantar, o meu almoço ou o meu café da manhã. Incontáveis as vezes que eu chorei por não poder comer as coisas que os meus amigos comiam. Incontáveis as compulsões que eu tive, de comer TUDO o que eu queria de uma vez só. Incontáveis as vezes que eu já descontei a minha tristeza na comida.

Desde pequena eu tenho o costume de escrever cartas me despedindo. Desde pequena eu tenho a mania de colocar tudo no papel, tanto que já ganhei vários concursos de redação. E tem algo que eu escrevi e que gostaria de compartilhar com você. Não, dessa vez não é uma carta de suicídio. Essas eu deixo para depois.

"Ainda bem que sempre existe um novo dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. Ainda bem que sempre existem novas metas e novos objetivos. Sem todas essas coisas eu acho que já estaria morta. Creio que todos temos dias ruins, assim como dias bons.

Quando falo de dias bons, não falo daqueles dias em que algo bom acontece, eu falo daqueles dias que não importa o quão tarde você tenha dormido na noite anterior e o quão cedo acorda pela manhã, mas você está energético e de certa forma feliz. Feliz só pelo fato de estar vivo. Feliz por poder pegar o mínimo que seja de Sol no rosto. Feliz por poder falar com outras pessoas.

Quando falo de dias ruins, não estou falando apenas daqueles dias em que algo muito triste acontece, como a morte de alguém. Falo daqueles dias que não parecem ter fim, que a pessoa que mais te faz feliz, te faz se sentir pior. Que tudo parece sem cor, tudo vira um filme dos anos vinte. Sem som e sem cor.

Mas também existem os dias em que você não sabe dizer se é bom ou ruim, e são os mais comuns. Esses dias são conhecidos por serem os mais perigosos, pois não importa o porquê, qualquer mínimo detalhe pode transformar o pior dia no melhor dia, ou o contrário.

Todo mundo merece passar por cada um desses dias pelo menos uma vez na vida. Não é justo uma pessoa ser feliz vinte e quatro horas, não é possível. Mesmo a melhor atriz ou ator não consegue tal proeza, de fato.

Mas não custa tentar. Não custa tentar fingir ter um dia bom quando se tem um ruim. Não custa tentar fingir estar bem. Não custa tentar estar bem. Não custa. Nada custa. Tudo custa. Custa seu coração. Custa seus sentimentos e também o fundo da sua alma. Custa o resto de massa cinzenta que sobrou depois de tanto tempo se segurando para não explodir. Ao mesmo tempo que não custa, custa.

Sempre custa. "

Falta algo em mim. Eu não posso dizer que sou feliz, mas também não posso dizer que sou infeliz. Seria muita hipocrisia da minha parte. Eu me sinto perdida. Eu queria desistir de tudo. Eu queria nunca ter nascido. Me desculpe compartilhar tudo isso com você, mas é a minha única saída. Eu estou no fundo do poço. A cada dez metros que eu escalo, vinte eu caio. Faz sentido? Não. Eu nunca vou conseguir sair do poço. Eu estou apenas gritando por ajuda. Gritando por ajuda através de um papel.

Eu só posso afirmar uma coisa: Não importe o quanto eu tente, eu nunca serei boa o suficiente. Eu queria poder ser invisível para ninguém poder me odiar. Eu queria ter uma capa da invisibilidade para impedir que todos saibam dos meus sentimentos. Uma vez aminha professora de ciências falou que a vida é repleta de fases, e precisamos passar por cada uma delas. Eu não sei se consigo. Para superar um obstáculo você precisa entendê-lo. Eu não entendo esse.

Eu devia sorrir mais, abraçar meus pais. Viajar o mundo e socializar, nunca reclamar e só agradecer. Fácil de falar e difícil fazer. Todos nós somos feitos de carne, mas precisamos viver como se fossemos de ferro. Afinal, as pessoas só derramam lágrimas para si mesmas, mesmo que pareça que estão chorando por outra pessoa. Pessoas geralmente só choram porque se imaginam experimentando a dor que a outra pessoa está sentindo.