Luzes do Norte

A Tormenta do Norte


Então devemos informar ao conde sobre essa perfídia! - Yngvar não hesitou. Sua expressão tornou-se subitamente séria, reflexiva e, claramente, indignada. Era óbvio que não esperava um ataque vindo dos sveats - não quando o verão tinha seu início e todas as tribos teriam sua chance de saquear todas as terras no além-mar.

O cavaleiro, por sua vez, respondeu um rápido "sim, milorde" e afastou-se. Amarrou as rédeas do cavalo que montava numa estaca de cerca e adentrou o salão sem a menor cerimônia. As coisas na vila deviam ser assim: rápidas, sem rodeios.

Yngvar suspirou.

– Perdoe-me, senhorita, mas devo retornar. Devo juntar-me ao conselho e mostrar a meu pai que estou preparado para este tipo de situação... Um líder jamais abandona seu povo. - embora seu tom fosse grave, o riso que escapou de seus lábios o traiu. Percebi que estava fazendo graça para que eu não me sentisse deslocada em meio à súbita situação e, com isso, decidi que ele seria, sim, um grande líder. Alguém por quem valeria a pena jurar lealdade. Alguém com quem qualquer um se orgulharia de lutar lado a lado.

– Devo acompanhá-la? - perguntou. Agradeci, e entramos novamente no ambiente abarrotado. Cada palmo livre era preenchido por uma exclamação, uma piada, uma história de guerra. Cada canto vazio era velozmente tomado pelo odor enjoativo característico de bebida. Não era preciso ser particularmente inteligente para concluir que não adiantaria de nada anunciar a marcha dos sveats naquela noite.

Senti imediatamente os olhos pungentes de meu pai cravados em nós, uma ameaça silenciosa que compelia nossos pés em direção à mesa. Ao aproximar-nos, Yngvar depositou um beijo respeitoso em minha mão, o tratamento adequado que um cavalheiro direciona a uma dama. Sentei-me junto a meus familiares, mas não antes de ouvi-lo sussurrar:

– Espero tornar a vê-la, bela dama.

E foi-se.

O olhar inquisidor de minha mãe não era feroz, mas sim confidente. Sempre soube que desejava o melhor para mim, e parecia aprovar que eu tenha conhecido o filho do conde. Tendo sido criada por ela, não é de se espantar que tenhamos mentalidades similares. Assim como eu, ela não achava que a melhor coisa a se fazer era casar o mais rápido possível com qualquer um que pudesse sustentar a família. Ela só se casara com meu pai após ter completado o décimo nono ano. Para ela, meus dezesseis não clamavam por um senhor e marido, mas sim para que me dedicasse ao que valesse à pena para mim. Claro que eu adorava isso. Não ligava para enfiar minhas canelas debaixo da água gelada de um rio contanto que tivesse em mãos uma lança. Não me importava em limpar a ferraria, desde que pudesse empunhar minha espada no fim do dia. Não pediria por nada além de um pouco da liberdade de que precisava para me tornar uma mulher forte.

Se minha mãe aprovava Yngvar, devia haver um bom motivo. Isto é, além do fato de ele ser capaz de me prover uma vida confortável, com criados, abundância de comida e sua presumível capacidade de me fazer gerar filhos fortes, espertos e, arrisco dizer, bonitos.

Felizmente, a atenção do pequeno grupo foi desviada de mim quando o conde e dois outros homens levantaram de seus lugares na mesa alta e desapareceram nos fundos do salão, em direção aos aposentos senhoriais. Se a saída deveria ter sido discreta, falhou enormemente, pois muitas cabeças foram viradas na direção dos três, seguidos de perto por Yngvar e o cavaleiro que trouxera a mensagem - aquelas que não se voltaram de imediato, fizeram-no após um sussuro ou cutucada. A grande maioria dos presentes ou conjecturou ter sido algo de pequena importância, ou não se encontrava mesmo em condições ideais de raciocínio, já que voltou sua atenção ao que estava fazendo antes. Porém, uns poucos mostraram certa curiosidade, uma minoria até transpareceu certa preocupação com a súbita reunião, como Aslak:

– O que pode ser tão urgente para interromper o banquete? - seu cabelo escuro estava sempre escorregando em direção ao rosto, de modo que, ao virar-se para nós, metade de sua face foi encoberta. Aquilo lhe deu um ar misterioso, ressaltado pelas sombras que as chamas das inúmeras velas projetavam nele e ao redor. Senti Thord enrijecer ao meu lado: tudo aquilo era tão novo para ele! Para ele e para mim, na verdade. A diferença é que eu sabia o motivo daquilo.

– Não faço ideia. - respondeu Sigurd, com um pedaço de carne de porco ainda na boca - Seja o que for, alguma hora vamos ficar sabendo, de qualquer jeito. As paredes têm ouvidos.

Talvez tenha sido uma peça pregada por meus olhos, mas por um breve momento seus olhos acharam os meus. Senti-me tentada a contar o que ouvira, sentada à margem do fiorde, e dar uma vantagem ao grupo. Só que... fazer isso seria como trair a confiança de Yngvar. Se seu pai preferira discutir a questão em particular ao invés de anunciar, quem era eu para soprar o gjallarhorn*?

***

De manhã, abri meus olhos para a luz morna do sol. O dia amanhecera quase quente e, com ele, Krossavik voltava à vida. A ceia da noite anterior ainda pesava em meu estômago, mas as nozes que minha mãe ofereceu pareciam tão boas que acabei pegando um punhado para mim. Não havia muito o que fazer que não envolvesse comprar ou trocar - como não tinha coisa alguma, resolvi me juntar a algumas mulheres que conversavam animadamente perto do cais. Hilda, uma amiga muito próxima de minha mãe, acenou para que me aproximasse.

– Astrid, querida! - ela me beijou as faces como quando eu era criança - Já está sabendo das boas novas?

Mais novidades?

As moças se entreolharam, e uma garota mais ou menos da minha idade, morena e ligeiramente mais baixa, que havia conhecido durante o dia anterior e se chamava Dagmar, anunciou:

– Awdin pediu permissão ao conde para celebrar nosso casamento! - ela parecia resplandescente. Fiquei feliz por ela, é claro. Mas... de novo e de novo, pareciam me acusar de trair os costumes por não ter como principal objetivo o casamento. Sei que não era bem por aí, afinal ninguém se intrometia em meus assuntos, mas muitas vezes me sentia assim, deslocada.

– Meus parabéns, Dagmar! - minha mãe surgiu ao meu lado e foi abraçar a moça. Fiz o mesmo, portando um grande sorriso.

Continuaram conversando, mas ficar parada ali começou a me agoniar. Até gostava de papear, mas assuntos fúteis nunca foram o meu forte. Pedi licença e fui caminhar pela praia. O dia estava verdadeiramente lindo. Deixei as ondas que quebravam molharem meus pés, a água fresca provocando arrepios deliciosos que subiam por minhas pernas...

– Se não é a moça que mal aguenta um copo de hidromel, meus olhos devem estar pregando-me uma peça...

Levei um susto. Uma voz harmônica me tirou de minhas divagações e, ao virar-me instintivamente, fiz com que a água salgada espirrasse em todas as direções.

...ou o que vejo é uma sereia** desastrada? - Yngvar riu, passando a mão pelo traje numa tentativa inútil de secá-lo. Portava uma túnica de um lindo tecido verde-esmeralda, cinto do couro mais refinado e o pomo reluzente na espada embainhada. Bastava a coroa para que fosse um rei.

– Oh, deuses, me desculpe! - tapei a boca com as mãos, ao mesmo tempo horrorizada e envergonhada pela trapalhada.

Yngvar dirigiu-me um olhar duro e abriu a boca para falar; o medo tomou conta de mim.

– Mandaria que fosse acorrentada ao mastro do próximo barco a partir - levou uma das mãos às costas - se não tivesse acabado de te comprar isto.
E me mostrou o que tinha dentro da mão. Um acessório de metal brilhante, retorcido como as raízes das àrvores, pedrinhas cintilantes ao fim de cada ramo.

– É para pôr no cabelo. Quando estiver usando ele preso. - ele explicou, meio sem jeito.

Não pude responder de imediato. Era maravilhoso, magnífico... do tipo que as damas mais abastadas podem se dar ao luxo de ter.

– É... lindo.

– Não gostou? - uma ruga de frustração se formou antre suas sobrancelhas - Minha mãe disse que não havia como não gostar, não entendo.

– Gostei! Claro que gostei. Só achei extravagante demais para eu usar. - toquei seu braço, pedindo desculpas.

Yngvar entendeu minha preocupação. Sorriu e avançou, inclinando-se um pouco sobre mim para prender toscamente o acessório na lateral direita de minha cabeça.

– Não sou a pessoa mais indicada para a tarefa, mas ainda sim está bonito. Aceite, por favor. Além do mais, o mercador não vai me devolver o dinheiro. Sinto muito, senhorita, mas não tem escolha: é seu.

Foi a minha vez de rir. Yngvar parecia sempre tão espontâneo! E ele genuinamente queria me dar aquele presente. Sorri e assenti.

Diria algo, mas o conde em pessoa apareceu ao lado do filho. Olhou para mim sem demonstrar emoção, seu olhar analisando cada parte de mim: o cabelo dourado preso de forma rude, as faces coradas pela eminência de sua presença, que contrastavam com o novo broche e o bonito vestido azul claro, cuja barra ainda estava molhada.

Virou-se para o filho, falando-lhe em voz baixa. Yngvar respondeu algo que não pude ouvir, e o conde retirou-se.

– Agora preciso ir. Em breve haverá um reunião na praça para tratarmos dos sveats. - pegou minha mão e beijou-a respeitosamente - Foi bom te ver.

– Igualmente.

Ele já estava a alguns passos de distância quando tornou para mim, dizendo:

– Ei, Astrid! Obrigado por não contar a ninguém o que ouviu ontem.

– Não foi nada.

***

Minha mãe esteve o tempo todo observando-nos discretamente do grupo de mulheres, tive certeza disso ao olhar em seus olhos. Sem trocarmos uma palavra, ajeitou meu cabelo para pôr o presente.

– Bem melhor, não acha? - mostrou meu reflexo na lâmina de uma pequena faca que levava escondida no cinto do vestido. Concordei.

– Então... o filho do conde já pregou os olhos em você. Não me surpreende, você é linda, e não digo isso só porque é minha filha.

– Mãe! - protestei. Detestaria ter aquela conversa. Mudei para um assunto mais útil - Viu o papai? Haverá uma reunião na praça. É importante.

– Quer dizer que ele já está te contando os assuntos políticos? - implicou - Venha, vamos achar seu pai e seu irmão.

Revirei os olhos e a segui.

Encontramos os dois numa taverna, bebendo com alguns companheiros de batalha de meu pai, Sigurd e Aslak entre eles.

– Halla! - cumprimentou um homem de cabelos loiro escuros, largo como uma porta e coberto de marcas; cicatrizes.

– Olá, Oystein. O sol ainda nem bateu na metade do céu e já estão entorpecendo os sentidos?

Todos riram, menos Thord. Aliás, ele mal parecia saber o que estava acontecendo.

– Thord está aos poucos provando da vida de um homem - riu meu pai. Meu irmão sorriu. - Por que não vai deitar um pouco? - sugeriu a ele.

Troquei olhares com minha mãe.

– Não há tempo para isso. Em pouco tempo vai haver uma reunião na praça, e todos devem ir.

Então avançou para pegar uma jarra de água no meio de mesa e jogou uma parte do conteúdo em Thord, que protestou, voltando a si.

– Vai secar. - falou, dando de ombros e me puxando pela mão para o lado de fora do estabelecimento.

A notícia do encontro se espalhou como fogo em palha: logo depois de nós, mais da metade da vila apareceu na praça. de imediato - os outros foram chegando depois Ficamos com um bom lugar, na segunda fileira. Logo foi a vez da comitiva chegar e dar início ao pronunciamento.

– Notícias de última hora chegaram ontem após o banquete. - anunciou o orador da lei, projetando sua voz em todas as direções - Testemunhas denunciaram uma invasão ao norte de nosso território.

Um burburinho percorreu as fileiras. "Então foi isso!" ouvi alguém exclamar.

– Os sveats foram primeiramente vistos em Royrvik, a noroeste. Tomaram algumas fazendas e fizeram alguns de escravos. Estão avançando em direção a Overhalla, com ritmo menos intenso. No entanto, não devemos subestimar o inimigo.

Alguns gritos de revolta puderam ser ouvidos. O homem pediu silêncio uma, duas vezes, e o conde falou:

– Pode ser que os bastardos só queiram roubar o gado e outros itens, mas duvido que seja somente isso se fizeram escravos. Portanto, venho pedir que decidam: devemos tentar resolver diplomaticamente? Ou, se formos atacá-los, o faremos logo ou esperaremos que façam outro movimento?

A congregação se transformou num pandemônio. Discussões assíduas e brados de vingança tomaram conta do lugar. Entretanto, todos pareceram concordar, por logo um homem destacou-se da multidão e falou:

– Concluímos que devemos formar um exército e atacar o quanto antes. Não vieram até nós para discutir novas fronteiras ou a troca de bens, portanto tratá-los como bons vizinhos seria uma desfeita aos que já sofreram.

Todos calaram-se, na expectativa da resposta do conde.

– Então vamos à batalha. Está decidido. Todo homem que saiba empunhar uma espada, machado ou lança com o mínimo de decência deverá se apresentar a mim em quatro dias. Valgard - o cavaleiro da noite anterior deu um passo à frente - quero que leve já a notícia a todos que não vieram para o banquete. Quanto aos ferreiros - olhou para meu pai, então para outro homem - estão incubidos de armar o exército. Reunião encerrada.

Então haveria guerra. Não era algo que estivesse esperando com particular entusiasmo. Por mais que tentasse afastar esse tipo de pensamento, não pude deixar de ter um mau presságio.

*Gjallarhorn é o chifre que Heimdall, deus que guarda bifrost (a ponte entre Midgard e Asgard), usa como trompa para anunciar a chegada dos inimigos gigantes de Jotunheim e, também, quando tem início o Ragnarok. Dizem que seu sopro pode ser ouvido por todos os nove mundos.

** Diferentemente da maioria das mitologias, a nórdica tem as sereias como criaturas bondosas e belas. Quando não estavam ocupadas relaxando em uma pedra ou penteando seus longos cabelos, eram responsáveis por avisar os navegantes de tempestades e outros perigos. Além disso, era dito que podiam adivinhar episódios futuros, por isso a atmosfera melancólica que habitualmente as rodeava.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.