Lua Minguante

Capítulo II – Nova Vida


Eu me encolhi no canto da casa, os meus braços desnudos abraçavam de forma protetora as pernas pálidas e frias. Olhei em volta do pequeno cômodo perturbada tentando descobrir o que diabos havia acontecido e o porquê de várias vozes me cercarem com gritos agoniados.

Fechei os olhos e meus lábios formaram uma linha reta enquanto eu forçava minha mente a pensar algo coerente que não inclua a queimação constante em minha garganta.

Pense na noite passada, ordenei a mim mesma numa tentativa de distração, lembre o que aconteceu.

Mas nada vinha a mente, justo em um momento como aquele, parecia que algo estava de certo modo bloqueando minha memória como se para isso eu precisasse atravessar uma neblina densa para enxergar algo.

Eu balancei a cabeça e o odor do lodo e da terra molhada invadiram minhas narinas e eu me obriguei a trancar a respiração enquanto descruzava os braços e enfiava meus dedos nos pisos de madeira. Para minha surpresa ele se partiu com esse gesto e, assustada comigo mesma, acabei tombando para o lado esquerdo.

Virei minha barriga para cima e passei a encarar o teto, eu conseguia ver cada defeito nos encaixes amadeirados que cobriam o possível teto. Soltei um riso irônico enquanto ainda tentava abafar um pouco os gritos ao meu redor.

“– Você é cega, Bell – eu me lembrei da constante ofensa – Por isso usa essa coisa aí”

Eu ouço um urro e um constante bombear acelerado e soltei a respiração e como consequência meu rosto se virou de modo involuntário para um corpo ao meu lado direito.

O tênis Converse berravam em sua cor vermelha e a jaqueta jeans cobria uma regata escura. Era uma garota, disso eu tinha plena certeza, porém o peito subindo e descendo em movimento constante me fez ficar um tanto apreensiva. Uma parte racional do meu estranho cérebro dizia prenda a droga da respiração, pare de observar a garota enquanto uma parte irracional ordenava de forma constante que eu pulasse em cima daquilo antes que me cause algum dano irreversível. Céus, era tudo tão confuso.



Haviam se passados exatos trinta e dois minutos e quarenta e sete segundos desde que eu havia acordado e oito dos onze gritos anteriores haviam cessado. Eu agora já havia me acostumada aos corpos se contorcendo e especialmente aos gritos irritantes, meu novo desafio agora era a queimação constante e os olhares de alguns rostos confusos de olhos vermelho rubi.

Franzi os lábios e me encolhi um pouco mais contra a parede tentando ignorar a sensação dos olhares constantes de uma criança presente no grupo. Ele não poderia ter mais que seus catorze ou dezesseis anos, não digo isso apenas pelas roupas de alguém que parecia ter acabado de se rebelar, seus cabelos eram cheios e castanhos caídos em uma parte do seu rosto infantil. Por um momento senti pena dele, a mão pálida estava contra sua garganta enquanto seu rosto se contorcia em uma careta, ele precisava de ajuda.

Uma garota ruiva que estava a exatos quarenta e cinco graus a partir de mim olhava para o corpo que eu antes observava com desejo. Meus olhos passaram a observa-la com cuidado e logo soube o que iria acontecer. Ela se levantou em uma velocidade absurda e tudo o que eu consegui pensar foi em como tira-la do caminho.

Não! Ela era minha presa a parte animal rosnou em minha mente e eu imediatamente me joguei contra ela, meus braços frágeis ao redor de sua cintura a empurraram para o chão antes que ela chegasse ao seu destino e algumas rachaduras surgiram na lateral de sua cabeça fazendo com que ela mostrasse os dentes tentando abocanhar de algum modo qualquer coisa ao seu alcance.

Ela vai arrancar sua cabeça, arranque os braços dela alguma parte do meu subconsciente ordenou de modo autoritário e eu desviei meu rosto de perto dos seus dentes afiados. Coloquei um de meus pés contra o peito dela forçando seus braços que se separaram com o som de um cristal se partindo. Rosnei e sai de cima dela levando comigo seus braços por segurança recebendo um grito agudo e irritado em resposta.

– Ataque ela sem dar-lhe chances para se defender que suas pernas também vão embora – minha voz era aveludada, baixa e autoritária como se eu já soubesse o que fazer a tempos.

Me sentei ao lado do garoto que antes me observava e joguei os braços no colo dele quando senti um forte latejar, me obriguei a fechar os olhos e respirar fundo tentando fazer com que a dor passe sem muito sucesso. Para piorar podia sentir olhares receosos em mim como se eu soubesse de algo que eles não saibam, mas eu estava tão confusa quanto eles. Vi-me tomada por uma onda de horror, eu não sabia como havia agido de tal maneira.

Pude ouvir o estalar e o caminhar de uma pessoa e logo um novo odor preencheu o ambiente, olhares curiosos eram direcionados ao recém-chegado e eu nem me dei o trabalho de abrir os olhos. Ouvi o estalar de sua língua era reprovador e um tanto divertido, podia apostar que ele estava observando a ruiva sem braços.

– Vocês já causaram confusão – havia uma nota de diversão em sua voz e isso soou familiar – Mas vamos ao que importa, depois colocamos seus braços no lugar, querida.

Eu franzi meu nariz e percebi o último coração parando de bater e os últimos gritos acabarem, ela havia acordado e assim como os outros prendia sua atenção no forasteiro. O garoto ao meu lado me deu um leve empurrão e eu suspirei mantendo-me de olhos fechados, eu não queria olhar para qualquer um presente ali.

Outro empurrão mais urgente e eu ignorei até que senti uma respiração próxima a minha face.

– Arabella? – a voz aveludada do forasteiro me fez abrir os olhos de imediato. A primeira coisa que vi eram os olhos brilhantes e vivos que me observavam de forma vaga, seus lábios bem desenhados soltavam seu hálito gélido na altura de meu nariz.

Ofeguei quando finalmente prestei a devida atenção. Ele estava me observando um tanto irritado e eu fiz questão de devolver o olhar fazendo com que ele abrisse um curto sorriso e passasse as mãos pelos cabelos curtos e louros. Ele estava idêntico desde a última vez que o vi, mas sua pele estava consideravelmente mais pálida e duas grandes bolsas arroxeadas estavam abaixo de seus olhos.

– Riley – eu sussurrei ainda atordoada enquanto ele agora me observava um tanto raivoso.

– Preciso dos braços de Sandy – ele estendeu uma das mãos e eu revirei os olhos. Sandy, a ruiva, agora estava mais próxima e mostrava os dentes em um sorriso de canto.

O garoto ao meu lado entregou os braços assim que concordei com a cabeça sem nem por um instante tirar meus olhos do forasteiro recentemente identificado. Riley se virou e ensinou brevemente como ela devia encaixa-lo no lugar e em seguida a vadia ruiva – que seria provavelmente uma das pessoas com quem eu causaria muitas confusões – começou a lamber seu braço e com o auxilio de outro garoto o colocava no lugar.

– Agora que todos estão acordados acho que lhes devo uma explicação – ele agora passava os olhos por todos no salão – Vou ser bem direto para poupa-los de uma longa explicação. Tudo o que precisam saber é que vocês agora são vampiros e que não devem jamais sair à luz do sol – um murmúrio passou por todo o salão e eu gargalhei chamando uma considerável atenção para mim novamente.

– Qual é, não estamos mais na quarta série – eu balancei a cabeça ainda rindo esperando ser acompanhada, mas Riley me encarava sério.

– Alguns de vocês podem não acreditar, mas é a verdade. Vocês são deuses agora e não a escória – ele falava mais alto, cheio de confiança como se estivesse se divertindo com a situação – Vocês caçam a escória agora, se alimentam da droga do sangue dela.

Apenas aquela palavra parecia ter feito todos acreditarem. Minha garganta ardeu protestando e imediatamente soltei um grito agudo e baixo que fez nosso mentor abrir um sorriso satisfeito.

– Vamos, crianças. Um novo mundo se abriu para vocês esta noite – Riley deu a deixa e imediatamente um amontoado de corpos desaparecia em questão de segundos.

Eu ainda continuava ali, imóvel e sem me importar muito com o vazio repentino. Eles eram um bando de animais aceitando qualquer coisa vinda de alguém simplesmente desconhecido. Ouvi um suspiro baixo e alguns passos decididos em minha direção e me obriguei a fechar os olhos e respirar fundo tentando não me irritar com a nova repugnância que sentia por Riley.

– Não era para você estar aqui – o tom de voz mostrava que ele estava irritado e eu ignorei sua existência arrancando uma careta do mesmo – A culpa não foi minha.

– Claro não dar notícias durante oito longas e tediosas semanas é algo que qualquer pessoa responsável faz – eu carreguei ironia em cada frase e ao final de tudo ele fez uma careta como se estivesse acabado de levar um soco no estômago.

– Eu não podia voltar – agora Riley me encarava como antigamente, pedindo desculpas com aqueles olhos tão iguais e tão diferentes.

– Bom, parece que não foi nada difícil para você não é mesmo, Riley? – eu estava irritada com tudo aquilo. Não foi ele que teve de aguentar semanas em casas de amigos enquanto tentava fugir inutilmente de um lugar nostálgico. Ah, claro, mas quem se preocupava com isso? Ainda havia os panfletos e os cartazes com o rosto de Riley impresso em preto e branco com a palavra “desaparecido” berrando logo abaixo como um lembrete de que você estava sozinha.

– Tenho motivos para isso – por um momento pensei ter visto um lampejo apaixonado ali, mas ignorei completamente. Riley nunca se apaixonava.

– Bom saber disso – a decepção era palpável em minha voz e o olhar de dor de Riley foi a última coisa que vi antes de desaparecer, para minha surpresa, como uma bala.

Idiota foi a primeira palavra que me veio a mente quando parei para pensar um pouco. Riley Biers era um imbecil imaturo que por decisão própria resolveu sair de casa em uma noite nada gentil na povoada Seattle. Um bolo estava se formando em minha garganta e por um instante uma vontade imensa de chorar me atingiu em cheio. Infelizmente meu querido Biers não parecia ser o problema mais grave agora, uma das histórias de terror havia acabado de se mostrar em parte real há alguns minutos e segundo ele nós éramos a prova real disso tudo.

A prova real.

Essa parte parecia tão insana e inacreditável que desejei ter morrido naquela noite imprestável me poupando de toda a ladainha vinda de Riley. Claro, nada disso teria acontecido se ele não houvesse resolvido sair de casa e desaparecer sem deixar noticias me deixando naquela casa cheia de seres masoquistas que insistiam em pendurar o rosto do Biers mais velho em cada merda de parede.

Sem pensar muito chutei uma das árvores próximas a mim ouvindo um estalo alto e em seguida resolveu cair. Mais surpresas, que ótimo, insisti em ironizar esse pensamento em especial, já estava farta de tudo isso em menos de duas horas.

– Seu nome é Arabella, não é? – uma voz infantil me fez virar o corpo e encontrar o garoto que antes me observava. Ele coçava a parte de trás da cabeça e olhava para a ponta dos Alls Star gastas e sujas de lama assim como todo o resto da roupa dele – Ouvi o tal de Riley falando com você.

Ele estava envergonhado e isso era realmente muito fofo e, mesmo em um momento de completa confusão como agora, me permiti abrir um sorriso de canto dos lábios.

– E você é... – eu comecei esperando que ele terminasse a frase se apresentando.

– Elliot Benson ao seu dispor – o garoto, Elliot, fez uma reverencia e eu comecei a rir.

Os Benson eram de uma família poderosa em Seattle e conseguiam praticamente tudo o que desejavam. Podia imaginar como foi a criação dele desde o principio com tudo ao seu alcance, podia imaginar ele dizendo “Hey, papai, eu quero aquele Porshe 911 para amanhã eu conseguir pegar aquela gata filha da diretora”. Isso era tão fútil e me fez pensar o porquê dele ter se rebelado, ele tinha absolutamente tudo.

– Arabella Louise– eu sorri e ele balançou a cabeça e observou a nossa esquerda onde Riley falava com um dos garotos que provavelmente passaria as ordens para nós.

Por um misero segundo Riley virou seu rosto e seus olhos se cravaram em mim e em Elliot que estremeceu.

– Bastardo – resmunguei e Elliot me olhou surpreso.

– Você também não confia nele – não era uma pergunta, mas mesmo assim servia como uma.

– Você não tem ideia, Elliot.

E de repente tudo ficou quieto, o nosso grupo estava calado, Riley ainda olhava em minha direção e nem mesmo o som de qualquer respiração era ouvido. Elliot ficou rígido ao meu lado e eu franzi as sobrancelhas finalmente puxando ar para meu organismo. Grama, terra úmida e alguns animais, nada estranho. A atitude de Riley parecia ser exagerada e imediatamente a postura dele mudou ficando um pouco curva como se esperasse uma emboscada. Revirei os olhos achando a situação divertida e Elliot me encarou abismado.

Que merda está acontecendo ali? Estava muito estranha a atitude de nosso forasteiro que parecia querer atacar o vento como se ele fosse arrebentar nossos membros.

– Clima pesado – Elliot assobiou com a voz um tanto sofrida.

– Vamos – Riley ordenou e disparou como um vulto para o norte.

Os outros seguiram seu exemplo sedentos assim como qualquer um, pareciam um bando de lobos atrás de carne fresca.

Ficamos algum tempo ali, olhando cada um desaparecer sem deixar rastros.

O garoto pigarreou e eu o olhei com as sobrancelhas erguidas.

– Nós vamos atrás deles? – havia certo medo em sua voz, mas eu apenas balancei a cabeça negando. Não podíamos seguir Riley com suas mentiras, se fosse preciso eu aprenderia tudo sozinha.

– Eu conheço um lugar – murmurei baixo e ele concordou.

– Precisamos de roupas também – o pequeno Benson sorriu e eu disparei por entre as árvores com o baixinho em meu encalço.

Observei com atenção tudo a nossa volta enquanto corríamos. Havia uma cabana feita com tabuas desgastadas cerca de um quilometro e meio ao sul de nosso esconderijo, parecia inabitada e estável. Ignorei-a e continuei meu caminho para a parte afastada de Seattle.

As árvores ao meu redor passavam como borrões ao meu lado enquanto eu desviava sem muita dificuldade das mesmas. Elliot corria ao meu lado observando o céu sem estrelas e encoberto por nuvens grossas e escuras parecendo pensativo, como se estivesse com apenas um por cento de sua atenção na corrida.

Nos distraímos fácil, conclui quando chegamos a um muro de madeira branca e mofada. O cheiro do mofo me fez torcer o nariz de desagrado, velhos hábitos nunca mudam.

Dessa vez o Benson tomou a frente encaixando seus dedos nas falhas da madeira dando um impulso e começando a escalar em silêncio absoluto. O imitei com cuidado, eu nunca fora uma boa em escalar nem mesmo àquelas paredes com pedras artificiais próprias para isso. Prendi minha respiração apenas por achar ser o certo a se fazer, a parte racional de meu estranho cérebro ainda gritava para que eu me comportasse de um modo sensato.

Quando finalmente fiquei de pé sobre a construção consegui ver Elliot na borda olhando atento para um pescador que caminhava calmamente pelo ancoradouro. Pude ver que dentro da cabine haviam mais três homens sendo que apenas um deles parecia estar suficientemente sóbrio. Elliot puxou o ar e logo sua postura mudou completamente, suas costas antes eretas estavam curvas e seus dentes estavam a mostra, sua mão direita estava com as pontas dos dedos encostadas no telhado como se estivesse começando a dar um impulso.

Em instantes seus olhos se tornaram negros e ele já não estava mais ali, mas pousava sem ruídos atrás do senhor de má sorte que essa noite teria sua vida tirada. Ele o imobilizou facilmente e, se o momento não fosse completamente sério, eu começaria a rir da situação em minha frente. Uma criança de no máximo um e setenta de altura conseguia com maestria levar um homem robusto ao chão em questão de segundos. O garoto afundou os dentes na carne do homem e pude ouvir os gemidos de satisfação do garoto.

Minha garganta protestou com a cena e logo me vi soltando a respiração em um ato involuntário. E de repente minha mente ficou vazia e tive certeza que meus olhos estavam negros de desejo. Minha postura continuaria a mesma se eu não tivesse arreganhado os dentes e meus olhos passassem a observar com cuidado os movimentos dos outros três homens na casa.

Saltei dali e caí na embarcação com um rangido metálico que atraiu os homens imediatamente para fora. O sóbrio foi o único inteligente ao dar dois paços cautelosos para trás tentando se passar por despercebido, meu sorriso pareceu assusta-lo e logo ele correu para dentro. Alcancei-o antes que ele conseguisse ligar a embarcação.

O agarrei pelo pescoço jogando-o no chão de forma violenta e consegui ouvir sua respiração pesada. Sentei sobre seu corpo e joguei suas mãos prendendo-as acima de sua cabeça. E em menos de segundos meus dentes destruíam sua traqueia.

O sangue era quente, doce e revigorante. Aplacava cada vez mais o ardor em minha garganta e eu estava completamente agradecida por isso. Tudo acabou rápido e logo o corpo estava seco e eu ainda insatisfeita.

Minha mente pareceu voltar a ser simplesmente racional e eu joguei meu corpo para o lado ficando deitada ao lado do pescador. Eu estava insatisfeita, não havia quantidade suficiente no corpo daquele homem, mas felizmente racional.

Fechei os olhos e consegui ouvir Elliot se aproximando, os paços suaves e o andar animado demais até mesmo para ele. Parou ao meu lado e esperou que eu finalmente abrisse os olhos encarando os seus agora brilhantes e assustadores.

– Esta satisfeita? – ele arqueou uma de suas sobrancelhas e eu neguei.

– Você está? – devolvi a pergunta me colocando de pé.

– Pelo momento sim – seu corpo virou em direção aos outros três corpos atrás de nós – Acabei de tirar a vida de três homens – ele bufou e cruzou os braços.

– Inocentes? – perguntei e começando a caminhar e ele negou com um gesto de cabeça.

– Não sei, mas que seja – ele deu de ombros e pulou da embarcação e eu segui seu exemplo – precisamos fazer compras.

Desamarrei a embarcação e a empurrei deixando que ela seja levada pela corrente, com sorte moradores a encontrariam e levariam os corpos as suas famílias.

Elliot tomou a frente e correu agora em direção ao centro da cidade. Ele era rápido, muito rápido na verdade, era difícil acompanha-lo e comecei a pensar se ele tiraria proveito disso alguma hora. A essa altura do campeonato Benson havia se dado melhor com nossa nova situação do que eu que fazia questão de amaldiçoar Riley por toda a eternidade. Era até mesmo frustrante achar que uma criança sabia mais que você.

Certo, Elliot não era uma criança, tinha aproximadamente a minha idade e beirava os um e setenta humilhando completamente meus um e cinquenta e quatro. Ainda podia ser considerado baixinho, mas perto dele eu era literalmente uma anã.

Paramos em frente a uma loja imensa, os letreiros de neon da vitrine ainda estavam ligados iluminando algumas roupas femininas presentes no mostruário. Levantei meu olhar e encarei o letreiro acima de nós. B&C. Claro, o peste iria me levar em uma das maiores e mais lucrativas lojas da cidade, era de se esperar. Elliot passou as mãos em um dos bolsos da jaqueta e resmungou voltando a procurar seja o que for, em segundos ele tirou de outro uma única chave e a balançou na frente do meu rosto como se aquilo fosse um premio.

Logo revirei os olhos enquanto atravessava a porta de vidro escancarada.

– Você me trouxe para a loja da sua família? – meu tom de voz parecia ser histérico, Elliot se encolheu com isso logo em seguida dando de ombros.

– Melhor que ser preso – ele escorou a porta e desapareceu para uma das araras da área masculina.

Segui meu caminho para a ala feminina e peguei uma mochila dourada. Nada chamativo ironizei e me xinguei mil vezes por aquela ser a maior e menos discreta à vista. Passei a observar as roupas até parar em algumas discretas e que eram simplesmente parecidas com as que eu usava antes disso tudo. Camisas e regatas que chegavam até meus joelhos com estampas e frases simplesmente sarcásticas, duas regatas leves. Peguei também um moletom da GAP violeta com o interior xadrez cinza e as escritas em seu clássico branco. Arranquei outra jaqueta e uma japona militar curta e castanha. Eu não sei se precisaria de roupas, mas joguei tudo lá dentro jogando uma calça jeans no ombro e pegando um Alls Star verde musgo de uma pilha que encontrei no caminho.

Entrei em um dos provadores e arranquei aquele casaco de peles e o vestido amaldiçoando a meia arrastão.

– Finalmente livre – cantarolei prendendo meus cabelos em um coque frouxo e sem ligas.

Ouvi os paços de Elliot dobrando na entrada dos provadores e comecei a vestir a calça escura e justa que havia pego. Calcei os Alls Star e vesti uma regata gigante e azul que pegava um pouco acima de meus joelhos com alguma escrita em letras nada garrafais acima de uma paisagem noturna em tons de cinza. Suspirei e joguei a mochila nas costas pegando a roupa velha e abrindo a porta dando de cara com um Elliot que encarava tranquilo.

Começou a caminhar e tomou minhas roupas antigas atirando-as em uma lixeira de metal. O olhei com a sobrancelha arqueada e ele simplesmente balançou uma das mãos olhando de modo fixo para a entrada da loja.

Elliot havia se livrado das roupas sujas de lama e agora estava com uma camiseta justa e vinho coberta por uma jaqueta de couro escura e calças jeans largas, um coturno terminava tudo o deixando com a aparência um pouco mais velha. Ele também levava uma mochila, claramente mais discreta que a minha, e era um pouco maior provavelmente cheia de roupas já que após trancar a porta a partiu no meio e a jogou no telhado. Observei enquanto ele se virava para mim exibindo um dos sorrisos mais fofos de todo o universo.

– Vamos andando – ele olhou para o horizonte que já começava a aderir um tom mais claro do que quando entramos. Dei de ombros e comecei a caminhar com ele ao meu lado.

O silêncio constrangedor se instalou ali e eu assobiei alto, odiava momentos assim e isso não parecia ter mudado. Ele pigarreou parecendo desconfortável e eu ri nervosa e sem assuntos, era frustrante não ter algo para conversar com alguém que havia de certo modo te ajudado.

– Então... – ele começou arrastando bem o final – pegou o necessário? – perguntou quebrando finalmente o silêncio.

– Claro, obrigada, Elliot – eu abri um sorriso agradecido e ele balançou a cabeça rindo.

– Estamos aqui para isso – ele abriu um sorrisinho perverso – Sua mochila é tão discreta – ele começou a rir e eu revirei os olhos com um sorriso discreto.

– Claro, amor. Ela é tão grande quanto a sua – devolvi rindo e ele jogou as mãos para o alto gargalhando.

– Posso fazer uma pergunta nada discreta? – Elliot colocou as mãos nos bolsos e olhou para baixo, eu simplesmente concordei com a cabeça ainda confusa sobre o assunto – O que você fazia antes disso tudo?

Eu já devia esperar essa pergunta, ela viria mais cedo ou mais tarde de qualquer forma, mas não imaginava que me sentiria tão envergonhada de meu passado quase tão nítido quanto um quadro coberto por uma cortina de fumaça. Estaquei no lugar e notei que o garoto havia ficado um tanto envergonhado por provavelmente ter feito a pergunta indevida, levantei um indicador quando ele começou a abrir a boca e voltei a caminhar forçando minha mente a se lembrar.

– Eu não era uma prostituta se é isso que está querendo perguntar – havia uma leve ruga de preocupação na testa de Elliot – Cheguei bem perto disso, mas não consegui completar tal ato. Fui pega por alguém antes disso. Eu estava simplesmente conseguindo renda para correr atrás de alguém que acho que hoje nunca mais vou encontrar. Eu havia completado quinze anos poucas semanas atrás e foi quando ele sumiu, fiquei como uma doida atrás do infeliz até que meus pais resolveram dar uma de zombies pela falta que essa pessoa fazia, a partir daí saí de casa e passei a me virar sozinha e aqueles pedaços de pano era a única solução facilmente encontrada.

Os olhos de Elliot estavam fixos nas pontas dos coturnos enquanto digeria tudo o que eu havia acabado de dizer.

– Por que você está aqui? – eu perguntei e ele fez uma careta.

– Não é por opção própria se é isso que está pensando – suspirou e puxou sua mochila um pouco para cima – Eu fui passar a noite na casa de um amigo sem permissão e quando cheguei minha madrasta estava uma fera e para não precisar ouvir sermão dei meia volta e voltei a caminhar sem direção. Quando me dei conta estava no centro da cidade apagado em um banco de concreto e depois disso não lembro nada – balançou a cabeça e eu o encarei séria. Ele parecia ter o costume de fazer isso há tempos.

– Quantos anos você tinha? – perguntei.

– Estava prestes a completar dezessete se não me engano – informou pensativo – é difícil se lembrar da vida passada.

– Seu filho de uma égua! Você é mais velho que eu! – eu gritei e ele gargalhou alto.

– Claro que sou, achou que eu era uma criança só porque fiquei observando enquanto você arrancava os braços da garota? – gargalhou tão alto e colocou a mão na barriga como se ela estivesse doendo pelo esforço.

– Não me leve a mal, mas você estava com uma cara de criança encolhido daquele jeito que pensei que tivesse minha idade – Elliot revirou os olhos e puxou meu coque o desmanchando completamente só para depois passar as mãos ali embaraçando os fios dourados.

– Foi meu rosto angelical? – começou a piscar os olhos de modo exagerado e eu me obriguei a revirar os meus.

– Não, sua ingenuidade – abri um sorriso vitorioso e ele começou a caminhar.

O céu já tomava as cores mais claras dando a certeza de que em poucos minutos o sol provavelmente se aproximaria. Nunca acreditei em Riley por completo, tudo o que ele falava parecia um monte de besteira sem fundamento algum, mas decidi dar ao menos um pequeno e misero voto em relação ao sol. Todas as lendas afirmavam que eu morreria em contato a um mísero raio condutor de vitamina D.

Alcançamos a casa e logo ouvimos o som contínuo de gritos e música alta. Com receio e uma dose relativamente alta de medo marchei em direção ao meu novo lar com um garoto que eu não conheço nem a vinte e quatro horas que sabia praticamente metade da minha conturbada vida.

Isso não pode estar certo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.