Lord Of The Seas

Eu Sou o Áqueo - Parte 1


— Ooooh, ela lhe chamou de mamãe! – exclama Baiacu, arreganhando um sorriso preto desdentado (a falta de escovas de dente surtiu em cáries, que surtiram em dentes podres).

— Mesmo? – examinando a pequena criatura, Ruby parece um tanto duvidosa. Pelo visto lagostas não guardam rancor e aquela já perdoara Ruby por ter reagido escandalosamente quando se conheceram – Não sabia que eras capaz de falar lagostês.

— Claro que sou! Quase duzentos anos vivendo neste navio e sei falar trocentas línguas diferentes! – o homem sorri orgulhosamente, cutucando um dos espinhos do rosto – Sabe que outro dia eu consegui me comunicar com o Kraken? E vou lhe dizer, de todas as línguas o krakelês é o de mais difícil compreensão.

— Mais difícil até do que o francês?

— Ah com certeza, senhorita! O vocabulário do Kraken é bastante rebuscado. O bichinho sabe até contar de zero a cem! O capitão o ensinou. Capaz até de o monstrinho aprender a ler.

Seria uma vergonha, Ruby pensa consigo mesma, se até um monstro marinho pudesse se dar ao luxo de se tornar um leitor e ela não. Sejamos realistas: quais são as chances de tal fato acontecer? Exageradamente grandes, eu diria, considerando-se o fato de estarmos a bordo de um navio coletor de almas. Ora, eu sequer me surpreenderia se as gaivotas visitantes aprendessem a sapatear com o cozinheiro Jefferson.

Ruby concorda com aquela que vos fala. É exatamente por esta razão que ela, numa tentativa de amenizar seus pensamentos derrotistas, faz piada com Davy Jones.

— Achei que o capitão só soubesse contar até dez.

A porta da cabine bate estrondosamente, fazendo Ruby, Smee e a lagostinha bebê pularem de susto.

— Não sou lá muito bom com números, é verdade. – se pronuncia Jones, despreocupadamente (agora que o formato de sua testa retornara ao normal) – No entanto, senhorita Lucas, sei contar perfeitamente de 0 a 99 bilhões. Não é, Baiacu? Diga a ela! Diga a ela que toda noite eu conto as estrelas.

Smee se apressa em dizer (muito embora saiba que é mentira):

— Toda noite o capitão conta as estrelas. Uma por uma até chegar à última.

Ruby arqueia uma sobrancelha ao mesmo tempo em que refreia uma risada, pois ela, você e eu sabemos que o explosivo Davy Jones jamais teria a pachorra (um sinônimo para paciência) de contar estrelas.

— E quantas estrelas há no céu? – ela questiona, fingindo genuíno interesse.

Davy, que mancara vagarosamente até uma cadeira, se deixa cair na mesma, sua gordura tremulando descontroladamente devido à brusquidão do movimento. Ele apóia a perna defeituosa (a que foi parcialmente substituída por uma prótese de madeira, caso não se lembre) em seu banquinho capenga, enfiando o cachimbo na boca em seguida.

— Bem, anteontem eu contei 48 mil, ontem contei 25 mil e agorinha mesmo contei 74 mil. Elas se escondem de mim, as malandrinhas. Desse modo, não há como saber com certeza quantas existem – e ele sopra para o ar uma baforada de fumaça azulada, tentando desvendar o significado da expressão da senhorita Lucas (um misto de descrença e deboche).

Ela sorri de lado ao conter a gargalhada que estava prestes a escapar.

— Por que o senhor não conta também os grãos de areia existentes em seus domínios? – sugere audaciosa.

— Vê só, Baiacu... – as narinas de Jones se dilatam furiosamente diante de tanto atrevimento. Ele se mantém passivo, no entanto, como quem se encontra exausto demais para entrar numa briga – Vê só, Baiacu... Não bastou atirar-me um coco na testa, agora achou de tirar sarro da minha cara. Quer que eu a mande contar quantas bostas flutuantes há na fossa?

A última frase, que fora perigosamente sussurrada, soa bastante ameaçadora para nossa protagonista. Ela balança a cabeça energicamente, arrependendo-se de ter feito tal comentário.

— Não, senhor.

Davy torna a sussurrar entre os dentes (ops, entre os lábios, já que ele é desprovido de arcada dentária).

— Pois então vá papear com sua lagosta e não me chateie!

Ruby se encolhe instantaneamente, enquanto assisto hipnotizada ao serpentear da fumaça azulada expirada por Jones. Quebrando o repentino silêncio estabelecido na cabine, Senhor Smee volta os olhos pequenos para o baldinho no qual a pequena lagosta repousa calmamente.

— Sabe, senhorita Lucas, a coitadinha precisa de um nome – diz ele, ao que Ruby responde com uma pergunta.

— O senhor se refere a ela no feminino, mas como é que sabe que é uma fêmea?

— Ora, veja só como é ampla a cauda – ele aponta para a parte traseira do animal –, útil para carregar ovos. Dessa forma sabemos que é fêmea. Além do mais, ela me disse.

Assustadoramente calmo, Davy diz:

— Sabe, senhorita Lucas, me chateia o fato de a senhorita fazer tais perguntas a Smee quando teu capitão tem capacidade e conhecimento suficientes para tirar suas dúvidas.

E Ruby, que se encontra num estado de destemor, responde ao capitão com ousadia:

— Bem sei que o senhor é portador de uma incrível inteligência, senhor Jones, no entanto, não mais confiarei em suas palavras, pois não se pode saber quando o senhor está sendo sincero ou trapaceiro.

Smee é pego por uma intensa e exagerada crise de tosse, que nada mais é do que um disfarce para suas gargalhadas. Enquanto isso, a lagostinha mexe as anteninhas pensando que sua mãe adotiva é mesmo incrivelmente corajosa e não uma boboca apática como a lagosta que lhe deu a luz.

Quanto a Davy, este permanece impassível, tragando seu cachimbo com impressionante frieza. Pode-se dizer que o comentário de nossa protagonista não o afetou.

— Quando foi que tu se tornou tão audaciosa? – pergunta ele, soltando uma risada – Percebe-se que tu tem evoluído desde que chegou aqui.

— É de se esperar que as pessoas se tornem melhores quando caem em desgraça – retruca a moça, ao que Davy balança a cabeça em acordo.

— É verdade, eu me tornei uma pessoa muito melhor depois que fui fadado a capitanear este navio.

Eu sei o que você está pensando. Não é capaz de imaginar que Davy tenha sido pior do que é atualmente. Mas eu lhe garanto: ele era.

Ignorando as palavras do capitão, Ruby se volta para Smee:

— Não tenho ideia de que nome dar a ela, senhor Smee, alguma sugestão?

Davy abre a boca para sugerir “Anna Dorothy”, mas Baiacu é mais rápido na resposta:

— Ela tem cara de Ernesta.

— Realmente – Ruby concorda com um aceno de cabeça – Ernesta cai como uma luva!

— Então Ernesta será! – exclama Davy, mancando até a escrivaninha decadente no fundo da cabine e apanhando um livro muito úmido e mofado. Ele retira uma luxuosa pena de seu tinteiro, riscando o nome da lagosta numa das últimas páginas do livro (diante do olhar indagador de Ruby, que se pergunta o que diabos ele está fazendo) – O que foi? Todos os moradores desta embarcação são devidamente registrados em meu livro.

Antes que possa refrear a própria língua, Ruby cospe para o capitão:

— Afinal de contas, o senhor não consegue se lembrar do próprio nome, quem dirá dos tripulantes.

— Vê só, Baiacu, que criaturinha arrogante ela foi se tornar! – exclama indignado o senhor Jones. Não parece zangado, no entanto, mesmo quando Ruby torna a ignorá-lo ao voltar-se para Smee.

— Sabe, senhor Smee, ainda estou um pouquinho amedrontada pela Ernesta. Estas garras me assustam.

Smee emite uma breve risada.

— Logo tu se acostuma! Eu não sou lá muito afeiçoado a lagostas, mas esta conquistou meu coração.

Davy apaga o cachimbo, batendo-o com força em seu braço de garra.

— Sabe, senhorita Lucas, estou muitíssimo incomodado por sua impolidez – ele aumentara o tom de voz só um pouquinho (o que, em se tratando de Davy Jones, era o equivalente ao volume normal de um microfone) – Por que fala apenas a Baiacu se seu capitão está também presente na sala?

E Ruby, que apesar de botar para fora seu atrevimento ainda é um poço de educação, lhe responde tranquilamente:

— Sabe, senhor Jones, estou muitíssimo incomodada por sua intromissão. Por que achas que devo falar-lhe se a conversa não o abrange?

Quer que eu a mande contar quantos dentes tem o Kraken?

— Não, senhor!

— Pois então cale a boca! Vá ver se estou no leme, Baiacu!

— Sim, senhor! Com licença, senhor! – Smee sai da cabine aos trancos e barrancos, fechando a porta com uma leve batida.

— E tu não me olhe desta maneira! – resmunga Davy, dando as costas a Ruby, que o encara com um ar de reprovação. – Estamos perto de atracar. Recolha seus pertences e vá para o convés.

Nossa protagonista leva menos de um minuto para atender à ordem. Ela sai para a madrugada fria e úmida, na qual já há vestígios da luz solar. Alguns marujos a cumprimentam alegremente, ao mesmo tempo em que se põem a tagarelar em sua cabeça. Estão todos muito afoitos pela aproximação de seu destino (o Reino Áqueo, caso não se lembre) e toda essa afobação vibra por cada parte do navio, que desliza velozmente pelas águas do Atlântico.

Ruby põe-se a questionar os tripulantes, querendo saber que há de tão especial no tal Reino. Eis que lhe respondem com exasperada agressividade:

— Ora, se tu não vê nada de especial num castelão de pedra no meio do oceano não haverá de apreciar mais nada na vida.

— Logo tu perguntando uma coisa dessas? Tu que passa pela experiência de viver a bordo do Holandês Voador, capitaneado por ninguém menos do que Davy Jones?

— Mas que é que tu considera como especial, senhorita Lucas? Pra mim tudo no mundo é especial, incluindo a vida que me foi dada.

Ruby cora fortemente, percebendo quão ingrata e arrogante sua pergunta soara. Talvez a convivência com Karolyn (uma mal-agradecida de marca maior) tivesse afetado sua forma de enxergar as belezas do mundo. Graças aos céus, Smee intervém em seu socorro.

— Abrandem teus julgamentos, rapazes. A senhorita Lucas se equivocou, não perguntou por mal. Além do mais, ela nunca esteve no Reino Áqueo. Não está apta a entender nossa animação, portanto.

— Obrigada, Smee! – diz ela, muitíssimo arrependida por não ter medido bem suas palavras – Eu me interpretei mal. Só queria entender o que faz do Reino um lugar mais especial do que o Holandês, que sem dúvidas é o lugar mais incrível no qual já pus os pés.

— Oh espere até ver as águas termais do Reino, senhorita! – exclama Baiacu com exagerado deleite – Bem ando necessitado de um banho relaxante devido a... devido ao rigor exaustivo do meu trabalho.

(Ele ia dizer “devido ao tratamento que recebo neste navio”, mas lembrou-se de que Davy tinha alto poder auditivo e mudou a frase a tempo).

Ruby nunca entrou numa estância termal (muito menos eu e talvez nem você), mas bem sabe que este é um luxo que sua madrasta e meias-irmãs adorariam apreciar. Veja bem, houveram ocasiões em que Karolyn e as filhas compareceram às casas de banho dos nobres. Ocasiões das quais Ruby nunca participou, tanto por vergonha (afinal de contas, ela jamais ficaria nua numa piscina lotada de gente) quanto por descaso, porque, é claro, Karolyn nunca convidava a menina a participar dos eventos sociais que a família Wade atendia. “Quão invejosa Karolyn ficaria se soubesse que me banhei em termas naturais?”, pensa nossa protagonista.

Muitíssimo invejosa, eu diria, a ponto de agredir nossa protagonista pelo simples fato de esta ter ousado banhar-se em águas termais sem convidá-la.

Jones brota por trás de Ruby, assustando-a.

— Tu vai ver como um banho termal vai lhe fazer bem, senhorita Lucas. – diz ele –Minha estância termal tem propriedades terapêuticas. Fará bem a teu corpo e alma.

— Cap gosta de dar grandes festas na piscina termal, senhorita Lucas – comenta Baiacu – Não é, Cap? Tu sempre proporciona grandes festividades quando nos encontramos no Reino.

— Mas é claro! Darei muitas festas em ocasião de meu aniversário. Só espero que o Senhor Ígneo não ouse acabar com meus banhos termais. Aquele sacripanta sempre me sacaneia em meus momentos de lazer.

— Senhor Ígneo? – Ruby franze a testa, sem saber de quantos outros Senhores ainda ouvirá falar.

— O deus do núcleo terrestre! – explica Davy teatralmente, como quem apresenta um programa educativo – O senhor do fogo! E dos movimentos tectônicos também. Aquele que é o responsável pelos maremotos, abalos sísmicos, terremotos e erupções vulcânicas. Aquele que o Grande Senhor dos Oceanos não tolera!

Aquele que Davy Jones mais odeia. Retornemos ao passado, na cena em que Davy dependura Ruby pela borda do navio após esta lhe atirar um coco. Naquela ocasião, a Oceânide Nerissa ameaçara o pai.

— DEIXE-A! NÃO ME FAÇA INVOCAR AQUELE QUE TU MAIS ODEIA! – berrara A Primogênita.

Naquela ocasião você não fazia ideia, mas a Princesa Nerissa referia-se, naturalmente, ao Senhor Ígneo. Veja bem, o único que consegue conter Jones é aquele que se opõe a ele.

— Por que o senhor não o tolera? – questiona Ruby, que é mesmo incapaz de dominar sua curiosidade. Para nosso alívio, Davy parece gostar de satisfazer as indagações de nossa protagonista.

— Porque fogo e água não se bicam! – retruca ele.

— Apenas por isso? Pois tu não se encontra em vantagem podendo apagar fogo?

— Bem se vê que tu não usa seus miolos, senhorita. Que foi que eu lhe disse? Ele é responsável pelas mais diversas catástrofes envolvendo movimentos tectônicos. É de se esperar que tu saiba que maremotos são ocasionados pelo Senhor Ígneo e não por mim. Teu pai não lhe serviu de nada? Não lhe narrou as desventuras que passou no mar? Que tu acha que aconteceria se minha filha invocasse o Senhor Ígneo para me desafiar? Esse navio seria pego pelo maior tsunami da história! E então eu seria obrigado a enfrentar aquele verme sacripanta, ocasionando, quem sabe, uma verdadeira catástrofe e matando a todos nós.

Outra informação sobre Jones (que você já deve até ter notado): ele é extremamente exagerado e demasiadamente dramático. Ruby já notou essa característica do Capitão e se diverte ao replicar:

— Pensei que o navio fosse imune à destruição e que a tripulação fosse imune à morte.

— Tu não é imune a Epílogo, bem sabes – refuta Davy, incapaz de encontrar mais argumentos que justifiquem sua recusa em enfrentar o Senhor Ígneo.

Ora, ele bem poderia ter protegido Ruby do Senhor Ígneo, caso o enfrentasse. Veja bem, eu tenho um bom argumento para a recusa de Davy. A verdade é que o Senhor dos Oceanos teme o Senhor Ígneo.

Agora Ruby sabe disso. E sabendo que Ruby sabe, Davy põe-se a tagarelar para fazê-la esquecer do assunto. Durante os próximos minutos ele tecerá seus argumentos de porque as baleias são as melhores criaturas aquáticas (sem querer desmerecer o restante da fauna marinha); argumentos que, neste instante, não têm a menor importância para você ou para mim. É por isso que vamos dar um salto no tempo, para o momento em que Ruby, diante do falatório animado dos tripulantes, pergunta a Jones.

— Se o reino é tão grandioso quanto dizem, como é que os humanos não têm notícia dele?

— Obviamente, não é visível para os humanos. Apenas os crentes em Davy Jones podem vê-lo, o que é teu caso – ele explica, antes de soltar um bufo de impaciência – Veja quão atrasados estamos. Não fosse Epílogo e o Senhor dos Ares, a esta altura eu estaria tomando um banho quente.

De fato, após castigar Jones com um Ciclone, o Senhor dos Ares acabara mandando o Holandês Voador para muitas milhas de distância do Reino. Agora, porém, com a colaboração do Vento, o navio se aproxima do Oceano Índico (em cujo centro, caso não se lembre, se encontra o fabuloso Império de Jones).

Durante certo tempo, não se vê nada além da imensidão azul do oceano à frente e do céu que clareia acima de nossas cabeças. A bordo do Holandês, não levamos mais do que alguns instantes percorrendo o Índico. Na percepção de Ruby, cerca de três minutos e meio. Na sua, apenas alguns segundos.

Eis que, repentinamente, nossa protagonista, você e eu nos deparamos com uma extensa formação rochosa; um paredão de pedra que se ergue quilômetros acima, como uma alta montanha. Uma montanha cujo topo não podemos avistar, pois está encoberto pelas nuvens mais baixas.

Eis que, neste exato momento, o Holandês Voador vira palco para o rebuliço. Afoitos, os tripulantes põem-se a gritar, pular, dançar e até a escalar os mastros do navio. Jones compartilha do mesmo sentimento de euforia, abrindo um largo sorriso e dizendo:

— Aí está, senhorita. O Reino Áqueo!

Ruby não sabe se ri ou se chora. A paisagem montanhosa cutuca seu coração, levando-a a beira das lágrimas. Não é apenas a emoção de vivenciar um belo cenário natural. Veja bem, Ruby já conhece esta montanha. Porque seu pai, o finado Henry Lucas, também já esteve no centro do Oceano Índico e, sendo crente em Davy Jones, foi também capaz de ver o que estamos vendo. Anos atrás, ele narrara a visão daquela montanha à pequena Ruby.

— Uma montanha tão alta que não se pode avistar seu topo, pois ele é encoberto por nuvens. Um extenso paredão de pedra marrom-avermelhada, em cuja base se acumulam espessas algas. Em certos pontos da rocha há buracos e deformações, nos quais as aves marinhas constroem seus ninhos. Meu navio deu uma volta completa ao redor das montanhas. Um dos tripulantes as chamou de Montanhas Pardas, pois sua coloração se assemelhava à pelagem de um urso-pardo.

— Como o urso empalhado do Senhor Cooper? – perguntara a pequena Ruby, naquela época com seis anos.

— Exatamente! Demos a volta nas Montanhas Pardas sem que víssemos nada além de rochas. Eu diria que se tratava de um vulcão extinto, pois o paredão rochoso tinha formato arredondado. Teria de escalar as montanhas para ter certeza.

— Por que tu não o fez?

— Ora, porque não tínhamos equipamento adequado e as montanhas eram incrivelmente altas e escorregadias. Eu bem tentei subir até um ninho desocupado para apanhar lhe uma pena, mas meus pés acabaram enredados nas algas e eu caí no mar...

— Que pena... Algum dia tu me leva pra ver essas montanhas?

— Mas é claro que sim, pequenina! – e o Senhor Lucas lhe dera um beijo carinhoso na testa – Agora durma, minha princesa, durma com a promessa de que um dia tu verás as Montanhas Pardas com teus próprios olhos.

E a promessa se cumpriu. Não da forma que Ruby esperava porque, por um infortúnio, o Senhor Lucas falecera antes de poder cumprir sua palavra.

— Que tu achas? – Davy está perguntando a Ruby, que, emocionada, contempla exatamente o que seu pai lhe narrara – Magníficas as minhas Montanhas Pardas, não?

— Tu as nomeou assim? – diz ela, sua voz como um eco distante.

Jones balança a cabeça.

— Não. Treze anos atrás, um marujo as chamou assim. Comparou a coloração delas à pelagem de um urso-pardo. Mas disso tu já sabia, não é?

Ruby sorri, contendo as lágrimas. Limita-se em fungar, tendo a consciência de que Davy a encara.

— Teu pai era um crente. – continua o Capitão – Toda a tripulação dele era. De fato, o marujo que batizou minhas montanhas se encontra neste navio.

— Quem?! – Ruby arregala os olhos, pega pela surpresa. Alguém que conhecera seu pai! Alguém com quem ela poderia conversar sobre o homem que tanto amava!

Eu sei o que você está pensando. Não é Smee, com seu ar paternal. Não como Ruby acabou de pensar, tomada pela subitânea revelação. Ela repete a pergunta, começando a impacientar-se com o ar misterioso assumido por Davy. Ele solta uma risada, dando à protagonista uma dica.

— Não foi teu pai quem passou um tempo em Paris? – e antes que Ruby possa fazer ou dizer qualquer coisa, o Capitão agarra um de seus braços – Não há como prepará-la para o que está por vir. Respire fundo e não tema.

— O quê? – ela franze a testa. Davy a ignora ao ordenar que o navio afunde. Imediatamente, como sugado por um ciclone, o Holandês é puxado para baixo por uma força descomunal, que bem partiria a embarcação em pedacinhos, não fosse ela imune à destruição. Ruby só tem tempo de soltar um grito aterrorizado – EU NÃO SEI NADAR, CAPITÃO!

— Eu sei! – gargalha Jones, quando as águas invadem o assoalho do convés – Confia em mim!

— Respira fundo, senhorita Lucas! – grita Smee e Ruby atende à ordem bem quando a água lhe alcança o pescoço.

Dois segundos depois, o navio está inteiramente submerso e continua descendo para as profundezas, dragado por uma força invisível. Davy e o restante da tripulação se mantêm presos ao convés pelos pés, enquanto Ruby flutua acima do assoalho. Felizmente, Davy agarrara o pulso da moça, de modo que ela é arrastada junto com o navio.

É provável que você já tenha mergulhado numa piscina, rio, lago ou mesmo no mar. Se for o caso, talvez você conheça a sensação de ter os ouvidos entupidos pela pressão da água. Ou a aterrorizante sensação de impotência diante da impossibilidade de respirar. Ruby não sabe se grita em terror ou espanto. Não sabe se ri pela gostosa adrenalina que tomou todo seu corpo ou pela sensação de frio no estômago. Não sabe se teme nunca mais voltar à superfície ou morrer afogada nas profundezas escuras do Índico. Por fim, o que faz é soltar um grito maravilhado (que sai na forma de uma bolha), quando uma lula gigantesca se aproxima do navio.

— Papai! – guincha a lula em lulês, agarrando-se a Davy com os imensos tentáculos. Ela encara Ruby com seus olhões pretos – Então é verdade! Tu fez outro contrato!

— Sim, filhinha – responde ele, sua voz tão distante quanto se estivesse no fundo de um buraco – Esta é Ruby, Ruby Lucas.

Em resposta, a lula agarra Ruby com um dos tentáculos e põe-se a tagarelar com a coitada, que, obviamente, não consegue entender uma palavra. Um tanto apavorada, nossa pobre protagonista mal tem tempo de reagir. Após uma sucessão de bolhas, algas e um cardume de peixes, tudo o que ela consegue perceber é que o navio é novamente dragado para cima. A lula ainda tenta estabelecer contato quando o Holandês quebra a tensão da superfície ao emergir do oceano. Ruby engasga e tosse sofregamente, sentindo as narinas arderem conforme sugam o ar.

— SERÁ QUE NÃO PODIA TER ME AVISADO? (cof, cof, cof) – guincha para Davy, ao mesmo tempo em que tenta livrar-se da lula, que, encarapitada na borda do navio, ainda a mantém presa pelo tentáculo – POR QUE É (cof, cof) QUE NÃO USAM UMA PORTA COMO (cof, cof, cof) QUALQUER PESSOA NORMAL?

Davy enfia o cachimbo na boca e, com o dedo em riste, observa.

- Em primeiro lugar, não somos normais. Em segundo lugar, a porta deve permanecer secreta, caso contrário, os crentes em Davy Jones se sentirão à vontade para usufruir de meu reino.

Após uma série de cofs, Ruby se acalma temporariamente.

— E então, quanto tempo essa coisa vai me manter no ar? Meus pés já estão formigando.

— Lucerna não é uma coisa – retruca Davy, bravo – É uma lula gigante e é minha filha.

— Sua filha?! – a moça arregala os olhos, pasma – Deus do céu, nem quero saber com quem tu andou se relacionando.

Ora, eu não o julgaria... Todos nós sabemos que, devido à situação, Davy não tem se relacionado com mulheres há um longo tempo. Na melhor das hipóteses Lucerna pode ter sido adotada.

Em todo caso, o caso que vem ao caso é outro caso.

— Não lhe devo satisfações! – resmunga Davy, voltando-se para a lula e ordenando que deposite a senhorita Lucas no chão. Assim ela o faz e, ainda cumprindo ordens, mergulha de volta no mar e desaparece – Satisfeita? Como tu é arrogante! Lulu só está tentando fazer amizade...

— Oh... Ora, não me julgue. Não estou apta a compreender lulês.

— Tanto faz! Cale a boca e não vá se assustar com Melville.

Ruby bem teria perguntado quem é Melville, mas se distrai com o brilho difuso dos archotes que iluminam as paredes do largo e longo túnel pelo qual desliza o navio. Os marujos – fomentados pelo júbilo de, enfim, atracar no Áqueo –, matraqueiam feito comadres na feira, suas vozes reverberando pelo túnel ao ecoar pelas paredes. Ruby está se perguntando se o Reino é apenas um castelo esculpido dentro da rocha quando, sem aviso, um guincho ensurdecedor quase estoura seus tímpanos. Um segundo depois uma imensa e cinzenta cabeça emerge da água, ao mesmo tempo em que tentáculos se erguem ameaçadores na direção do navio. Aterrorizada pela visão da criatura, Ruby grita e deixa cair o balde de Ernesta, que rola alguns metros até parar aos pés de Davy.

— Quieto, Melvi! – rosna ele, autoritário – É o vovô!

Ruby, que obviamente não entendera nada do que Davy dissera, rapidamente corre a apanhar a pobre Ernesta, que, ainda que atordoada, sobrevivera ao capotamento do balde. Enquanto isso a criatura envolve Davy com os tentáculos, numa espécie de abraço desajeitado.

— Não creio que tu se assustou com essa coisinha indefesa – diz o Capitão a Ruby, que tenta decifrar que estranha criatura é aquela. A cabeçorra cinzenta lembra a cabeça triangular de uma lula, enquanto os compridos tentáculos com ventosas se assemelham aos do Kraken – Eu lhe disse que não se assustasse!

— Indefesa?! – chia ela, petrificada ante o olhar desconfiado do ser desconhecido –Essa coisa se precipitou na minha direção como se fosse me matar!

— NÃO CHAME MINHA FAMÍLIA DE COISA! Mas que... que coisa!

A esta altura Ruby já perdeu um por cento da audição.

— Meu ouvido não é penico para o senhor gritar nele! – retruca ela, afetada – Logo se vê que seus filhos também não prezam pela boa educação. Não ensinou ao bicho que não se deve guinchar daquele jeito? Por pouco não me estoura os tímpanos!

Davy reflete por uns minutos, considerando a fala de nossa protagonista. Por fim assume que ela está correta, mas sendo incapaz de demonstrar humildade, apoia o comportamento inadequado de Melville.

— Tem razão, senhorita Lucas! Melville não deve gritar daquele jeito...

— Que bom que concorda...

— ... deve aumentar a potência do guincho de modo a estourar os tímpanos dos possíveis invasores!

— Oh céus! Eu, sinceramente, desisto! Não há como competir com sua ignorância.

— Ignorante aqui é você, chamando meu neto de coisa!

— Neto?! Ora, eu não me surpreendo com mais nada! Bem que ele tem sua cara!

— É claro! Sangue do meu sangue! – e Davy sorri orgulhosamente, dando tapinhas na enorme cabeça da coi... ops, da criatura, que guincha como se dissesse: “Ai vovô, como eu te venero!”. - Agora desbloqueie a passagem, Melvi, preciso me preparar para o julgamento.

A criatura obedece e torna a submergir na água com um guincho de despedida. De pernas bambas, Ruby se pergunta quantos outros sustos seu coração ainda suportará antes de pifar de vez. A pequena Ernesta parece pensar o mesmo, tão trêmula quanto bandeira ao vento.

— Deus do céu, como tu se apavora fácil – comenta Jones, notando a tremedeira da moça.

Ruby nada diz e permanece calada durante o restante do percurso pelo túnel. Quando alcançam a saída do mesmo, o brilho do sol cega a todos por breves instantes. Ruby vê esferas coloridas pululando em suas vistas e pisca repetidamente de modo a livrar-se delas. Quando, por fim, suas pupilas se acostumam à claridade, é com espanto que ela solta um suspiro de deslumbramento.

“Estou dentro de um vulcão extinto!”, vibra ela em pensamento. “Que maravilha! Papai mal acreditaria nos próprios olhos”.

É então que várias coisas acontecem ao mesmo tempo.

Um grupo de ninfas faz uma algazarra dos diabos, cercando o navio de todos os lados.

Lula Lucerna, encarapitada numa rocha plana, emite chiados como se estivesse cantando.

Uma trombeta soa à distância, anunciando a chegada do Soberano.

Uma revoada de pássaros desce das alturas e, numa dança quase coreografada, circula ao redor do Holandês.

Princesa Nerissa brota das águas, tendo em mãos um cetro de ossos ricamente decorado.

E uma lontra risonha bate palmas, empoleirada na cabeça de um Kraken sonolento.