Lord Of The Seas

Eu Sou O Epílogo


O Mar não era piedoso. E, no entanto, Ruby tentava entender como uma coisa tão linda podia ser tão traiçoeira.

Depois do momento pacífico a bordo (que durara mais ou menos uns cinco minutos), Davy resolveu que calmaria não era estado de espírito para um Senhor dos Oceanos. Não combinava. Seu negócio era ser insensível, cruel e ruidoso. Foi por este motivo que ele, usando um barril de rum como desculpa, retomou sua fúria ao condenar um marujo à dor do temível Gato-de-Nove-Caudas.

Explico.

Estava Davy ao leme, perscrutando o navio com os olhos, à procura do que se queixar. Os marujos o olhavam esquisito, surpresos pelo fato de o homem-polvo estar tão sossegado. Podia se contar nos dedos de uma mão as vezes em que aquilo acontecera. Em quatrocentos anos, o Mar só ficara sereno por quatro vezes. E vocês sabem o que é um mar sereno? É o estado mais extremo de calmaria das águas. É quando as ondas se aquietam, a turbulência se dissipa e os oceanos assumem a aparência de um lago de prata, que espelha o céu tão perfeitamente que já não se pode diferenciar um de outro. E você já viu um mar tão sereno assim? (Bem, talvez o Senhor dos Oceanos de sua época seja mais calminho...).

Como eu dizia, Davy estava ao leme, perscrutando o navio com os olhos, à procura do que se queixar. Deu com Ruby o encarando de rabo de olho. E, pela primeira vez na vida (ou seria na morte?), deu graças por sua pele áspera de polvo não ser como a pele de um humano, que cora nos momentos de constrangimento. É bem verdade que a moça estava causando nele novas sensações. Porque, convenhamos, o Lord dos Oceanos não se constrange com olhares de esmeralda.

A não ser que as esmeraldas pertençam a uma certa senhorita de manto vermelho.

Por um momento, Jones fingiu não perceber a curiosidade da moça. É bem verdade que ele chamava muita atenção. Mas como ela o olhasse por demais, decidiu que devia retomar seu ar impiedoso, apenas para mostrar que umas notas no piano não tinham o poder de amolecer seu coração (que, aliás, ele nem tinha).

Avistou ao longe um de seus marujos mais franzinos trazendo um barril nas costas. O Capitão costumava ter um barril individual em sua cabine, para seu próprio usufruto (ele era um tremendo pé-de-cana, sim senhor). O coitado do rapaz resfolegava, todo corcunda sob o peso de cinqüenta litros de rum. Como ele conseguia carregar um barril de seu peso, ninguém sabia, mas, a essa altura (já vivia ali há sete anos), estava acostumadíssimo.

Foi então que Jones teve uma de suas mais maléficas ideias (É bem verdade que a Maldade surgiu no Holandês, Ruby a viu com seus próprios olhos). Sussurrou para o Mar, atiçando-o. Pois estava a sussurrar para si próprio. Provocara a si mesmo. Sendo um deus dos mares, controlava as águas com extrema facilidade. Poderia causar um tsunami apenas com um assobio. No momento, porém, estava interessado em algo menos calamitoso. Sussurrara para uma onda, que obedeceu prontamente à sua ordem, jogando o navio para o lado num movimento brusco.

Pausa para uma orquestra de onomatopéias:

Primeiro uma série de CABLAMs e PLOFTs, seguidos de POFs, e PAFs, e PIFs, e PUFs. E então TUC-TUC-TUC, BLAM, BRUUU, CATAPLAM, CAPOF, GLUB-GLUB, CHUÁÁÁÁ...

Bravíssimo! Aplaudamos! Pirataria também é música.

Explico:

Quando a onda obedeceu e o navio pendeu para o lado, os desatentos escorregaram pelo convés. Smee desabou em cima de August Booth com um CABLAM; Archibald Hopper escorregou da escada e fez PLOFT; enquanto outros marujos caíam com POFs, PAFs, PIFs e PUFs. Ruby se agarrou a uma das cordas que pendiam das velas, por pouco não caindo por cima de Jefferson, que ia passando com uma rede de pesca (pois ia pescar anchovas para o capitão). E então, como era de se esperar, o pobre rapaz do barril não conseguiu manter o equilíbrio. Cambaleou para o lado, fazendo TUC-TUC-TUC (esse é o som de suas patinhas de caranguejo, que ele tem no lugar dos pés). Com um BLAM, foi bater no mastro principal, que, por terrível artimanha do destino, era justamente o lugar no qual estava amarrada a forte corda que sustentava um canhão (?) suspenso (e não venha me perguntar o que um canhão fazia dependurado no mastro, vai ver Jones gosta de objetos exóticos como adereço). A corda se soltou fazendo BRUUU e o canhão desceu em queda livre fazendo CATAPLAM ao cair com tudo no convés (as tábuas do assoalho tremularam e por pouco o canhão não abriu um rombo no chão). Aí então o pobre e franzino rapaz, que, apesar de ter derrubado o canhão, estava muitíssimo satisfeito por ter salvo o sagrado rum do capitão, tornou a se desequilibrar. O peso do barril funcionando como âncora e o arrastando junto ao despencar de suas costas. Caíram os dois para trás com um CAPOF. Bolhas fizeram GLUB-GLUB dentro do barril, antes de litros e litros de rum vazarem para o assoalho com um CHUÁÁÁ.

Aí o capitão encerrou a sinfonia com um “MEEEEEEU RUUUUUUUUM!”. (Com esses berros, Davy Jones poderia ser rockeiro). E o Holandês Voador sacudiu da proa à popa, o grito amplificado cem vezes, por pouco não ensurdecendo toda a tripulação.

Davy saiu mancando daquele seu jeito gingado, batendo a perna de pau com força. A caraça gosmenta contraída numa careta de raiva.

— SEU VERME COM ESCOBURTO! LOMBRIGA DE FOSSA! PATIFE! COMO OUSA DERRUBAR MINHA SAGRADA BEBIDA?

— P-p-p-perdão, capitão. Foi sem querer...

— SEM QUERER? SEM QUERER? – agarrou o marujo com o dedo de tentáculo, erguendo-o do chão pelo pescoço. Perdigotos voavam para todo lado – POIS VAI PAGAR PELO PREJUÍZO, SUA RATAZANA!

O rapaz ergueu as mãos em prece.

— P-p-por favor, senhor, o-o-o Kraken não, o Kraken não...

— Kraken? – debochou o outro, sorrindo satisfatoriamente – Teu castigo será muito pior! SMEE, TRAGA AS FIBRAS DE CÂNHAMO!

— É pra já, capitão!

— Por derrubar meu canhão e desperdiçar meu rum, eu o condeno AO Gato-de-Nove-Caudas

Os outros marujos vibraram. Gritavam em escárnio, alguns fazendo “miau”, sem compaixão alguma pelo colega de bordo. O pobre coitado entrou em desespero. Ensaiou algumas palavras, que nem chegou a balbuciar, pois Davy espremia sua garganta. Smee veio correndo, trazendo sob um braço algo que aparentava ser uma corda despenteada. Ruby perguntava-se o que seria feito daquele maço bolorento e desfiado. Observou, aturdida, quando Davy largou o marujo – que caiu de joelhos – e apanhou o maço que Smee lhe estendia.

— Eu o condeno a fabricar teu próprio açoite! – bradou o capitão, atirando as fibras de cânhamo no rosto deformado do marujo.

— Por favor, tende piedade... Tende piedade, capitão...

— BASTA! SABE MUITO BEM QUE DESMAZELO MERECE PUNIÇÃO!

Mais uma informação que você deve anotar: Qualquer sinal de desleixo é motivo suficiente para que o capitão seja obrigado a tomar medidas punitivas.

E outra, que você certamente já percebeu: Seu rum é mais sagrado do que qualquer outra coisa.

— AGORA TRANCE TEU PRÓPRIO AÇOITE!

E assim o rapaz fez, diante dos olhares e humilhações dos colegas de tripulação. E a você que não é lá muito acostumado com os métodos de punição num navio, explico:

O Gato-De-Nove-Caudas era o terror que assombrava as tripulações piratas. Tratava-se de um chicote de nove tranças, feitas das fibras de cânhamo. O marujo condenado ao açoitamento devia ele mesmo fabricar seu instrumento de punição. Depois de prontas as tranças, embebiam-nas em água do mar (para que inchassem) e, na ponta de cada uma, colocava-se uma afiada lâmina de ferro. Daí, então, você já pode imaginar o que restava ao pobre condenado: orar, caso fosse religioso, ou, o que era mais provável: implorar por clemência.

Debulhado em lágrimas espessas, o pobre marujo infrator terminou suas tranças. Davy sorriu com deboche quando ergueu a mão para o chicote. Com um enrolar do dedo de tentáculo, encharcou as tranças com a água do mar que escapou das ventosas do tentáculo. Poucos segundos depois, as fibras incharam, pingando excesso de umidade. Davy sorriu de lado, berrando:

— Andem logo, palermas, prendam esse verme inútil ao mastro!

Quatro ou cinco marujos correram a obedecer à ordem. Agarraram o pobre infeliz pelos membros, arrastando-o até o mastro principal, onde, então, prenderam seus bracinhos finos a grilhões. A roupa úmida e embolorada do rapaz foi lhe arrancada e os piratas gargalharam alto quando o coitado ficou completamente vulnerável (Ruby virou o rosto, envergonhada pela nudez do homem.). O capitão soltou uma risada rouca:

— Que bundinha mole, Felix! Não sabia que tinha cracas no traseiro!

Gargalhadas. Felix soluça baixinho, as costas viradas para Davy, que ergue o açoite. Olhos se esbugalham, ávidos pelo espetáculo. O capitão umedece os lábios esverdeados, concentrando-se na “árdua” tarefa de espancar o pobre desgraçado.

— Lei de Moisés – anuncia, muitíssimo satisfeito – trinta e nove chibatadas!

E o povo brada em apoio, numa súbita explosão de gritos.

Desce o açoite. LEPT!

Nove rasgos vermelhos, dos quais brotam nove rios de sangue.

E Felix solta um soluço abafado, mordendo a própria língua, contendo o grito que queria escapar. Não, não demonstraria fraqueza, mesmo em posição humilhante.

Davy torna a erguer o açoite. LEPT! Dezoito rasgos, dezoito rios. E Felix guincha, caindo de joelhos, as costas ásperas banhadas em vermelho-escuro. O sangue esguicha e a carne arde com a água salgada que escorre do cânhamo. Davy berra, ordenando ao rapaz que se levante.

— SEU MAGRICELA INÚTIL! FRACOTE! ERGA-SE E MOSTRE QUE É UM HOMEM!

“Trinta e sete chibatadas”, pensa Felix, chorando baixinho “Só mais trinta e sete chibatadas...”.

Alça-se até a posição anterior, as pernas bambas mal o suportando. Davy ergue o açoite. Felix espera o estralar das tranças e a dor das afiadas lâminas a lhe talhar a pele. Mais nove rios correndo, tingindo-lhe o corpo áspero e viscoso.

LEPT! E uma das lâminas se agarra a um naco de carne. Felix urra, tornando a cair. Seu rosto se contorce, agonizante.

Davy puxa o açoite, soltando a lâmina presa. Sangue esguicha da carne arrebentada, Felix tremendo em dor e desespero. O capitão sequer dá ao rapaz alguns segundos para se recompor. Prepara-se para a chibatada seguinte, desta vez com mais força, tendo intenção de esmiuçar as costas do marujo.

E a platéia assiste, ávida. Por um momento esquecem-se de seu semelhante. O desejo por uma distração fala mais alto. Não julgue, você também iria querer entretenimento se vivesse a bordo do Coletor de Almas (é assim que algumas pessoas – vivas ou mortas – chamam o Holandês).

Eis, então, meus caros, que Ruby decide interceder:

— NÃO! – gritou, e toda a atenção se voltou para si. Davy parara com o chicote no ar, a cara esverdeada contraída numa expressão de fúria – Como podes condenar o pobre homem a tal punição?! Não tens o mínimo de misericórdia?!

Davy apertou os olhos (o que não era um bom sinal). Encarou a garota, que, tímida e apavoradamente, encolheu.

— Estás a me questionar, senhorita Lucas? Pois mal chegou e já se acha no direito de METER O BEDELHO ONDE NÃO É CHAMADA?

Todos encolheram e, discretamente, afastaram-se das proximidades do capitão.

— Não, senhor – respondeu ela, trêmula e assustada, porém firme nas palavras – Só estou dizendo que pessoa alguma é merecedora de tal castigo.

Tum, tum, tum, tum... Davy marchou em direção à garota.

— E QUEM ÉS TU PARA JULGAR?Vou lhe dizer uma coisa, senhorita Lucas: eu sou o Mar e, nos meus domínios, MANDO EU! E qualquer pessoa que se oponha deve manter o bico calado! Está me entendendo?!

Ruby nada disse.

— Responda! Eu lhe fiz uma pergunta!

— Sim, senhor!...

E então Davy fez uma careta muito engraçada: um misto de cara de quem comeu e não gostou com cara de quem chupou limão. Adicione a isso a expressão de um bebê que está com a fralda cheia e pronto: temos Davy Jones em sua melhor expressão “O que eu fiz pra merecer isto?”. (Não ria dele ou vai arranjar problemas).

— Por sua ousadia em me afrontar e interromper, condeno-a a passar o resto do dia trancada! – cuspiu ele, literalmente, para a pobre Ruby – Leve-a, Baiacu! – e voltou-se para Felix, que choramingava e tentava se firmar nas pernas bambas – E você, seu rato – Davy o chutou com a perna boa, derrubando-o –, agradeça a senhorita Lucas pela enorme boca que ela tem! Me sinto honrado em acrescentar mais 39 chibatadas à sua cota!

E não houve nada mais satisfatório, tanto para Davy quanto para a tripulação. Pra falar a verdade, ele até que se sentia muitíssimo agradecido por Ruby tê-lo afrontado daquela maneira. Era a desculpa de que ele precisava para aumentar o sofrimento de seu miserável subalterno.

Arrastada por Smee para a cabine, Ruby se desfez em lágrimas, amargurada e culpada por sua burrice. Bem sabia que não devia enfrentar o capitão. No entanto, seu senso de justiça falara mais alto. E, afinal, quem é que pode se culpar por querer ser humano?

— Que foi que deu em você? – ralhou Smee, batendo a porta da cabine após passar – Perdeu a noção do perigo, garota? Não devemos passar por cima da autoridade do capitão.

— Felix não fez nada errado, senhor Smee. Vi com os olhos que Deus me deu: o capitão provocou o tombamento do navio, o desgraçado desequilibrou Felix de propósito!

— Bem... – fez Smee, pensando com seus botões (apesar de ele não ter botões nas roupas carcomidas) – Tu há de concordar, senhorita, que de qualquer modo, não devemos passar por cima do capitão. A Morte sabe o quanto ele é espirituoso. Logo se vê que está castigando o coitado por puro contentamento.

— Mas ó, senhor Smee! Como ele pode ter um coração tão duro?

— Ora, minha filha, que podes querer de um pobre desafortunado? – o homem balançou a cabeça, meio penalizado – Nada restou ao capitão, além do ódio e da loucura. Pois sim, ele está enlouquecido, ah se está! De pouquinho em pouquinho, desregula mais um bocado a cada dia. Chegará o dia, senhorita Lucas, que Davy Jones não passará de um louco desgraçado. Nada restará a ele, a não ser uma alma atormentada.

— Pois é o que ele merece! Agonizar na perdição!

— Ah não fales assim, menina! Ele já se encontra na perdição...

E eis então, meus caros leitores, que o torturado se cala.

O açoite cessa.

E o Mar...

O Mar emite sua mais estrondosa e sinistra gargalhada.

Pois há um corpo inerte no meio do convés. A carne em nacos. A pele em rasgos. Um riacho de sangue a correr por madeira instável e apodrecida. E um bando de miseráveis de olhos esbugalhados e almas atormentadas.

Well, well— fala o capitão em tom jocoso, admirando sua obra de arte nas costas de Felix – Não é que a ratazana se manteve consciente até a trigésima chibatada? Uma pena que ainda faltem mais... SMEE!

Smee sai da cabine aos pulos, gingando.

— Sim, capitão?

— Quanto é trinta e nove mais nove?

— Quarenta e oito, senhor!

(Mais uma informação: Davy não é bom em cálculos).

— Uma pena que ainda faltem quarenta e oito chibatadas – completa o capitão, cutucando Felix com a ponta da perna de pau. Volta-se para a platéia de desafortunados – Que estão esperando? Acordem esse verme inútil, patife... Smee, mais adjetivos!

— Infame, canalha, desprezível, indigno do chão que pisa...

E Davy completa sua fala, aos berros:

— Acordem esse verme inútil, patife, infame, canalha, desprezível e indigno do chão que pisa!

(Davy também não é bom com adjetivos, afinal).

(Um conselho: se precisar de um dicionário, recorra a Smee).

Ruby está balançando a cabeça, estarrecida com tanta barbaridade. Imaginem vocês que alguns marujos voltam trazendo água de fossa. Ah meus filhos, nem queiram imaginar... Aquela água lodosa, viscosa e turva, com a consistência de diarréia e vômito misturados e o fedor acentuado de ovo podre, dejetos e peixe estragado. Se bem que esta é a impressão que tenho de água de fossa, mas, na verdade, é quase impossível descrevê-la. Contanto que vocês possam imaginá-la, estou satisfeita.

Ruby agora torce o nariz, enojada. Já que foi mandada para a cabine, assiste a selvajaria por uma fenda na parede gasta. Ela estremece em asco e indignação quando, pasmem, a água de fossa é despejada sobre Felix. Coitado! Ele estremece e arregala os olhos, engasgando com o que lhe cai na boca. Arqueja em dor, o corpo esfolado, a carne exposta, as costelas quase aparentes. Vômito, sangue e podridão se estendem pelo convés. Pequenos riachos e poças maculando as tábuas já muito manchadas. Felix está sufocado pelo próprio vômito. Tosse, e cospe, e se contrai, emitindo um ruído que em muito se assemelha a um gato engasgado por bolas de pelo.

E o Mar...

O Mar se agita em ondas eufóricas e turbulentas. Pois Davy está em estado de deleite. E todo o navio entra em júbilo. As velas negras se enfunam, entusiasmadas com a ventania. As tábuas do assoalho rangem, como que satisfeitas pelo sangue que absorvem. Como se tanta dor, suor e sofrimento as tornassem mais fortes e suportáveis. E, de fato, esta é uma verdade.

Davy enfia o cachimbo na boca.

E o açoite torna a se erguer, ameaçador.

Mais cinco chibatadas se seguem.

E a orquestra pirata não é bela de se ouvir.

O som rasgado das lâminas na pele. O estralar das tranças. Os berros esganiçados.

E há quem possa ouvir o esguichar do sangue. E o pingar das gotas de saliva que escapam da boca que urra. E o soprar da fumaça catinguenta que Davy expira.

Basta imaginar. Os sons quase inaudíveis.

E, vejam bem, quase não dá pra notar o sopro do vento nas velas, ainda que estas se agitem feito pipas no céu.

Porque o sofrimento de uma alma torturada se sobrepõe a qualquer outro som.

Davy para quando Felix ameaça desfalecer novamente.

Há quem agüente, meu caro leitor, mais do que 39 chibatadas.

Felix não é esse alguém.

Franzino como é, não é de se esperar que agüente. Mas, amaldiçoado que é, não pode morrer. Pactuara com o demônio Jones. Ainda servirá no Holandês Voador por mais 193 anos.

Então, é claro, é amaldiçoado duas vezes. Primeiro porque não pode morrer. E segundo, se não pode morrer, não pode desejar que sua dor termine antes do findar das açoitadas. Maldição! Se pudesse morrer, certamente já teria ido parar no Baú de Davy Jones. Que tolice! Bem poderia ter morrido no naufrágio de sete anos atrás. Resolvera prolongar sua existência e agora padecia nas mãos do demônio.

Estão vendo crianças? É o que se ganha por querer driblar a morte...

Felix está erguendo a mão. Um pedido de trégua, que Davy lhe concede. Não sem escarnecer do coitado.

— Oooooh – faz o capitão, fingindo peninha. Agarra a cabeça do marujo, forçando-o a olhar para ele – Estou sendo muito rude, meu amorzinho?

Os lábios do rapaz se contraem, uma tentativa de balbuciar alguma coisa.

— Quer dizer alguma coisa, benzinho? Hã? PORQUE NÃO SE PORTA COMO HOMEM E ME DEIXA TERMINAR O SERVIÇO?

Felix franze a testa, suas sobrancelhas se contraindo numa expressão raivosa. E então ele balbucia três palavras quase inaudíveis, em seu carregado sotaque interiorano. (Chegue mais perto para que possa ouvir).

— Take... my... soul...

Davy gargalha.

— Quer que eu apanhe sua alma? E o que devo fazer com ela? Colocar no meu baú? – gargalha outra vez, levando seus homens a imitá-lo.

— Jogue meu corpo no mar... – murmura o rapaz, a muito custo – E leve minha alma para... para o Baú...

— Well, well! Quer tua libertação, não? Um belíssimo enterro, teu corpo estraçalhado repousando no fundo do oceano... Tua alma entre as outras, trancafiada no Baú... Pobre Felix... Smee choraria por você. “Ele era um garoto tão bom!”. Não é assim, Smee? No entanto, o pobre Felix estaria livre. Tua alma ainda pertenceria a mim, mas teu corpo teria o descanso que tanto anseia. Oh eu poderia arrancar sua alma e matá-lo em seguida. Seria imensa honra. Oh, my boy, seria o melhor presente que tu poderia dar a teu capitão.

Tum, tum, tum, tum. Davy apóia a mão em garra na borda do navio. Suspira longamente, antes de tragar o cachimbo e soltar uma baforada de fumaça espessa. Volta-se para encarar Felix.

— Deve ter se esquecido, verme, do acordo que fizemos sete anos atrás. – Tum, tum, tum. Davy aproxima sua cara feia ao rapaz – Oh, eu me lembro muito bem. Marquei essa tua mão magrela com tinta. E tu jurou pela tua mãe viva que serviria ao Senhor dos Oceanos por dois séculos. Smee, venha cá, homem! Teve a honra de testemunhar a cena, não foi? Pois diga, Baiacu, compartilhe conosco tua lembrança!

— Sim, capitão... – começou Smee, meio trêmulo, porque fora pego de surpresa – Eu lembro sim, senhor! Felix estava à beira da morte, mas tu ofereceu a ele um lugar à tripulação, como é o costume. Então Felix aceitou e jurou pela mãe viva que serviria ao senhor por duzentos anos. E o senhor ficou muito satisfeito. Lembro como se fosse ontem, o senhor virou pra mim e disse: “Smee, veja que bela aquisição a nossa. O garoto é fracote, mas há de servir!”. E depois o senhor se dirigiu a Felix: “Hoje é seu dia de sorte, filho! Vai trabalhar carregando barris. Quem sabe assim tu fortalece esses cambitos que chama de membros!”.

Davy soltou uma gostosa gargalhada, dando tapinhas (um tanto quanto fortes) no ombro de Smee.

— E veja só esses cambitos que ele chama de pernas – o capitão cutucou uma das pernas de Felix com a bota suja -, continuam tão finos quanto a primeira vez que os vi.

— O senhor... – Felix tossiu, estremecendo dos pés à cabeça, tão dolorido que seu corpo estava – O senhor tinha prometido subir minha posição... depois... depois de algum tempo como carregador de barris... nunca cumpriu a promessa...

— Eu disse que subiria de posição se mostrasse esforço e competência. – Davy soprou fumaça na cara de Felix – E tu não és nem um pouco competente, não é? Desperdiçou meu rum e tudo. – pendeu o cachimbo nos lábios, cruzando os braços atrás das costas.

— Apenas pegue minha alma, demônio, e descarte meu corpo! – cuspiu o marujo para o capitão.

Davy soltou um longo suspiro e uma comprida baforada de fumaça.

— Acontece, seu verme infeliz, que fizemos um acordo. Duzentos anos de serviço! Minha marca está em ti! Estás preso a mim e a este maldito navio! E eu não quebroacordos! - outra baforada de fumaça. Davy faz cara de satisfação e esconde o cachimbo entre os tentáculos a guisa de barba. - No entanto, como tu demonstra o desejo de ter a alma arrancada, não o negarei a ti.

E sorrindo com afetação, eis que Jones apóia a mão de tentáculo às costas de Felix. Se pudéssemos ouvir o som de uma alma sendo separada do corpo, a coisa seria mais ou menos um riiiip. Entretanto, como não o podemos, tudo o que vemos é uma energia esbranquiçada a envolver o corpo do rapaz, que berra a plenos pulmões, sofrendo mais do que se estivesse sendo espancado. Davy leva apenas uns poucos segundos para arrancar-lhe a alma do âmago. Então, todos observam, de olhos esbugalhados e faces desconcertadas, o capitão manipular uma bola branca de energia luminosa, que flutua sobre sua mão.

— Aí está, como tu queria – diz ele, debochado, exibindo a esfera brilhante a um Felix semi moribundo. – Não se preocupe, ela estará segura em minha coleção. Talvez você a tenha de volta algum dia, se mostrar seu valor e provar sua lealdade.

(Uma informação: Davy é um grandessíssimo mentiroso. Então, é claro, podem ter certeza de que Felix será uma criatura desalmada pelos 193 anos que estão por vir).

(Uma segunda informação: Davy mantém almas preciosas como relíquias. Falaremos disso daqui a alguns parágrafos).

Já que falamos em criaturas desalmadas, convém falar um pouco delas. Você certamente conhece algum babuíno idiota, sem noção e tão insensível que é descrito como desalmado. Como aquelas cruéis criaturas com as quais nos deparamos nos telejornais, quando maltratam um cachorro ou matam alguém a sangue frio. Talvez elas tenham uma alma. Talvez o que lhes falte sejam sensibilidade e amor no coração. Não dá pra saber. A pergunta é: estará você, leitor, apto a diferenciar uma pessoa desalmada de uma “almada”?

Bem, se a resposta for sim, palmas para você. Eu terei a honra de condecorá-lo como Grandessíssimo Identificador de Criaturas Desalmadas e/ou Diferenciador de Pessoas Desalmadas de Almadas. É claro, antes terei de submetê-lo a um teste, só para ter certeza de que você é mesmo o que diz.

Mas se a resposta for não, então ficarei feliz em matriculá-lo em minha aula de Diferenciação de Pessoas Desalmadas de Almadas. Não tomarei seu tempo, meu caro, mas isso vai depender do seu nível de aprendizagem.

Uma coisa eu já adianto a você: o segredo está nas janelas da alma.

E todo mundo sabe quais são as janelas da alma, não é?

Pois então aproxime-se. Fique cara a cara com Felix. Não se sinta enojado, apesar do estado em que ele se encontra. (Recomendo que use uma máscara de gás, para evitar desmaiar com o cheiro apodrecido de água de fossa). Agora olhe nos olhos dele. Pequenos olhos, apenas um pouco maiores do que cerejas. Olhos cor de cinzas de cigarro. Olhos bonitos, devo admitir. Mas olhando atentamente, logo se vê...

Pessoas que, por alguma razão, têm as almas separadas do corpo, perdem o brilho no olhar.

E então, subitamente, não há vida nas janelas delas.

É tão difícil explicar quanto compreender, meu caro leitor.

Mas talvez você entenda o que quero dizer quando observar atentamente. Os olhos cor de cinzas de cigarro, antes tão vívidos e fascinantes... agora são cinzas ao vento. É um olhar quebradiço. Entende? Parece que arrancaram os olhos de Felix e os jogaram ao vento, só restaram órbitas vazias. É como um pano poeirento sacudido fora da janela. O pó se vai. Só resta o pano sujo...

É compreensível? (Desculpem, eu não devia me exceder no consumo de rum. Perdoem minhas metáforas insanas).

Em todo caso, acredito que todos possam imaginar o olhar de Felix enquanto continua a afligir e se contorcer sob o estalar das tranças. Sim, porque quando Davy pune um subalterno, tem a certeza de puni-lo como deve ser. Deve ser sofrido. É claro, para nada serviriam os castigos senão para amedrontar os outros tripulantes. Que sirva de lição para vocês, marujos. Não digam que não os avisei. Não se arrisquem a aborrecer Davy Jones.

O chicote continua a descer. Dez, vinte, trinta vezes. Uma cena em que a descrição não se faz necessária, pois você pode imaginar com clareza o que aconteceu.

E então, finalmente, findam as açoitadas. Setenta e oito, sem tirar nem pôr.

Há pedaços de pele pelo chão. Bem como nacos sangrentos de carne fresca.

Desculpem. É uma péssima visão. São cenas fortes para estômagos fracos. (Um conselho: não coma durante o processo imaginativo).

— ACABOU O ESPETÁCULO, MOCINHAS! VAMOS, MOLENGAS INÚTEIS! QUERO ESSE CONVÉS BRILHANDO! E LEVEM ESSE SACO DE ESTRUME PARA O ANDAR DE BAIXO! ALIMENTEM-NO E TRATEM DAS FERIDAS, QUERO QUE ESTEJA RECUPERADO FISICAMENTE EM DOIS DIAS!

Tum, tum, tum, tum, tum. BLAM! Ah Davy, não precisa bater a porta com tanta força. O pobre Smee teve um trabalhão para recolocá-la no lugar, depois que o senhor a arrancou das dobradiças na semana passada.

(Se ele tivesse me escutado, certamente me condenaria ao Gato).

Ruby está sentada à mesa, fingindo ler um dos livros de Davy (“Ó nó de marinheiro”, é o livro em questão). Ele caminha pesadamente até seu banquinho favorito, deixando-se cair com uma força que sacode a cabine inteira (e, por um incrível milagre, não destroça o frágil banquinho). Deposita a metade de uma casca de coco sobre a mesa. Há uma esfera de energia brilhosa pairando sobre ela. A alma de Felix.

— Apreciando a leitura, Miss Lucas? – questiona ele, encarando-a friamente.

Ruby abaixa o livro, encarando-o de volta. Há temor em sua voz. Mas ela tenta manter a tranqüilidade.

— Sim, senhor.

— Bem, então já conseguiu esquecer o que esteve assistindo por aquela fenda – ele faz um meneio de cabeça em direção a fissura pelo qual Ruby espiara o que se passara lá fora. Ri da expressão surpresa da moça – Ora, minha querida, sei de tudo o que se passa nesta embarcação. Ouvi também sua acusação contra mim. Por que acha que tombei o navio de propósito para prejudicar Felix?

— Porque eu vi tua manobra. E vi também... a Maldade.

A expressão do homem é de assombro.

— Então és capaz de vê-la em forma física? Por quê?

— Não sei bem... Talvez porque eu também seja capaz de ver outras coisas...

— Que coisas?

Davy está interessado. Apoia a perna de pau sobre um banquinho capenga, que range. Tira uma garrafa pegajosa e coberta de cracas de dentro de um bolso úmido. Arranca a rolha com a boca, cuspindo-a em seguida.

Ruby hesita. Deixa o livro de lado.

— Virtudes, qualidades, sentimentos... Em forma física.

— Verdade? Hum... Quer dizer que tem uma mente aberta... – Davy traga metade da garrafa de uma vez, soltando um alto arroto em seguida – Desculpe! Há uma coisa que me intriga, Miss. Algo que a senhorita não compartilhou quando contou parte de tua história – Ele se ergue, caminha pela cabine e para atrás de Ruby – Quem lhe ensinou a me invocar? Não há muitas pessoas no mundo que saibam como fazê-lo.

— A Esperança o fez. – ela cruza as mãos sobre a mesa.

— A Esperança? Uma virtude lhe ensinou a vir a meu encontro?

— Sim, senhor.

— Curioso... E como foi que invocou a Esperança em forma física, em primeiro lugar?

— Eu não faço ideia, capitão. Quer dizer... Ela simplesmente apareceu quando eu mais precisei... Então abriu minha mente para que eu fosse capaz de ver outras coisas.

— Hum... Interessante!

Há um minuto de pausa. Ruby está desconfortável com o capitão de pé atrás dela. É capaz de sentir os olhos do homem pregados nela. Um odor forte chega à sua esfera de percepção: Davy traga seu fumo novamente. A fumaça serpenteia pelo ar, em espirais. A moça espirra, suas narinas perturbadas. Davy ri, soprando mais fumaça no ar.

— Tu dizes que és capaz de visualizar virtudes, qualidades e sentimentos em forma física. Isso a torna uma crente. – Tum, tum, tum. Davy torna a cair sentado sobre o banquinho, sua pança molenga balançando para cima e para baixo quando ele realiza a manobra – Então quer dizer que também é capaz de ver isso?

O isso é a bola energética que flutua sobre a casca de coco, girando lentamente, como um mini planeta realizando o movimento de rotação. Ruby assente, erguendo os olhos (que até então haviam estado fixos em suas mãos cruzadas) e dando uma espiada na alma flutuante. Arrepende-se no mesmo instante, piscando repetidamente. Olhar diretamente para as almas é desconfortável para humanos.

Suponho que você, caro leitor, nunca tenha visto uma alma. Seria espantoso se tivesse, porque apenas algumas poucas criaturas são capazes de removê-las de um corpo físico. Bem, como sabemos, Davy é uma dessas criaturas (e mais tarde saberemos porquê, embora seja bastante óbvio). Como é de se esperar, assim como há pessoas almadas e desalmadas, também há diversos tipos de almas. O estudo das almas é uma área extensa, meu caro, mas você estará apto a entender esse campo quando inscrever-se em meu Curso Analítico de Almas. Posso adiantar-lhe alguma coisa, no entanto, para que seja capaz de compreender a narrativa.

Em primeiro lugar, devo descrever a alma rodopiante de Felix. A verdade é que todas as almas do mundo possuem características comuns, como o tamanho padrão de uma bola de tênis. Além disso, elas não possuem odor ou peso e não se encontram em nenhum estado físico. Então, é claro, não espere conseguir tocá-las ou senti-las. São, pura e simplesmente, energia.

Um corpo físico pode viver sem uma alma. Mas desalmados perdem a capacidade de sentir. É claro, eles sentem dor, frio e fome. Experienciam apenas o que é percebido com o corpo. Mas não estão aptos a ter sentimentos e sensações. São como zumbis que rastejam de um lado a outro sem se dar conta do que estão vivendo.

Quando fora do corpo, uma alma flutua pelo ar, até que se perca ou encontre um corpo que possa habitar. Foi exatamente por esta razão que Jones “amarrou” a alma de Felix à casca de coco, caso contrário, a esfera voaria feito uma bolha de sabão.

Agora, caro leitor, peço que olhe diretamente para uma lâmpada acesa ou para o sol. A luz ofuscante é desagradável para a visão, não é mesmo? Pois, da mesma forma, o brilho de uma alma traz desconforto e ardência para os olhos, bem como dor de cabeça e, em casos extremos, zumbidos nos ouvidos. E há variação até mesmo na “brilhosidade” de cada alma. Algumas, como a de Felix, possuem brilho esbranquiçado, como a luz de uma lâmpada fluorescente. Outras têm um leve tom prateado, semelhante à cor dos reflexos do sol num lago. Já outras são douradas, alaranjadas, azuladas... Há diversas possibilidades, no que diz respeito ao tom do brilho. E isto, é claro, se relaciona à personalidade de cada indivíduo. A de Felix é esbranquiçada, porque ele é jovem e cheio de energia, e carrega bondade no coração. A de Davy, possivelmente, teria um brilho cinzento, quase negro, pois foi corrompida.

E aqui, meu amigo, chegamos a uma importante questão sem resposta: será Davy uma criatura desalmada?

Direi a você que, mesmo eu, uma Grandessíssima Identificadora de Criaturas Desalmadas, não sei a resposta. Jamais consegui ler os olhos de Davy Jones como consigo ler janelas alheias. É inexplicável! Suponho que só descobriremos se alguém for perguntar a ele. E eu não tenho essa coragem. Se quiser saber, vá você investigar (mas não diga que não o avisei, quando padecer sob o Gato ou outra punição pior).

Depois de tanta divagação, retomemos a narrativa.

Davy pergunta a Ruby:

— Dói as vistas, não é? Apenas algumas pessoas são capazes de olhar diretamente para as almas. São muito valiosas... Não imaginei que a de Felix fosse tão iluminada.

— Foi maldade arrancá-la... – comenta Ruby, sem conter-se. Ela enrubesce e encara as mãos quando se dá conta de sua ousadia.

— Ele desejou que fosse assim, não neguei o pedido – respondeu o capitão friamente, engolindo rum – A senhorita me parece ser do tipo que eu não suporto. Metida a justiceira, defensora dos fracos e oprimidos. Saiba, Miss Lucas, que não aturarei discursos em prol da justiça e igualdade. Estamos no inferno! Não há igualdade ou justiça nesta embarcação. Não existe uma democracia.

Ela abaixa os olhos, envergonhada.

— Desculpe, senhor, não devia me intrometer.

— Me parece que os eventos que lhe ocorreram, não apenas abriram tua mente, mas iniciaram em ti um processo de revolução. Não sei dizer se é bom ou ruim. Apenas lhe aconselho que tome cuidado. A senhorita assistiu ao que aconteceu no convés. Não duvide de meu caráter, Miss, sou capaz de qualquer coisa. Já cometi atrocidades piores do que o açoitamento.

E este é o momento em que todos sentimos um frio na espinha, porque Davy carrega dureza no olhar. Seu corpo está rígido, seu rosto paralisado numa expressão irritada de descontentamento. Convém nos calarmos.

De um só gole, ele sorve o restante de sua bebida, largando a garrafa sobre a mesa. Então apanha a casca de coco, lançando a Ruby uma breve olhada.

— A senhorita não devia estar procurando um meio de quebrar minha maldição? Ocupe-se em fazer algo útil! – e ele se afasta em direção aos fundos da cabine, levando consigo a alma de Felix.

— O senhor há de concordar que não posso fazê-lo se não souber de mais detalhes – diz a moça, erguendo a cabeça para olhá-lo. Quando ele se vira para encará-la, há uma breve troca de olhares, até que o homem fixa a visão num ponto qualquer, assentindo.

— Venha cá! – diz, antes de girar nos calcanhares e ir em direção à lateral esquerda da cabine, onde, num canto escuro e muito úmido, há uma infestação de cracas e algas na madeira. Ruby não notara até então, mas ali há uma porta – que algum dia foi azul, mas atualmente está desbotada, manchada e com uma grande fissura no centro (porque Davy gosta de descontar sua fúria nas portas). – Cuidado ao descer, os degraus são escorregadios.

De fato, há limo sobre a madeira que compõe os seis degraus, que estalam e rangem. Dão numa sala não muito espaçosa, escura, gelada, úmida e sem ventilação. O teto é baixo e Ruby resmunga consigo mesma quando bate a cabeça numa viga. A única fonte de luz vem da alma de Felix, que tem brilho suficiente para iluminar metade do recinto. Há estantes rústicas por toda a extensão da sala, pequenos baús preenchendo-as de cima a baixo, em completa desorganização.

— Dou-lhe permissão de descer aqui sempre que quiser – diz Davy, depositando a casca de coco sobre uma mesa quadrada no centro do recinto – É o único lugar silencioso do navio. Bom para refletir. Acredito que vá ser de utilidade, apesar da umidade e abafamento.

— Para que são os baús? – questiona Ruby, aproximando-se hesitante de uma das estantes. Ela olha para o capitão, que a incentiva com um aceno de cabeça.

— Vá em frente, pegue!

Erguendo as mãos para o baú mais próximo, ela o apanha e levanta a tampa, sem medo do que irá encontrar. Surpreende-se ao ver que dentro dele há uma alma quase tão brilhante quanto a de Felix. Esta só é de um brilho um pouco mais opaco.

Ora, meu caro amigo, aquela sala guardava a coleção de almas de Davy.

— Há almas em todos eles? – indaga ela, fascinada. Ao que o capitão assente.

— Alguns ainda estão vazios. Precisamos enchê-los antes do julgamento.

— Julgamento?

— Sim. Dê-me um baú vazio.

Ruby põe-se a vasculhar os recipientes, procurando um que esteja desocupado. Está se perguntando de que julgamento o capitão está falando. Ele a apressa, impaciente. Quando, por fim, ela encontra um baú sem alma, Davy “desamarra” a alma de Felix da casca de coco e torna a “amarrá-la” no baú, cerrando-o em seguida.

Caso esteja se perguntando, a amarração de uma alma se dá por um feitiço que a mantém presa a determinado lugar. Claro, não se amarra uma alma como se amarram tênis. A esfera brilhante apenas permanece flutuante no lugar da amarração, como que presa por uma força invisível. E, obviamente, a amarração só pode ser feita por aqueles que possuem a capacidade de manipular almas.

Davy tranca o baú com uma chave enferrujada que tira do bolso. Deposita-o então numa estante ao fundo da sala, a única perfeitamente arrumada, com pequenas arcas postas lado a lado. Logo se vê, meu caro, que ali se encontram as almas mais valiosas para o capitão. Aquela é, vejam bem, a coleção de relíquias de Davy Jones.

Explico.

É de seu conhecimento que Jones foi amaldiçoado a percorrer os oceanos, recolhendo as almas dos que morrem em seus domínios – é por isso, obviamente, que ele é capaz de manipular as esferas de luz. Tão logo remove a alma de um corpo físico, Davy a encerra num baú, que então mantém em segurança por um breve período. Jamais haveria espaço para tantas almas num navio. É por esta razão que elas são, então, julgadas e enviadas para um lugar especifico: Inferno ou Paraíso.

Davy recolheu pouco mais de cem almas nas duas últimas semanas. Em alguns dias, retornará a seu reino para o julgamento.

Sim, Davy tem um reino. Pois é um rei.

Mas há almas que ele não quer julgar. Recusa-se a dar-lhes um fim merecido. Está a atrasar o julgamento.

Ou porque têm valor afetivo.

Ou porque têm valor amoroso.

A de Felix é exceção. Está entre as relíquias de Davy porque não pode ser liberada do pacto de duzentos anos.

Davy acende uma lamparina na escuridão que se estabeleceu na sala após a alma ter sido guardada. Está a explicar a uma Ruby curiosa essa história de julgamento.

— ...e então devo julgar alma por alma, com base no que o indivíduo foi em vida. Pessoas merecedoras de paz e felicidade eternas são enviadas à Bonança dos Espectros, uma ilha tropical onde os mortos encontram a tranquilidade pela qual tanto ansiaram quando vivos. Por outro lado, pessoas que foram cruéis e desumanas são levadas ao Abismo, popularmente conhecido como O Baú de Davy Jones.

Ruby, que ouvira tudo atentamente, tão concentrada que seus olhos brilhavam em arrebatamento, questionou então:

— Então toda aquela história de Paraíso, Inferno e Purgatório não existe? Para onde vão as almas dos que não morrem no mar?

— Mas será que não esteve prestando atenção a nada? – bufa Davy, um pouquinho irritado, mas não raivoso. Ele está sentado a uma cadeira bamba, cujas pernas estão embaraçadas numa bagunça de algas que brotam do chão. Tem seu cachimbo à boca, mas não está a fumar – A Bonança dos Espectros corresponde ao que chamam de Paraíso. E o Baú é o Inferno. Quanto ao Purgatório... você se encontra nele, milady.

— Oh...

— Encerradas nestes pequenos baús, estas almas têm algum tempo para alcançar a redenção. Têm a chance de ir ao Paraíso, se arrependerem-se de seus pecados. A maioria não se arrepende, porém... É curioso o fato de Felix não achar que merecesse ir à Bonança. Ele é um dos poucos nesta tripulação que não possuem a alma corrompida.

Há alguns segundos de pausa. Davy está pensativo, encarando seus baús dispostos nas prateleiras. Ruby está absorvendo o que aprendeu, tentando, desesperadamente, pensar num meio de livrar o homem de tão terrível maldição.

— O senhor não respondeu à outra pergunta. – lembra ela.

— Qual foi mesmo? – ele vira a cabeça para olhá-la, os olhos azuis brilhando à luz da lamparina.

— Para onde vão as almas dos que não morrem no mar?

— Boa pergunta! São colhidas e julgadas pelo Senhor Continental, que as envia para o Paraíso e Inferno que existem em terra firme.

— Então... há mais de um Inferno e mais de um Paraíso?

— E mais de um Purgatório. Obviamente, o Abismo e a Bonança estariam abarrotados se todas as almas do mundo fossem enviadas para lá. E haverá um dia, Miss Lucas, que, acredito eu, existirá Paraíso, Inferno e Purgatório para os que morrerem nos ares.

E este, meus caros, é Davy Jones prevendo a invenção do avião.

Eis então que Ruby põe-se a pensar na noite em que vira a alma de Victor ser removida do corpo por uma figura encapuzada. Acaba por constatar:

— Mas se é assim... então eu vi o Senhor Continental, não a Morte...

— Talvez tenha visto a Morte. Ela está, quase sempre, presente em todos os lugares. É uma presença etérea, impossível ser vista, a não ser que assuma aparência física.

A moça assente e se arrisca a dar ao homem um sorriso simpático, grata por ter compreendido tudo. E, pasmem e arregalem os olhos, Davy ensaia um meio sorriso em resposta. Tudo o que consegue, porém, é contorcer o rosto numa expressão mais bondosa (o que, convenhamos, é incrível em se tratando de um ser tão rabugento e mal humorado).

É compreensível que Davy esteja enfadado de seu trabalho. Imagine como é trabalhar durante quatro séculos removendo almas de cadáveres. Não bastasse isso, ele ainda é Senhor dos Oceanos, o que significa que tem a responsabilidade de zelar por tudo o que se encontre no âmbito marinho. Mas isso é outra história. Só estou dizendo que, apesar de tudo, temos de ser pacientes com o mau gênio de Davy.

— Bem, isso é tudo por enquanto, Miss! – ele se ergue e põe-se a remexer numa das estantes menos iluminadas. Então deposita um mapa quadrado, enrugado, manchado, amarelado e carcomido sobre a mesa. É um mapa do mundo, bem mais detalhado do que os mapas feitos por cartógrafos do século XVIII. Ora, sendo Senhor dos Mares, é de se esperar que Davy conheça áreas ainda inexploradas pelos navegantes. Então, claro, seu mapa se assemelha aos que vemos atualmente nos atlas. – Há trabalho a ser feito!

Eis que Davy deposita o dedo de tentáculo sobre o pergaminho gasto. Um fio d’água corre de seu dedo para o papel. E então Ruby fica pasma ao notar que a água preenche os espaços onde deveria ser o mar. O mapa criara vida! Os mares e oceanos ondulavam em azul-escuro, como miniaturas dos verdadeiros. Ela quase conseguia ouvir o canto das gaivotas.

— É útil para prever acidentes navais – explica Davy, notando o encantamento da moça. Ele apanha uma faca, com a qual faz um furo no dedão. Então pinga sangue sobre o mapa. A água ondulante absorve a gota vermelho-escura. Alguns segundos depois, uma mancha avermelhada surge próxima ao Brasil. – Haverá derramamento de sangue... Navios portugueses... SMEE!

E Davy sai berrando cabine afora, ordenando que aumentem a potência de navegação. Com sorte, chegarão ao local em menos de cinco minutos. Não é a toa que o nome do navio é Holandês Voador.

***

Num curto período, Davy recolhe quase duzentas almas.

Como previra com antecedência, houvera derramamento de sangue próximo ao Brasil, num combate entre portugueses e piratas japoneses. Davy costumava ser bondoso nestas horas, permitindo que os tripulantes assistissem à ação do convés (isto, é claro, depois de todos cumprirem suas tarefas e é óbvio que o navio não estava visível). Ruby fora se esconder na sala de almas do capitão, assustada e quase ensurdecida pelo trovoar dos canhões. Enquanto isso, os homens se empoleiravam nos mastros e velas do navio, procurando por uma boa visão do espetáculo.

— Aposto cinqüenta moedas nos japas – dissera Davy, oferecendo a Smee sua expressão mais simpática.

Tenho certeza de que você irá julgá-lo por isso, mas saiba que aqueles combates eram o entretenimento de que Jones mais gostava.

A caravela portuguesa acabou destroçada e incendiada, com metade de seus ocupantes mortos, alguns feitos cativos e uns poucos sobreviventes – que se agarraram a tábuas e barris e boiaram até a ilha próxima (atualmente a ilha tem o nome de Fernando de Noronha). Os japoneses, após pilharem o navio e matarem quem quer que estivesse em seu caminho, foram se embora sem ter conhecimento de que, mais tarde, seriam surpreendidos pelo Kraken.

Naquele dia, três portugueses e um japonês se aliaram à tripulação de Jones. Um deles, um soldado de nome Rodolfo, logo se encantou por Ruby e bem teria a abordado com trocentas perguntas, não fosse o fato de não entender uma palavra sequer de inglês. Claro, mais pra frente, Davy odiaria a forma com que os dois se aproximariam. Por ora, meu caro, apenas saiba que essa aproximação ainda vai dar o que falar.

Renovado o estoque de rum e água fresca e completados os baús de almas, Davy ordena que mudem o curso da navegação. O capitão está impaciente e põe-se a reclamar de tudo, culpando os marujos pelo atraso no deslocamento. É que ele está afoito por chegar logo a seu amado reino.

O Reino Áqueo.

E, caso não seja de seu conhecimento, áqueo é o mesmo que aquoso. É que Davy queria dar um nome pomposo a seu reino, então recorreu a Smee, que sugeriu este adjetivo - porque nenhum dos outros substantivos e adjetivos relativos a mar e água funcionavam muito bem.

Em todo caso, talvez não seja de seu conhecimento, mas o Reino Áqueo se encontra bem no meio do Oceano Índico. Obviamente, nenhum ser humano é capaz de vê-lo. Mas o Reino é o lar das criaturas marinhas – o que envolve sereias e o Kraken – e Davy também aceita aves viajantes.

No entanto, se você está cansado de tanto navegar e pensa que chegaremos brevemente ao Áqueo, está muito enganado. E não fique bravo comigo, a culpa não é minha. E muito menos das estrelas. Leia o nome do capítulo.

A culpa é do Epílogo.

O Holandês Voador deslizava velozmente pelo Atlântico Sul quando uma das velas simplesmente rasgou de cima a baixo. Coisa que raramente acontecia num navio fúnebre como aquele. Porque, convenhamos, um navio coletor de almas chegava a ser quase imune a esse tipo de coisa.

Davy berrou loucamente e saiu marchando convés afora, reclamando e soltando seus costumeiros xingamentos. Ruby, que estivera cochilando em sua cama improvisada, saiu para ver o que acontecia. Deu com um Jones tentando subir pelo mastro. Isso mesmo, pelo mastro! É que ele botara na cabeça que...

— EU POSSO REMENDAR ESSAS PORCARIAS MELHOR DO QUE ESTES SACOS DE ESTRUME! SAIA DO MEU CAMINHO, BAIACU, VOU MOSTRAR-LHES O QUE É SERVIÇO BEM FEITO.

— M-m-mas, capitão, o senhor pode cair e se machucar... – argumentou Smee, ao que Davy berrou mais alto ainda.

— ORA, NÃO SOU VELHO E BICHADO COMO TU! ACHAM QUE NÃO DOU CONTA POR SER IMENSO E GORDO, NÃO É?

E ninguém iria admitir, mas era exatamente o que todos estavam pensando. Ruby precisou segurar uma gargalhada. É que Davy tentava escalar o mastro, mas sua imensidão e gordura o impediam. E ele nem podia subir pela rede lateral, que não suportaria seu peso. Depois de inúmeras tentativas (em que até Smee se forçara a segurar o riso), Davy finalmente desistiu, mandando que um dos mais espertos subisse e retirasse a vela comprometida.

Não se preocupem, meus caros, uma vela rasgada é o menor de nossos problemas.

Problema maior é quando o navio inteiro decide se rebelar.

E esta é uma coisa que costuma acontecer, porque o Holandês Voador tem vida. É claro, só falta falar e berrar como Davy, mas, se nunca notou, o navio é cheio de personalidade. E neste momento decidiu que não vai mais navegar.

— Oh come on! – bufa Davy, revirando os olhos, quando o Holandês para de deslizar, largando-os no meio do caminho. (Estão pertinho da Cidade do Cabo). – Não é hora para brincadeiras, Ollie!

Sim, Davy nomeou o navio. Não é fofo?

Mas a rebeldia de Ollie não importa muito agora. O que importa, realmente, é a pessoa por trás disso.

Ela.

E você pergunta: “Ela quem?”. Ela. Aquela que você sabe que não deve mencionar a bordo do navio. M. I. L. A. H. The Witch.

Ruby acaba por revirar os olhos e soltar um suspiro. Retorna à cabine e decide descer à sala de almas do capitão. Desde que esteve lá pela primeira vez, não tem feito muita coisa além de ficar ali, admirando os globos brilhosos. É que eles são tão bonitos! Ainda que doam suas vistas, são as coisas mais belas que ela já viu na vida.

E ela está lá, sentada no assoalho limoso, perto de um pequeno coral que cresceu no pé de uma das estantes. Há um siri perdido ali, caminhando vagarosamente de um lado para o outro. Ruby o ignora, fascinada que está pelo brilho prateado de uma das almas recém colhidas. Ela acha que está acostumando os olhos a isso. Davy lhe dissera que, uma hora ou outra, ela não se sentiria mais tão incomodada.

— É uma pena que tu estejas aqui – sussurra ela para a alma, que gira lentamente, flutuando sobre o baú aberto – Foste um bravo guerreiro, é hora de ter o descanso que merece...

E, quase como se a alma lhe desse uma resposta, a tampa do baú desce, cerrando-o. Ruby fica abismada, pois tem a certeza de que não foi ela quem fez aquilo. A tampa já não abre mais. Está trancada.

Bem, talvez as almas tenham algum domínio sobre os recipientes que as encerram, pensa Ruby. Talvez a alma não queira ouvir a moça, afinal.

Mas a coisa fica assustadora quando a porta do recinto se fecha com um BLAM. Tão forte que Ruby ouve a madeira rachar. Os mais otimistas pensariam: “Foi só o vento...”. Ou então: “Ollie realmente revoltou-se”. Mas a porta também está trancada e Ruby está chamando por Davy. Talvez ele a tenha trancado sem ter conhecimento de que ela está ali.

Mas Davy não escuta. Ficou surdo.

E então, como é de se esperar...

...há uma presença na sala... E pode apostar, ela é maligna...

É uma noite bonita. Estrelada.

Uma brisinha marítima entra pelas escotilhas.

O cheirinho de mar é uma gostosura.

Você dormiria fácil, fácil, embalado pelo leve balançar de Ollie.

Aaaaah, como é doce e calmo o mar noturno. Davy gosta das noites, pessoal. É por isso que às águas embalam o navio de um jeito tão gostoso.

Os marujos estão a bocejar longamente, ansiosos pelo momento de repousar.

Ninguém teria medo, nem nojo, nem qualquer outro sentimento ruim sobre o Holandês numa noite tão agradável.

Mas é aí que você se engana... Não olhe agora, mas... há uma presença maligna na sala...

— Quem está aí? – grita Ruby para a escuridão, alarmada. Ela sente um arrepio na espinha. Conhece a estranha sensação de saber quando alguém está se aproximando? Ou pior, a estranha sensação de estar sendo observado? Pois então! É o que ela sente... – Quem está aí?

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— Não temas, minhas querida Ruby – a voz que responde é um sopro distante. Parece vinda de um buraco muito fundo. Ainda assim, assemelha-se ao doce canto de uma sereia.

— Como sabe meu nome? Quem é você?

Não há resposta. Ruby está estática, as costas grudadas à porta, a mão esquerda ainda na fechadura. O coração está batendo como um bumbo. TUM-TUM-TUM-TUM. A respiração sai ofegante, acelerada.

Algo se mexe no fundo da sala. Alguém está correndo as mãos sobre os baús em que Davy guarda suas relíquias.

— Quem é? – grita Ruby, esganiçada.

A coisa se move. Para no centro da sala.

— Eu sou aquela que é etérea. – diz a voz adocicada, meio cantando – Eu sou aquela que é inolente. (Inolente significa sem odor). Aquela que imobilizará teu corpo. Aquela que arrancará de ti teu último suspiro... Eu sou o findar...

Eis que uma chama se acende. É a lamparina.

A coisa está vestida de branco. É uma mulher, afinal. Tem olhos claros, sorriso simpático e longos cabelos encaracolados. Aí é que está o erro, meus caros. Não confie em alguém só pelo sorriso.

— Eu sou o Epílogo!

Ruby está boquiaberta. Leva uns segundos encarando a recém-chegada. Nem sabe o que dizer. E quando diz o que sai é isto:

— A Morte?

— Eu não respondo por esse nome, ainda que o usem com freqüência. Chame-me do que quiser. Eu sou o fim, o encerramento, o remate, o ponto final. Mas não me chame de Morte, querida. Não condiz com minha aparência física...

Era só o que me faltava...

— Que queres de mim? – Ruby está trêmula e vacilante – É chegada a minha hora?

A outra sorri bondosamente. (Falsamente, isso sim!).

— Não, menina, não temas. De ti, não quero nada. – ela faz um movimento com a mão, destrancando a porta. Ruby se afasta para deixá-la passar – Preciso... ter uma palavrinha com Davy Jones. Há trabalho a ser feito e ele é o meu... coletor. O descansar das almas depende de trabalho conjunto, você sabe.

— Sim, senho...

— Senhora – sorri a outra, erguendo a barra do vestido e fazendo uma breve reverência – Eu devia ser assexuada, você sabe, mas no momento estou assumindo aparência feminina.

— Hum... eu deveria dizer que é um prazer conhecê-la, mas...

A Morte (eu não vou com a cara dela, vou chamar do que quiser) solta uma risada melodiosa.

— Ora, não te preocupes. Eu entendo – ela ergue a barra do vestido e quebra a distância entre ela e Ruby quando sobe os degraus até a porta. A moça sente um terrível congelamento na espinha, o que é normal, em se tratando de uma presença que sopra para longe a vida de uma pessoa, como quem sopra dentes-de-leão ao vento. E, pra falar a verdade, os olhos da mulher dão um medo danado, porque são enormes, redondos e brilham como duas bolas de gude postas contra o sol – Sabe... as pessoas me evitam ao máximo, até que algumas, por um motivo ou outro, me procuram. Elas me invocam em momentos de desesperança. Sabe, eu cheguei a ouvir um ou outro chamado teu, quando estavas a pensar no teu findar prematuro. – ergue a mão para acariciar a bochecha de Ruby e subitamente a garota tem a face tão fria quanto a de um cadáver – Sabes que podes me invocar a qualquer momento, não sabes? Eu sou medicina contra a dor...

Medicina contra a dor... Esta aí uma frase de impacto para quem quer acabar com o próprio sofrimento.

A maldita, digo, a Morte, sobe para a cabine de Davy e, antes mesmo que Ruby possa dizer alguma coisa, desaparece. Obviamente, a jovem fica tão abalada pelo encontro que precisa apoiar-se à porta e respirar fundo. Leva uns bons segundos inspirando e expirando profundamente, até que a tremedeira cessa. Seu primeiro pensamento é abandonar a cabine, para dar a Davy e Epílogo alguma privacidade. É exatamente o que faz. Tem intenção de ir à cozinha e pedir a Jeferson uma bebida quente. É que aquela ilustre (e assombrosa) presença a deixara mais friorenta do que de costume.

Ruby não avista a Morte quando sai para o convés. Na verdade, não há como enxergar qualquer coisa. É que o vento apagara a rústica iluminação do convés. A única coisa visível é a Lua, circundada pelas estrelas. Há vultos se movendo pela embarcação, no entanto, e Ruby localiza Davy ao ouvi-lo berrar. (Veja bem, eu só posso transcrever as falas, uma vez que não há modo de vermos o que está se passando).

— PUTA QUE PARIU! QUE MERDA É ESSA, OLLIE? SMEEEE! COLOQUE ESSAS LOMBRIGAS FEDORENTAS PARA TRABALHAR.

— O que quer que eu faça, capitão? Claramente, o navio não quer mais navegar por hoje.

— MANDE ESSES PATIFES LOMBRIGUENTOS, REMELENTOS E PIOLHENTOS REMAREM!

— M-mas, capitão, ainda faltam muitas milhas até o Reino Áqueo.

— ENTÃO MANDE REMAREM BEM RÁPIDO! AMEACE-OS COM O CHICOTE SE PRECISO!

— Sim, senhor!... Hum, capitão?

— DIGA, HOMEM!

— Está muito escuro...

Davy solta uma risada.

— E está com medinho, Baiacu?

— Não, senhor. É que não estou apto a enxergar no escuro.

(Smee é corajoso a ponto de ser sarcástico com seu capitão).

— Aaaah, não está apto a enxergar no escuro. É a idade, Smee, é a idade... SENHOR BOOOOOTH! GUIE SMEE ATÉ LÁ EMBAIXO. DEPRESSA, SUA LESMA GOSMENTA.

(Davy é mesmo um debochado. Finge estar apto a enxergar no escuro, quando ele próprio não sabe onde começa seu pé e termina sua cabeça).

— Cambada de gente lerda – resmunga ele.

Ouve-se o som oco e pesado de várias coisas caindo.

— OLHE AÍ O QUE VOCÊ FEZ, SEU RETARDADO! – berra um dos marujos.

— O QUE ESTÁ ACONTECENDO AÍ, SENHOR... QUEM FOI QUE FALOU?

— LEROY, SENHOR! ARCHIE HOPPER DERRUBOU AS BALAS DE CANHÃO, SENHOR!

— SENHOR HOPPER, RECOLHA AS BALAS DE CANHÃO!

— SIM, CAPITÃO! É PRA JÁ, CAPÍTÃO!

— CAPITÃO, O NAVIO INTEIRO ESTÁ ÀS ESCURAS!

— REACENDAM AS LAMPARINAS, SEUS IMBECIS! EU TENHO QUE ENSINAR TUDO?

— CAPITÃO! HÁ UM PROBLEMA, CAPITÃO!

— DIGA, MARUJO!

— NÃO ESTAMOS ENCONTRANDO O ÓLEO DE BALEIA NESTA ESCURIDÃO!

Talvez não seja de seu conhecimento, meu caro, mas àquela época, óleo de baleia era valiosíssimo, sendo, entre outras coisas, muitíssimo útil como combustível para lamparinas. Por este motivo, claro, milhares de baleias foram caçadas. (Davy não mata baleias para conseguir o óleo. Pelo contrário, pune os caçadores, afundando suas embarcações e roubando os estoques de óleo para si).

— MAS QUE MERDA! ALGUÉM ARRUME UMA FAÍSCA! EU NÃO QUERO NEM SABER, ARRUMEM JEITO DE ACEN...

Ouve-se o som de uma coisa rolando, seguida de um grito e um CABLAM.

Uma bola de canhão rolara pelo convés, acertando a perna de pau do capitão e o desequilibrando. Ele se estabacou no chão, feito um saco de batatas.

— ESTA PERNA DE PAU DESGRAÇADA! NÃO RIAM, SEUS ENERGUMENOS! ERGAM-ME DO CHÃO!

— CAPITÃO, NÃO CONSIGO VÊ-LO!

— ESTOU AQUI, SEU IMBECIL!

O resto você já pode imaginar: berros intermináveis, risos contidos, um caos na escuridão.

Ruby estivera sem noção de espaço, apoiando-se à porta aberta da cabine para não tropeçar em nada. Ela se pega rindo da confusão e se esquecendo da Morte. Ninguém se lembra das almas, que podem iluminar a embarcação provisoriamente. A moça faz menção de voltar à cabine e apanhar uns baús, quando é surpreendida pela visão de um vulto. Por alguma estranha razão, Ruby não o teme. A figura é esguia, alta e de brilho opaco. Não tem feições no rosto, nem cabelos e não está vestida. Trata-se apenas de um espectro transparente, do tamanho de um humano comum, com longos braços e pernas. A coisa ergue uma mão na direção de Ruby e, mesmo sem possuir boca, comunica-se com voz de mulher:

— Querida Ruby! Como tu cresceste!

E, como que por mágica, a jovem reconhece a aparição:

— Mãe?

— Que saudades de tu, minha querida! – dois olhos pequenos, um nariz arrebitado e uma boca sorridente surgem na assustadora face sem feições, ao mesmo tempo em que longos cabelos brotam da cabeça careca e uma larga camisola cobre o corpo descoberto. Eis que o espectro assume a simpática aparência de uma jovem senhorita – Estás tão linda, minha filha.

— Mãe! – Ruby se adianta para abraçá-la, mas tudo o que toca é o ar. O espectro sorri tristemente.

— Já não pertenço a este mundo, minha menina. Não podes mais me abraçar. Mas estou sempre contigo, faço parte de seu coração...

— Sinto sua falta...

— Também sinto sua falta...

E a mãe desaparece um instante depois, sem deixar rastros. Ruby pisca repetidamente, perguntando-se se tudo não passara de ilusão. Uma lágrima lhe escapa. Mas ela refrea a vontade de chorar.

Pois está a escutar o doce cantarolar de sua avozinha.

E, por um momento, algo de muito estranho está acontecendo por ali. Porque Ruby está vendo aparições de parentes e conhecidos. E não faz sentido. Como podem estar ali se encontram-se no repouso de um Paraíso? Bem... talvez... talvez as aparições sejam um rastro deixado pela Morte. É, até que faz sentido. Ruby é tão capaz de ver coisas que já está até apta a ver espectros. Não sei dizer, leitor, se isso é bom ou ruim...

Mas vou lhe dizer o que é ruim, na minha percepção: ser enganado pela Morte. Aquela vadia!

Ruby está a ouvir sua falecida avozinha cantar. É a canção de ninar que cantavam para ela dormir ou se acalmar quando acordava de um pesadelo. Algo sobre um barquinho no mar, sereias a cantar e um rei que não tem coração. Ruby se pega cantarolando e segue o som da voz que canta. Ela não sabe o que está fazendo. Foi hipnotizada.

O encanto se quebraria facilmente se alguém a chacoalhasse pelos braços. Davy bem teria notado que a moça fora enfeitiçada, meu caro. Porque Davy é quase expert em feitiçaria.

Eu daria um curso sobre reconhecimento de feitiços, mas não sou lá muito especialista no assunto. No entanto, posso lhe dizer que, se Davy pudesse enxergar naquela escuridão, teria notado a forma estranha com que Ruby agia. Olhar fixo, expressão neutra, andar arrastado... Em outras palavras, agia como zumbi. Ela não tinha controle sobre o próprio corpo, sequer percebia para onde estava indo. Apesar de todo o navio estar às escuras, Ruby desceu as escadas até o porão, feito sonâmbula, sem tropeçar nem derrubar nada.

— Vovó? – chamava, procurando, ansiando, sentindo um aperto no peito e uma desesperada vontade de chorar – Vovó!

— Estou aqui, minha querida! – há uma senhora gordinha, baixinha e sorridente sentada a uma cadeira quebrada e coberta de musgo. Parece uma pipoca, se você reparar bem. De aparência enrugada, corcunda e rechonchuda. Tão branca quanto um vestido de noiva e tão gelada quanto um floco de neve. Um espectro de brilho opaco – Sentiu falta da vovó?

— Sim, vovó. Sinto tanto a sua falta! – Ruby se abaixa perto da cadeira, tentando tomar as mãos do espectro entre as suas. Não consegue, obviamente – Minha vovozinha! Eu te amo tanto! Por que foste me abandonar?

— Não tive escolha, minha querida. – o espectro sorri, triste e bondosamente – Tive de me submeter à velhice. O descanso era necessário. Não pense que lhe abandonei, minha querida. Nunca estarás abandonada. Quando sentir minha falta, recorra à capa vermelha. É a única lembrança que restou de mim, minha filha.

— Sim, vovó...

— Senhorita Lucas? – August Booth, um dos marujos, se aproxima com uma vela – Com quem a senhorita está falando?

Ruby sequer consegue escutá-lo, muito menos notá-lo. Continua a tagarelar com uma cadeira vazia, sem dar-se conta de que não há espectro algum. É isso mesmo, não há espectro algum. Eu lhe disse, meu caro: é terrível ser enganado pela morte.

August Booth pende a cabeça para o lado, abobalhado. Ele acha que, ou está vendo coisas ou a senhorita Lucas é quem enlouqueceu. Ele bem tenta se aproximar dela, até estende uma mão para tocá-la, mas nesse momento a chama da vela apaga.

E a vovó espectro desaparece.

E eis então, meus caros, que a vad... que a Morte se supera. Ela arrasta Ruby para ainda mais longe de Davy. Eis que o andar de baixo é... adivinhem! A fossa! É o nível mais baixo do navio, como é do conhecimento de vossas senhorias. E lá embaixo, boiando no meio dos dejetos, encontram-se os marujos briguentos do capítulo anterior.

Se você acha que Ruby vai descer até lá e boiar no meio do cocô...

... você está muitíssimo certo! Infelizmente...

A culpa não é dela, coitadinha. Enfeitiçada que está, mal nota a podridão que lhe chega às narinas. E o cheiro é simplesmente... não há palavra que possa descrever, desculpem. A única coisa que supera o cheiro de fossa é o bafo do Kraken. E, ainda assim, eu prefiro o Kraken (melhor ir parar no estômago do monstro do que no meio do cocô).

A Morte é mesmo uma bitch. Porque, vejam bem, para enganar Ruby, ela criou falsos espectros de pessoas que a meninas mais amava. Às vezes, Morte e Maldade andam juntas.Talvez você não concorde, mas até Karolyn é uma santa perto da crueldade do Epílogo. Vejam bem... Há mais um espectro chamando por Ruby. Na fossa.

Seu pai...

— Oi, meu amor! Que saudades de você!

O homem não tem rosto. Apenas longos membros, que se erguem em direção à garota, incentivando-a a entrar mais na água.

Sabe quando você vai à praia, entra no mar e quer continuar se afastando da margem? E então, em algum momento, você se vira e se dá conta de que está longe da segurança? Bem, é exatamente assim que Ruby é levada ao centro do perigo. A voz de um homem que ela amava a incentivando. Seus braços a convidando a um abraço caloroso, que na verdade não existe. E ela não consegue ver. Nem mesmo a falta de um rosto lhe causa estranhamento. Talvez seja um feitiço de distorção, mas não tenho certeza. O que eu sei é que...

... Ruby entrou na fossa... e está com metade do corpo na água...

... os marujos briguentos do capítulo anterior só conseguem notar a presença de alguém porque os passos da moça fazem CHAP-CHAP na água... e porque a moça em questão está a falar para o vazio...

— Quem é? Senhorita Lucas? – indaga um dos homens, sua voz ecoando pelo recinto escuro (que eu não vou ousar descrever, porque você pode imaginar muito bem) – Com quem está falando?

— Iiih! Acho que esse lugar já afetou a cachola dela – comenta o outro, em tom raivoso – Também, essa merda de lugar! E a culpa é sua estarmos aqui!

— Minha nada! Tu que ofendeste minha Anastasia!

E os dois recomeçam a discutir, por isso não notam nada do que se passa.

— Meu amor! – diz o falso espectro. Em toda sua loucura e êxtase, Ruby enxerga nele o rosto sorridente do pai – Venha cá, dê-me um abraço!

Ah. Meu. Pai. Do. Céu...

... eu não queria narrar essa cena, mas...

Ruby se deixa enganar. Aproxima-se da coisa maldita. Está agora com a água podre e malcheirosa a bater em seu peito. Ela ergue os braços, pobrezinha. Está a sorrir para o nada. Anseia pelo calor do abraço que não vem.

Ah, mas o abraço vem sim... Aquela desgraçada! Não devo me exaltar, eu sei... mas é que...

Ruby está a abraçar a Morte.

E a Morte a arrasta para o fundo da fossa.

E Ruby começa a se afogar.

E não há quem possa salvá-la.

Porque os marujos briguentos estão presos a correntes.

E ninguém notou a ausência de Ruby lá em cima.

E Davy... ah meu Senhor! Davy ainda está berrando para que acendam as luzes!

Ruby está a se debater. Clama por ajuda. Quer gritar, mas está sufocada. E a Morte está a arrastá-la para baixo. Sabe o Epílogo? Sabe aquela aparência bonita, aquela voz melodiosa, aquele jeitinho simpático e educado? Aquilo é pra inglês ver. Aquela vadia maliciosa!

A questão é, meus caros: a Morte e o Senhor dos Oceanos realmente trabalham em conjunto. Mas o que vocês não sabem é que Morte e Milah, a feiticeira que amaldiçoou Jones... bem, elas são a mesma pessoa. Aliás, Milah nunca foi uma pessoa, apenas um lobo em pele de cordeiro.

A verdade é: quatrocentos anos antes, a Morte se fantasiara de humana. Estava à procura daquele que seria seu escravo: o coletor de almas. Porque, veja bem, ela estava enfadada daquele serviço. Percorrer o mundo dando um fim às vidas que estavam por um fio. Recolher bolas brilhantes, guardá-las consigo e então julgá-las e condená-las a um destino. Aquele trabalho era um saco! Não, não, ela precisava de um pobre coitado para fazer parte do serviço por ela. Dois, na verdade.

Um para a terra e outro para o mar.

E o resto você já sabe. Davy cruzou o caminho de Milah, a dispensou por sua feiúra - que foi proposital, porque, no fundo, ela já escolhera Davy como seu subalterno, só precisava de uma desculpa para condená-lo ao sofrimento eterno – e foi amaldiçoado a vagar por aí num navio que tem personalidade própria, com uma tripulação de bichos estranhos, tendo o fardo de remover almas de cadáveres.

Pobre Davy... Eu tenho muita pena dele, sabem. Apesar de tudo, ele não merecia isso.

E eis, meus caros, que Ruby se metera entre Davy e a Morte.

Quer saber por que, em quatrocentos anos, ninguém perseverou em quebrar a maldição? Porque a Morte sempre dá cabo dos que tentam. Porque ela sabe que, algum dia, haverá aquele que livrará Davy de seu controle.

E Ruby foi azarada por acabar neste navio. E é por isso que está prestes a morrer com seus pulmões clamando por ar. Desamparada, no meio da podridão, completamente vulnerável... Não imagino cenário pior para a morte de alguém.

Eis então que surge uma luz. Literalmente. Apesar de prestes a desfalecer, Ruby vê, por baixo d’água, um halo forte de luz. Não tem tempo de pensar em mais nada, nem de absorver as ações que acontecem a seguir.

Vê-se sendo arrastada para cima. Uma torrente de água despenca de seu corpo. Ela tosse, cospe, sufoca, respira sofregamente, sem conseguir entender o que está se passando. Davy está a segurá-la pela parte de trás do vestido, mantendo-a dependurada, chacoalhando-a para que a água contaminada escape de seus pulmões. E com a mão em garra... com a mão em garra...

COM A MÃO EM GARRA DAVY APERTA A MORTE PELO PESCOÇO.

Aplaudam o mais alto que conseguirem!

— QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO AQUI, MALDITA? EU DISSE QUE DEVIA FICAR FORA DO MEU CAMINHO! NÃO VOU TOLERAR SUAS ARMADILHAS A BORDO DO MEU NAVIO.

E a maldita, sorrindo com escárnio:

— Não te esqueças, meu querido, de que EU dei este navio a você! EU o coloquei nesta posição! EU o tornei um Deus! E tu nunca deixarás de ser um. Ninguém há de quebrar esta maldição! Ninguém!

E o Epílogo desaparece numa lufada de vento, sua risada melodiosa ecoando por toda a embarcação. Fica no ar a ameaça: a vida de Ruby está em risco. E a coitadinha só consegue botar os bofes pra fora.

Eis que Davy resolve nos surpreender. Pega a garota no colo, carregando-a do jeito mais gentil que consegue. Então lhe oferece um olhar cheio de conforto e promete:

— Não se preocupe, meu bem... Não vou permitir que ela se aproxime de você.

Já podemos sofrer um enfarto?