Lord Of The Seas

Eu Sou A Esperança - Parte 2


A cada minuto, tudo ficava mais confuso. Ruby estava lidando bem com os borrões de tinta, mas saber que estava falando com a Esperança em carne e osso, a fazia achar que estava enlouquecendo. Porque, convenhamos, quando é que iríamos pensar na Esperança como sendo uma pessoa? Ela disse isso ao homem e ele soltou uma de suas risadinhas.

– Ora, minha querida, eu não sou uma pessoa, sou uma virtude. E, assim como todas as outras virtudes e sentimentos, sou capaz de assumir a forma humana quando há necessidade.

– Estás dizendo que virtudes e sentimentos podem caminhar entre os humanos sempre que sentem vontade?

– Mas é claro! A propósito, queridinha, não acha que esta festa está um tanto deprimente? Não devíamos trazer um pouquinho de alegria? – e, dizendo isto, ele bateu as mãos e os borrões sumiram. Ruby respirou aliviada quando as pessoas voltaram a ser como eram antes, mas logo se preocupou, quando Victor olhou bem nos olhos dela e marchou em sua direção.

– Por favor, não me digas que ele pode me ver agora – ela murmurou baixinho para Esperança, que apenas lhe deu tapinhas na cabeça.

– Não se preocupe, queridinha, é aí que começa a diversão!

No mesmo momento, ouviu-se um grito a ecoar pelo salão. Victor parou no lugar e girou o corpo para ver o que acontecia, ao mesmo tempo em que as pessoas soltavam gritinhos e corriam ao auxílio da pobre coitada que gritara. E imaginem vocês, a pobre coitada era ninguém mais ninguém menos do que Karolyn, cujo enorme cabelo pegara fogo após ela esbarrar num dos lustres cheios de velas.

– ACUDAM-ME! ACUDAM-ME!

– Karolyn!

– Mamãe!

E foi uma balbúrdia sem tamanho. Esperança gargalhava, enquanto Ruby se esforçava para não rir. Ainda que fosse engraçado, ela sentia pena de Karolyn. Observaram enquanto a mulher corria de um lado para o outro, desesperada e parecendo um enorme marshmallow em chamas. Por fim, para salvar o que ainda sobrara de suas madeixas, ela resolveu mergulhar a cabeça na bacia de ponche – que, por azar, era feito de bebidas alcoólicas e não suco -, o que só aumentou ainda mais o tamanho das chamas.

– JEEEEESUUUUUS ACUUUUUDAAAA-MEEE!

Foi então que um golpe de água a atingiu na cabeça, apagando o fogo (um homem correra a trazer um balde d´água). Como era de se esperar, sua maquiagem derreteu, revelando seu rosto cheio de rugas, e seu vestido pesou ainda mais, de tão encharcado. Karolyn desabou no chão parecendo um pato gordo, velho e depenado, e as pessoas começaram a rir discretamente ao se dar conta disso.

– Aí está: alegria! – Esperança abriu os braços, deliciando-se ao ver o humor das pessoas mudando. Se antes estavam entediadas, agora estavam com o riso solto.

– Isso é maldade – falou Ruby, acabando-se de rir.

– Bem, às vezes, Maldade e Alegria andam juntas.

Karolyn escondeu o rosto nas mãos, muitíssimo envergonhada. Os poucos cabelos que sobraram em sua cabeça estavam chamuscados e a armação de metal que usara para manter o penteado alto escorregara para o chão. Havia até pedaços de frutas grudadas aos fios que sobraram, o que dava a impressão de que ela tinha uma salada de frutas no cocuruto.

– De fato, meu caro – disse uma mulher, que vinha na direção de Ruby e Esperança. Vestia-se inteiramente de preto e andava com a elegância de uma rainha. Seus cabelos pretos estavam presos num coque estiloso, ela usava maquiagem escura nos olhos e um batom vermelho-sangue.

– Oh, olá, queridinha! Não imaginei que fosse aparecer por aqui, Regina. – disse Esperança, olhando para a mulher.

– Ora, sabes que eu adoro festas! – disse Regina, passando um braço pelos ombros do homem – Precisava de uma diversãozinha noturna. Que acharam do meu truque com o lustre?

– Fizeste aquilo? – perguntou Ruby, pasma. Com certeza, ela devia ser a única capaz de ver aquelas duas figuras bizarras.

– Mas é claro que sim, querida. Nada como uma maldadezinha para alegrar uma festa entediante – seus olhos se voltaram para Karolyn, que chorava em alto e bom som enquanto era erguida por Victor. Regina então soltou uma sonora gargalhada, levando Rumplestiltskin a fazer o mesmo – Parece um pato gordo, velho e depenado...

– Não é? – Esperança se dobrou ao meio de tanto rir.

Ruby, de repente, sentiu muita pena da madrasta. Tudo bem, Karolyn merecia aquilo, mas Maldade, ou melhor, Regina – como gostava de ser chamada – exagerara um pouquinho. Trouxeram uma cadeira para que o pobre pato... quero dizer, a pobre mulher se sentasse, e então a família se reuniu em volta dela, tentando acalmá-la.

– Sabe, tu devias ir lá prestar sentimentos. – sugeriu Rumplestiltskin, debochado – Não é todo dia que se perde o cabelo.

E ele e Regina voltaram a gargalhar.

– Quanta maldade! – Ruby exclamou. Depois parou para pensar que, se fosse ela quem estivesse naquela situação, Karolyn estaria se acabando de rir. – Ora, querem saber de uma coisa? Foi muito bem feito! Eu gostaria muito de poder me vingar de certas pessoas, mas já que não posso, será que tu podes? – perguntou à Maldade/Regina.

– Mas é claro que posso! Sei exatamente o que estás pensando. Alegria vai me ajudar com isso. Mas onde é que se meteu aquela menina? Anna! Anna! – e sumiu por entre os convidados.

Dali a pouco a avistaram de mãos dadas com uma jovem de cabelos ruivo-acobreados divididos em duas tranças. As duas riam em cumplicidade, enquanto se aproximavam de Victor, que abanava Karolyn com um leque. Regina, então, agitou as mãos e - para horror de Karolyn e de todas as outras mulheres presentes no salão – uma barata enorme e cascuda saiu de dentro da peruca de Victor, caminhando pela lateral de seu rosto. Ele soltou um grito afeminado, usando uma das mãos para se livrar do inseto, que foi cair bem no decote de Karolyn. A mulher urrou, aterrorizada, e caiu para trás, desfalecendo. Alguns homens foram em socorro da coitada, enquanto Victor arrancava a peruca e chocava os convidados por ter um camundongo na cabeça.

– Um rato! – as damas nobres soltaram gritinhos quando o bichinho caiu no chão e correu em disparada.

“Que horror” e “Que homem desmazelado” foram apenas alguns dos comentários que correram pelo salão. Ruby ria até não poder mais, enquanto as próprias filhas de Karolyn se seguravam para não fazer o mesmo. Levou tempo até que a senhora Wade recobrasse do desmaio, e quando o fez, desejou que não estivesse num salão lotado de gente. Com toda certeza, na manhã seguinte, os jornais estariam anunciando a falta de compostura do senhor Wade, que carregava ratos e baratas na cabeça.

– Que acharam? Foi vexame o suficiente? – perguntou Regina, vindo de braços dados com a garota ruiva.

– Eles jamais se esquecerão disso – falou Ruby, sentindo-se vingada.

– Olá! – a garota ruiva veio até ela e desatou a falar – Como é teu nome? Meu nome é Alegria, mas também podes me chamar de Anna. Oh, que vestido bonito! Sabe, eu não gosto de vestidos tão grandes e detalhados, nem de espartilhos... espartilhos são tããão inconfortáveis... Gosto mesmo de me sentir leeeeve como uma pluma – e ela abriu os braços e rodopiou pelo salão como um floco de neve. Por onde passava, as pessoas começavam a rir feito bobas, como se tivessem lembrado de uma piada tosca, mas engraçada.

Anna seria uma graça de pessoa, se realmente fosse uma pessoa e não um estado. Ela parecia uma criança que comera muitos doces e ficara enérgica demais para conseguir aquietar-se. Girando pelo salão, despertara nas pessoas um estranho desejo de rir. Agora tudo o que se ouvia era um coral de risadinhas e gargalhadas, o que tornou a noite muito mais agradável.

Ruby se sentira tão feliz repentinamente, que só foi se lembrar de sua família detestável quando Victor veio buscá-la.

– Vamos embora – disse ele, entre raivoso com a garota e humilhado pelas risadas. Ruby não teve escolha a não ser seguir o homem, que a segurou com força por um braço.

Para sua sorte, Alegria, Esperança e Maldade os seguiram porta afora, quando iam descendo os degraus da frente da imponente mansão Hutch. Karolyn chorava agarrada a Brigite, enquanto as outras filhas ficavam confusas, sem saber se riam ou ficavam tristes pela mãe. Victor fez sinal a um dos coches livres e o cocheiro conduziu o cavalo até perto da calçada.

Uma água escura e malcheirosa escorria pela rua, o fedor perturbando os narizes de quem passava por ali. Como naquela época não havia saneamento básico, os esgotos corriam a céu aberto, empesteando as ruas. Como se não bastasse a poça de dejetos humanos, ainda havia barro trazido pelas chuvas e os dejetos dos cavalos. Quem passasse ali devia tomar cuidado para não levar um tombo e cair de cara na imundície.

Bem, para o azar de Madge, Regina colocou o pé na sua frente, fazendo-a tropeçar e desabar com um baque surdo. Na queda, seu vestido não só ficou contaminado pela água imunda do esgoto, como as armações de metal sob ele amassaram, dando a Madge a aparência de um guarda-chuva entortado.

Brigite caiu na risada de porco asmático, quase sufocando sob o espartilho apertado. Ruby tentava segurar o riso, mas não estava tendo sucesso. Victor foi ajudar a pobre Madge a se levantar, enquanto Karolyn se esquecia de sua desgraça e gargalhava estrondosamente.

– Parem de rir! Parem de rir! – guinchava Madge tentando se levantar da maçaroca de dejetos na qual estava sentada.

Karolyn ficou séria, tornando a se lembrar de seu cabelo queimado; Pearl suspirou e escondeu o rosto nas mãos; Ruby segurou o riso; e Victor puxou Madge pelos braços, tentando não rir dos arames retorcidos que se projetavam para fora de seu vestido. Brigite ainda ria incontrolavelmente e chegou a ficar sem ar, pois o espartilho pressionava suas costas e barriga. A coitada começou a ficar roxa e estava a ponto de desmaiar quando o espartilho arrebentou, levando junto a parte traseira do vestido, que rasgou de cima a baixo, revelando suas roupas íntimas (que uma dama direita jamais deveria mostrar em público). A garota gargalhou ainda mais, até que acabou por desabar na escada, escorregando pelos degraus restantes.

Todos foram pegos por uma estranha crise de risos, o que talvez fosse um efeito da Alegria, que ria com Esperança e Maldade. A única que se mantivera séria era Pearl, que queimava de vergonha, sentindo-se humilhada pela família.

O cocheiro, que disfarçara o riso com tossidas exageradas, ofereceu uma mão à loira caída na escada, que nem conseguia se levantar de tanto que estava rindo. Ruby teria aproveitado a confusão para fugir, mas Esperança a empurrou pela porta aberta do coche. Pearl veio atrás, sentando-se de frente para Ruby e acabando espremida por Brigite, que enxugava as lágrimas de riso e nem se importava com o vestido rasgado. Karolyn veio em seguida, espremendo Ruby contra a parede com seu vestidão encharcado. Por último vieram Victor e Madge, que empesteou a cabine com o cheiro de merda que exalava.

Quando a porta da cabine foi fechada, todos estavam tão espremidos que não havia espaço para mexer as pernas. O coche partiu aos chacoalhões, jogando uns em cima dos outros a cada vez que as rodas passavam por um buraco ou pedra desnivelada. Ruby viu seus três novos amigos acenando ao longe e pensou em acenar de volta, mas passaria por louca, já que era a única capaz de vê-los.

Um silêncio se estabeleceu na pequena cabine. Mal conseguiam enxergar uns aos outros, com a escuridão das ruas. O vestido molhado de Karolyn pingava água, molhando os pés de todos, e Ruby torceu o nariz para o cheiro de cabelo esturricado e para o fedor insuportável de esgoto. Karolyn resolveu quebrar o silêncio:

– Nunca me senti tão humilhada. Amanhã os jornais irão detonar nossa família. Meu Deus, que escândalo... A família Wade, uma das mais notáveis de toda a Londres... A senhora Wade fez papel de ganso encharcado e escalpelado... o senhor Wade, que vergonha, não tem o mínimo de higiene com suas perucas...

– Eu não sei como aqueles bichos foram parar lá... – ia dizendo Victor, mas foi interrompido.

– ...a senhorita Wade mais velha desabou numa poça de merda... – E Karolyn caiu em sua gargalhada escabrosa, levando todos a outra crise de risos. E dessa vez, nem Pearl conseguiu se agüentar. Até o cocheiro riu sozinho, ouvindo o que se passava na cabine.

Aquela foi a primeira e única vez em que Ruby riu junto com a família.

Quando o coche parou na entrada do solar Wade, o povo saiu aos tropeços. O mordomo veio lhes abrir a porta, arregalando os olhos para a procissão de gente descomposta que ia entrando. Pearl e Ruby eram as únicas que ainda estavam bem vestidas, embora o vestido de Ruby estivesse meio úmido e sujo com a terra do jardim dos Hutch. Karolyn começou a berrar com todo mundo, descontando sua raiva e estresse em quem encontrava pelo caminho. Ruby aproveitou a confusão para ir refugiar-se no quarto, onde se trancou.

– Esperança! – chamou baixinho, esperando que de alguma maneira o homem fosse aparecer – Esperança? Alegria! Maldade! Por favor, apareçam!

Um inseto grande e verde entrou voando pela janela, indo aterrissar na penteadeira. Era uma esperança. Ou melhor, a Esperança, ou Rumplestiltskin, como se nomeava.

– Chamou, queridinha? – perguntou o inseto, escalando um frasco de perfume.

– Tu podes assumir forma animal também? – indagou Ruby, vindo até o inseto e o encarando, surpresa.

– Claro que sim, minha querida, posso assumir a forma que quiser. Em que posso ajudá-la?

– Eu preciso sair daqui! Preciso sair e encontrar Davy Jones. Não posso mais conviver na mesma casa que Victor, ele pode tentar me violentar outra vez.

– Bem, bem... então terás de esperar até que todos durmam – o inseto voou para o armário – Encontre-me na praia e te ajudarei a encontrar Jones – ele bateu as asas e saiu pela janela, enquanto Ruby suspirou e se olhou no espelho da penteadeira.

Estava pensando se aquilo era mesmo uma boa ideia. Trazer o pai de volta dos mortos? Será que essa era sua única escolha? Será que Henry Lucas não gostaria de ser deixado em sua tumba no fundo do mar? Talvez ele já tivesse alcançando a felicidade eterna, agora que fora para um lugar melhor. Bem, mas que outra escolha ela tinha? Mesmo que fugisse, não conseguiria ir para muito longe, logo a encontrariam e trariam de volta ao sofrimento que aquelas pessoas lhe infligiam. Acabar com a própria vida, logicamente, não era a coisa mais sensata que ela poderia fazer. Pelo menos não agora que ela se sentia tão esperançosa. A melhor chance que ela tinha era Davy Jones. E não importava que ele fosse apenas o ser mais terrível e cruel dos oceanos. Qualquer coisa era melhor do que viver ali.

Quando a casa aquietou e todas as luzes foram apagadas, Ruby saiu pé ante pé pelo corredor. Trocara o vestido de festa por um vestido mais simples e cobrira a cabeça com sua capa vermelha, presente de sua falecida avozinha. Levava numa cestinha os seus pertences mais preciosos, pois estava convicta de que aquela seria a última vez que via o solar Wade. Caminhando na escuridão do corredor, topou com um vulto que ia subindo as escadas. Pearl.

– Aonde é que tu vais? – perguntou a menina, carregando um lamparina e notando a cestinha de Ruby – Vais fugir?

– Por favor, Pearl, não contes à tua mãe. – Ruby agarrou a mão esquerda da menina, que pendia ao lado de seu corpo – Não posso mais viver nesta casa, preciso partir.

Pearl pensou por uns segundos. Usava um camisolão branco e a luz da lamparina lhe dava um ar meio fantasmagórico. A menina, então, assentiu. Como Esperança dissera, ainda não fora corrompida pela mãe, por isso tinha um coração bom (ainda que maltratasse Ruby às vezes).

– Está bem! Não contarei nada! Mas um dia tu hás de voltar para me buscar. Não agüento mais viver nesta casa, sendo controlada por mamãe o tempo todo. Tu prometes que volta para me buscar antes de eu chegar à maioridade?

– Prometo! – Ruby sorriu. Aquela era uma promessa verdadeira. Ela realmente voltaria por Pearl, depois que resgatasse Henry das profundezas. – Juro por meu pai morto: voltarei para buscá-la!

Pearl assentiu, dando passagem a Ruby. Antes que a irmã se afastasse, porém, emitiu mais algumas palavras:

– Sabe, eu sinto falta do Henry... ele era engraçado e não usava uma peruca ridícula...

Ruby sorriu e desceu a escadaria de mármore branco. Lá embaixo, a única coisa que iluminava o salão de entrada era o fogo crepitando na lareira. O resto da casa estava na mais completa escuridão. Ela acenderia uma lamparina, mas o risco de ser pega era muito grande. Atravessou o salão de entrada, em direção à porta dos fundos, quando ouviu a voz rouca ali perto.

– Aonde é que pensas que está indo?

Era só o que faltava... Victor estava sentado ao sofá, uma taça de vinho tinto numa das mãos. Encarou a garota estagnada no meio da sala.

– O gato comeu tua língua? Fiz-te uma pergunta. – ele se levantou e, por instinto, Ruby se afastou – Aonde é que pensas que está indo?

– Vou embora. E ninguém irá me impedir. – respondeu firmemente.

– Mesmo? – a voz dele era autoritária, cheia de fúria. Ele ainda não perdoara o que ela lhe fizera no jardim e suas partes baixas ainda doíam (ele até achava que o chute de Ruby o deixara estéril). – Veremos... Não és dona do próprio nariz. Não tens vinte e um anos completos, não tens permissão de deixar esta casa, a não ser que eu permita. – ele falava em voz baixa, mas alto o suficiente para que preenchesse a sala com ecos – Não és minha filha de sangue, mas tenho total controle sobre ti. Sou teu guardião legal...

– Não importa! Não viverei sob o mesmo teto que tu, não depois do que aconteceu na festa...

– O que aconteceu na festa foi enterrado e enterrado ficará para sempre. – ele caminhou a passos silenciosos na direção dela, como uma cobra se aproximando silenciosamente para dar o bote – Tu podes até tentar contar a Karolyn, mas ela jamais acreditará em suas palavras. Estás presa a mim enquanto estiveres sob minha guarda. Sinto dizer, querida Ruby, viverás neste inferno por mais dois anos!

Dois anos... dois anos era muito tempo. E naquele tempo todo, ela sabia, ia ser abusada pelo padrasto. Se não podia contar nada a Karolyn, que poderia fazer?

Conforme Victor se aproximava, ela pensava, e pensava, e pensava. Sua cabecinha funcionava a todo vapor, tentando encontrar uma rota de fuga. Para chegar à porta dos fundos, primeiro teria de passar pelo homem. Victor era forte e estava bêbado e furioso com ela. E todos estavam dormindo. Ruby sabia, quando Karolyn se deitava e começava a roncar, apenas um furacão ou ciclone seria capaz de acordá-la. Com isso, as chances de que alguém viesse acudi-la eram quase mínimas. Até que um dos empregados acordasse e viesse até a sala, era capaz de Victor já ter lhe enfiado num saco e jogado pirambeira abaixo.

– Estás muito enganado! – ela vociferou. Seu corpo inteiro tremia de raiva e pavor, mas ela ainda tinha coragem o suficiente para conseguir se defender. A Adrenalina já começava a agir em seu corpo, preparando-a para o que quer que acontecesse. Suas veias fervilhavam como pequenos rios de lava e ela sentia como se pudesse cuspir fogo a qualquer momento. – Tenho idade suficiente para saber o que é melhor para mim. Tu e Karolyn sois meus guardiões, mas não minha família. Jamais serão. Sugiro que saia do meu caminho, antes que sofra conseqüências.

Victor gargalhou loucamente. Seus olhos brilhavam feito os olhos de uma fera faminta, sedenta por sangue. Ruby já formulara seu plano. Estava agora parada de frente para a lareira, o fogo crepitante lançando sua sombra sobre o teto. O que interessava naquele momento não era o fogo, no qual ela simplesmente poderia empurrar Victor. O que interessava era o atiçador da lareira, que estava com a ponta enterrada entre os restos de lenha que ainda queimavam. Naquele momento, um atiçador fervendo era a única arma que ela tinha à mão.

– Ruby, Ruby, doce Ruby... achas mesmo que terei medo de menina tão doce e ingênua? – ele se aproximou ainda mais, dando a volta na mesinha de centro, que estava em seu caminho – Achas mesmo que és uma ameaça? Contarei-te um segredo: estive com meus olhos sobre ti desde que chegaste a esta casa. Sei bem com o que estou a lidar. Tu não passas de uma garotinha ingênua... Pobrezinha... não sabe ler nem escrever... como poderias representar uma ameaça?

Ora, então ele não a conhecia realmente. A antiga Ruby talvez fosse ingênua, medrosa e fraca... A nova Ruby não era. A nova versão de Ruby Lucas nascera quando ela escapara daquele homem – um verdadeiro Lobo Mau – pela primeira vez. Nascera quando Esperança abrira seus olhos para a magia. A nova Ruby era corajosa, esperançosa e forte. E daí que ela não sabia ler? Não precisava saber ler para brandir um atiçador de lareira contra seu padrasto.

Victor cortou o espaço entre eles quando percebeu o que ela ia fazer. Ruby se abaixara e, antes que pudesse apanhar o atiçador, fora agarrada por trás e imobilizada. Seus punhos foram agarrados pelas mãos fortes de Victor e ela desabou sob o peso dele, por pouco não arrebentando o nariz no chão.

– Vagabunda, ensinarei-te a obedecer-me!

Por mais que ela tentasse se soltar, a Adrenalina não estava ajudando. Ela tinha força, mas a capacidade física de Victor era muito maior do que a dela. Foi agarrada pelos cabelos e forçada a se virar, de modo que acabou com as costas no chão. Victor esbofeteou sua cara e Ruby gemeu quando a dor lancinante percorreu seus músculos faciais. A visão falhou por uns instantes e ela lutou para ficar acordada, enquanto o brutamontes socava sua cabeça no carpete, tentando desmaiá-la. Ruby lutava com todas as suas forças e Victor, tomado por uma fúria insana, a agarrou pelo pescoço.

E por que é que, com toda aquela luta, ninguém acordara?

Ora, meus caros, é claro que alguém acordara. Pelo visto, um furacão não era necessário para tirar Karolyn da cama...

Victor tomou um susto quando alguma coisa caiu ali perto. Desviou sua atenção para o objeto que caíra – um lindo cisne de cristal, que rolara da mesinha de centro -, o que deu a Ruby a chance de agarrar a primeira coisa que encontrou a seu alcance: o sapato que caíra de seu pé esquerdo. Juntando toda a força que tinha, a garota acertou o sapato na cabeça do homem, que ficou atordoado o suficiente para que ela conseguisse empurrá-lo sobre a mesa de centro, que tombou para o lado, lançando Victor contra o sofá. Ruby apanhou o atiçador quente e então o apontou para o homem, que levantava e vinha em sua direção.

– Não! Não te aproximes!

– Serias capaz de usar isto em mim? – sua expressão de fúria deu lugar a uma expressão inocente e arrependida. Como se Ruby fosse idiota para se deixar enganar pelo homem.

– Não te aproximes de mim... ou verás do que sou capaz...

Antes que Victor pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, um vulto se aproximou, como fantasma. Karolyn estava vestida em seu melhor robe de seda e veio deslizando pelo assoalho de mármore. Sua cabeça, redonda como uma bola de bilhar, brilhava com a luz que vinha da lareira. Apenas o topo de sua cabeça queimara, de forma que ainda havia fios de cabelo em volta da esfera que era seu cocuruto. Os fios espetados faziam com que ela se parecesse com a Estátua da Liberdade (que, aliás, nem fora construída ainda).

– Karolyn? Querida... que estás... que estás fazendo aqui embaixo? Pensei que estivesses a dormir...

– E estava! – ela respondeu com secura. Sua expressão não era das melhores e Ruby sabia que a madrasta estava furiosa. Acordar Karolyn era pedir para morrer. Mas, pelo menos dessa vez, a expressão de fúria não era para Ruby – Acordei e não encontrei meu marido a meu lado. E o que encontro quando desço para procurá-lo? Estava a se divertir com a enteada...

– Karolyn, eu posso explicar...

– CALADO! NÃO QUERO OUVIR TUA VOZ!

Ruby ainda segurava o atiçador, trêmula. A Adrenalina devia ter parado de correr por suas veias, porque agora ela sentia-se extremamente amedrontada.

– Querida, ela tentou me atacar com o atiçador fervendo, eu não tive como...

– CALADO! – ela apertava os punhos, tentando conter a raiva. Abaixou a voz para poupar as filhas de escutarem a discussão que viria a seguir – Vi bem o que aconteceu. Tenho olhos, Victor. Não sou tola!

– Karolyn, eu posso explicar o que aconteceu...

– Não há nada que explicar... Vi o suficiente – agora ela parecia chateada, inconformada. Fora traída e, querendo ou não, seu coração doía de tristeza e desapontamento. – Nunca me amaste, não é? Teus olhos sempre se voltaram para ela – fez um gesto vago na direção de Ruby – Eu sei... eu percebo as coisas. Não disse nada porque... porque sabia que era melhor viver uma mentira a não viver coisa nenhuma...

– Karolyn, sabes que eu a amo com todo meu coração, minha querida. – Victor tentou se aproximar, mas a mulher o afastou, praticamente rosnando para ele.

– Mentira! Tu pensas apenas em teu prazer próprio, em tua própria felicidade... Sempre egoísta... Fui apaixonar-me por um cafajeste, um idiota sedutor! Não penses que não percebo os olhares que lança na direção dela... na direção de minhas filhas, na direção de Pearl... Pelo amor de Deus, ela é uma criança!

– Eu nunca... jamais faria qualquer coisa...

– E aceitei tudo isso porque estava embriagada pelo poder, hipnotizada pelo dinheiro... E porque amava-te! Amava-te com todo meu coração... Tu, Victor, foste minha paixão mais avassaladora... mas agora, agora...

Ver Karolyn daquele jeito, tão vulnerável, fazia Ruby sentir pena. Naquele momento, ela tivera a capacidade de esquecer tudo o que sofrera nas mãos da madrasta. Teria até abraçado Karolyn, confortado-a. Mas aí a mulher veio até ela.

– Isto que aconteceu... não foi a primeira vez, foi? – perguntou, agarrando a jovem pelos braços, enlouquecida por saber a resposta. Ruby estava trêmula e assustada, recusou-se a falar – Aconteceu outras vezes? Diga-me! Fale!

– H-hoje... no jardim… na mansão... – balbuciou, as lágrimas invadindo os olhos – f-foi a primeira vez...

As narinas de Karolyn dilataram. Seus olhos se arregalaram. Ela queria gritar, mas a voz não saía, o grito ficou entalado na garganta. É claro... algo acontecera no jardim dos Hutch, fora por isso que ela notara as vestes do marido sujas de terra. E ele tivera a indecência de mentir e dizer que escorregara no cascalho e caíra de bunda no chão.

– Ele fez o que eu acho que fez? – perguntou, os lábios trêmulos de raiva – Tocou em ti? Tentou alguma coisa?

– N-não... eu não deixei... – Ruby encarava o chão, o rosto molhado e inchado pela bofetada que levara.

Victor estava travado no lugar, feito estátua. Agora que fora desmascarado, não sabia como agir. Começou a balbuciar uma explicação, mas a mulher estava irada demais para escutar. Num surto de raiva, Karolyn puxou o atiçador das mãos de Ruby e começou a bater no marido. O ferro quente deixava rastros de queimado pelo corpo e rosto do homem, que gritava a plenos pulmões. Ruby assistiu chocada enquanto Sir Victor desabava no meio da sala, as mãos protegendo a cabeça e os gritos preenchendo a casa escura. Karolyn o agredia sem piedade, usando a parte quente do atiçador para queimar seus braços, pernas e rosto, derretendo e chamuscando as roupas que encontrava pelo caminho.

– DESGRAÇADO! DESGRAÇADO!

– Karolyn! Karolyn, para! Para, vais matar o homem! – Ruby tentou segurar a mulher, que a empurrou para fora do caminho e continuou com a violência.

Pequenos fachos de luz surgiram na semi-escuridão da sala. Pearl desceu a escadaria correndo e trazendo sua luminária, parando de supetão ao ver a cena. O mordomo veio correndo em suas roupas de dormir, acompanhado de uma das empregadas. Gritavam para que Karolyn parasse, mas ela fora tomada por um ódio incontrolável. O mordomo tentou segurá-la e quase levou uma atiçadada (acabei de inventar essa palavra) na cara, o que o fez desistir de controlar a mulher insana.

Foi então que Ruby soltou um guincho, vendo o sangue escorrer da cabeça de Victor para o tapete branco. Uma poça de fluidos vermelho-escuros começou a se formar sob o homem, conforme ele revirava os olhos e se engasgava com o próprio sangue. Karolyn largou o atiçador, percebendo o que fizera. Soltou um terrível urro e caiu no chão ao lado de Victor, que parara de se mexer.

– O QUE EU FIZ? O QUE EU FIZ? O QUE EU FIZ? AAAAAAAAAAAH!

Madge, Brigite e Pearl olhavam aterrorizadas para o cadáver no meio da sala, incapazes de acreditar que a própria mãe fora autora daquele crime. Ruby escorregou para o chão, traumatizada. Chorou baixinho, sentindo-se culpada pelo o que acontecera. Os urros de Karolyn tornavam tudo ainda mais impressionante e grotesco.

– VICTOR! VICTOR! VICTOR, ACORDA PELO AMOR DE DEUS! ACORDA! ACORDA! ACORDA!

Será que ela não entendia que ele não ia acordar? Os olhos do homem ainda estavam abertos e Karolyn sacudia o cadáver, como se assim pudesse ressuscitá-lo. O sangue não parava de jorrar e a mulher não parava de chorar, e urrar e sacudir Victor. Os empregados – todos reunidos ali e chocados com a cena – se entreolhavam como que indagando uns aos outros o que deveria ser feito. O mais óbvio seria chamar a polícia, uma vez que a cena que se via era a de um homicídio (ainda que não intencional), mas ninguém se mexeu.

Houve uma corrente de ar e Ruby estremeceu levemente quando uma das janelas se abriu bruscamente, assustando a todos. Embasbacada, ela viu quando uma figura encapuzada cruzou o salão, parando ao lado de Victor. Era óbvio que mais ninguém conseguia ver aquilo, mas para Ruby estava claro: era a Morte. Encoberta por seu capuz preto, que parecia ser feito de sombras, a Morte se curvou, tocou o corpo do homem e então extraiu sua alma – uma bola de luz brilhante –, desaparecendo em seguida.

Depois de um tempo, Ruby se levantou de sua posição encolhida, apanhou a cesta que largara a um canto e, sem que ninguém percebesse, saiu pela porta dos fundos. Suas pernas mal sustentavam seu peso, mas ela uniu forças para descer pelo caminho escavado na imensa rocha na qual a casa se equilibrava. Lá embaixo, o mar estava calmo e silencioso, como que em luto pela morte de Victor. Ruby abriu caminho por entre a vegetação que crescia na rocha, tomando cuidado para não escorregar e cair no chão de areia lá embaixo. Continuou a ouvir os urros de Karolyn até chegar à praia, então se sentou na areia para se acalmar.

– Tudo bem, menina? – Rumplestiltskin botou uma mão em seu ombro, assustando-a – Por que choras?

– Karolyn... Karolyn matou o marido... p-por... por minha culpa...

– Oh, não foi tua culpa, queridinha. O Destino já estava traçado. É o fim da família Wade.

Houve alguns minutos de silêncio, em que Esperança esperou que a garota se recuperasse da cena que presenciara. Ele apenas ficou ali, sentado ao lado dela, com os cabelos esvoaçando com o vento. Quando a jovem finalmente quebrou o silêncio, foi para perguntar:

– E então, como é que encontramos Davy Jones?

– Bem, esta parte é a mais fácil – disse ele, em sua vozinha rouca e estridente – Primeiro deves saber quem é Davy Jones.

– Mas isto eu já sei – ela enxugou as últimas lágrimas – ele é o deus dos oceanos. Guarda as almas dos desafortunados que morrem no mar.

– Não, não, não, ele não é apenas isto. Deves conhecer a história, a verdadeira história. Muitas lendas correm por este mundo, mas poucas pessoas são conhecedoras da verdadeira história de Davy Jones, o Senhor dos Oceanos.

– Bem, então conte-me o que sabes.

– Sim, senhorita! – ele deu uma pausa, pigarreou, então começou – Primeiro deves saber que Davy Jones nem sempre foi Davy Jones, o Senhor dos Oceanos. No começo, ele era apenas um rapaz desajuizado, que entrou para a tripulação de um navio pirata em busca de riquezas e conhecimento. Jones queria ver o mundo e, como todos os outros desbravadores dos oceanos, ficou encantado pelas riquezas que a vida desregrada e criminosa podia lhe render. – mais uma pausa. Lá em cima, os urros de Karolyn ficaram mais altos – Ele era um garoto talentoso com uma espada, duelava como ninguém. Também era um exímio trapaceiro e tinha a habilidade de manipular e enganar as pessoas. Conseguia tudo o que queria. Com o tempo, Jones ascendeu e passou de marujo a capitão.

– Do Holandês Voador não é mesmo?

– Exato! O Holandês Voador, o navio mais veloz que já existiu. – outra pausa. Ruby erguera a saia do vestido e permitia que a água do mar molhasse seus pés. Esperança tirou os sapatos e fez o mesmo – Bem, mas como tu podes imaginar, o poder subiu à cabeça de Jones. Todos sabem que ele era egoísta e esnobe, mas muitos desconhecem o fato de que era um tremendo sedutor. Jones conseguia as mulheres que quisesse, bastava lançar um sorriso ou uma piscada e elas corriam para seus braços. Ele era invejado por todos os homens e amado por todas as mulheres. – pausa para respirar – Tudo mudou, porém, quando uma poderosa feiticeira caiu nos encantos do capitão. Apaixonada, ela declarou seu amor por Jones, que a rejeitou por ser feia.

– Quer dizer que ele não fez um pacto com o demônio, como todos dizem?

– Não, não, isso é besteira! Com o tempo, as lendas vão se modificando, conforme são repassadas de boca em boca. Bem, mas como eu ia dizendo, ele rejeitou a feiticeira, porque ela estava longe de ser o tipo de mulher pelo qual ele se interessava. Furiosa, a feiticeira rogou uma maldição em Jones e toda sua tripulação, condenando-os a vagar pelos oceanos por toda a eternidade, impossibilitando-os de atracar em terra firme. Como castigo por seus atos, Jones ganhou tentáculos no rosto, transformando-se em homem-polvo. Toda sua tripulação foi castigada, sendo assim, todos carregam características de animais marinhos.

– Espere aí... estás dizendo que Davy Jones é... um polvo? – ela o encarou confusa.

– Meio homem e meio polvo. – esclareceu Esperança – Foi um castigo mais do que merecido, ele era vaidoso ao extremo e orgulhava-se de sua aparência. Atualmente, no entanto, não deve estar muito bonito. Davy Jones recebeu um enorme fardo: guardar as almas dos que morrem no mar. Dizem que ele poupa a vida dos sobreviventes que encontra pelo caminho, oferecendo-lhes um lugar em sua tripulação, onde devem servir a ele por duzentos anos. Os vivos também podem fazer acordos, o que é teu caso. Podes fazer um acordo para trazer teu pai de volta, mas já vou avisando: há um preço.

Era de se esperar que houvesse um preço, ninguém ressuscita um morto de graça...

– Estou disposta a pagar o que for preciso – disse ela, já mais calma.

O solar aquietara, mas ainda havia luzes acesas e sombras que passavam pelas janelas. Ruby imaginou que policiais logo fossem aparecer e levar a madrasta. Quando isso acontecesse, suas irmãs seriam levadas para a casa de um dos parentes mais próximos, pois Madge e Brigite ainda não haviam completado vinte e um anos. Agora elas iriam se sentir exatamente como ela se sentia: desamparada.

– Que devo fazer? – perguntou a garota, encolhida dentro de sua capa.

– Deves pôr-te de pé e invocar o nome de Jones três vezes. Uma vez que fizer isso, será capaz de ver o Holandês Voador. Quando o capitão vier a teu encontro, fará algumas perguntas. Deves responder com sinceridade, ou padecerá sob as mãos de Jones.

Bem, se ela morresse pelas mãos do Senhor dos Oceanos, ao menos poderia se juntar ao pai. Assentiu, prestando muita atenção ao que o homem dizia.

– Quando ele souber que estás dizendo a verdade, perguntará o que pode fazer pela senhorita. Dirá a ele que quer fazer um acordo: ter teu pai de volta, em troca de quebrar a maldição que o condena a vagar pelos sete mares.

– Mas como é que se quebra a maldição? – ela ficou preocupada. Essas coisas de maldição não podiam ser fáceis, com certeza haveria um desafio e ela não era inteligente o bastante para vencê-lo. Continuou a ter esperança, no entanto.

– Bem, já vou avisando: em quatrocentos anos, ninguém nunca conseguiu quebrar a tal maldição. Porque ninguém sabe como quebrá-la...

– Quatrocentos anos? Mas...

– Deves pesar os prós e os contas, entende? Tens mais de uma escolha e deve ser sábia o bastante para escolher a que for melhor. Uma vez que selar o acordo, não poderá quebrá-lo. Se não encontrar um meio de quebrar a maldição, envelhecerá e morrerá a bordo do Holandês Voador.

Ruby estremeceu. Aquele era um destino horrível, mas ainda melhor do que o destino que ela teria se continuasse a viver naquele solar. Estava decidida: faria o acordo!

– Estou certa de minhas escolhas, estou pronta para fazer isso – anunciou, pondo-se de pé.

Esperança soltou uma de suas risadinhas, antes de desaparecer.

– Bem, então boa-sorte, queridinha! Nos encontraremos novamente qualquer dia desses... – e sumiu, largando os sapatos para trás.

Ruby olhou para o solar lá em cima, quase na beira do precipício. Não podia mais voltar, então devia seguir em frente. Deixou que a água do mar banhasse seus pés, encharcando seus sapatos. Bem, não precisaria de sapatos como aqueles no lugar para onde estava indo. Pigarreou, limpando a garganta. Aquilo parecia idiotice, mas ela olhou para o mar que se agitava calmamente e falou:

– Davy Jones, eu o invoco!

Nada aconteceu. Era de se esperar que o vento soprasse com mais força, que as águas do mar se agitassem furiosamente, que os céus se iluminassem com relâmpagos, ou coisa assim. Mas nada aconteceu.

– Davy Jones, eu o invoco! – Nada. E de novo: - Davy Jones, eu o invoco!

Tudo permaneceu na mais plena quietude. Também, o que é que Ruby estava pensando? Ela devia era estar louca e vendo coisas. Sim, sim, estava louca. Completamente insana. Depois que presenciara a morte do padrasto, era de se esperar que ficasse ainda mais desequilibrada.

Mas aí o vento soprou de um jeito diferente do que ela estava acostumada. Ruby precisou segurar a capa, impedindo que ela voasse para longe. Não era apenas uma brisa marinha, era uma ventania digna de ciclone e furação. Mas, felizmente, não se tratava de nada disso.

Uma melodia começou a tocar ao longe, uma melodia tocada num órgão. Se houvesse igrejas por perto, Ruby teria certeza de que se tratava de um padre a tocar. Mas não havia nenhuma igreja. E, de repente, ela teve certeza de que a música vinha do mar. Do fundo do mar, para ser mais exato. Soava como um coração desesperado a bater.

O mar, antes calmo e soturno, agora se agitava em ondas raivosas, que arrebentavam ao ir de encontro às rochas amontoadas ali perto. Ruby assistiu, pasma, quando das águas revoltas, surgiram os mastros e as velas fúnebres de um navio.

Ora, vejam só, um navio surgindo de dentro do mar... Esta, decididamente, não é uma cena que se vê todos os dias.

A garota, estacada feito estátua, prendeu a respiração no momento em que o gigantesco navio surgiu do oceano, lançando jatos de água para todos os lados. Subitamente, as águas se tornaram impuras e obscuras, como se algo as tingisse de negro, tornando-as envenenadas. O navio era por inteiro um pedaço do que parecia ser a morte, vinda de muito longe.

O órgão parou de tocar. A embarcação balançou com o ritmo da água, pendendo para os lados e dando a impressão de que iria tombar. Ruby voltou a respirar, aterrorizada, assustada e impressionada. Era real.

O Holandês Voador era real.