Senti, aos poucos, minha boca franzir-se e meus olhos estreitarem-se, totalmente incrédula. Steve estava me dizendo algo que poderia ser a solução dos meus problemas. Algo que não era compatível com a minha vida: Sorte. Ora, o Capitão achara um artefato mágico. Thor dissera-lhe que ele saberia quando usar. E, agora, Steve oferecia-o a mim... O meio ideal de acabar com meus problemas... Mas, por que pra mim? Eu não merecia... Ideias sacudiam minha mente e eu precisava arranjar algo útil para dizer a Steve.

– Steve... Por quê? Por que pra mim? Você poderia alterar qualquer coisa do seu passado... Esse objeto escolheu você. – Eu disse, tentando entender o motivo que levava o Capitão a agir daquela maneira.

– Stella... Todo mundo merece uma segunda chance. Umas pessoas precisam mais do que outras... Além disso, eu não quero que sua vida se torne um fardo para você. E eu sei que está quase se tornando. – Steve comentou, olhando para a delicada ampulheta, que brilhava mirrada em suas mãos grandes. Havia humor e decepção em sua voz.

– Mesmo assim... Eu só queria entender. – Falei, dando de ombros. Ainda fitava as mãos do Capitão, que lustravam o artefato apressadamente.

– Eu não alteraria nada em meu passado. As coisas aconteceram comigo do jeito que deviam ser. Não foi fácil, mas a vida me ensinou muitas coisas. Agora é hora de ensinar a você. Te entregando isso, sei que aprenderá... – Steve fez uma pausa, agora fitando o objeto nas minhas mãos. Por algum motivo, eu senti que deveria vacilar, mas isso não aconteceu. Fiquei grata. Steve continuou, sorrindo fraco. - Aprenderá que todos podem mudar algo em algum momento. Aprenderá que sempre existe uma nova chance. Aprenderá que... Eu sempre estarei aqui por você.

– Obrigada, Steve... – Eu murmurei. Em seguida, deixei a ampulheta em minha palma direita, e com a mão esquerda acariciei o rosto macio de Steve. O Capitão fechou os olhos, e um sorriso tranquilo surgiu em seus lábios. Algo dentro de mim dizia para eu me afastar e ir embora daquele lugar para sempre, ainda que isso fosse causar minha morte. Talvez eu morrer sempre tenha sido a solução final e derradeira. Talvez fosse melhor para todo mundo. Talvez eu estivesse provocando o caos ainda mais, estando viva.

Mas Steve acreditava em mim. Esse fato dava-me forças, porque eu confiava nele. Se Steve desejava, do fundo de seu coração, me ajudar com minha vida – ainda que isso fosse lhe causar sofrimento – era o que eu precisava fazer. Ora, eu devia isso a ele. Eu faria o que Steve me pedisse, porque ele faria o mesmo por mim. Era uma relação de confiança mútua. Steve merecia que eu cedesse ao seu pedido. Ele sempre sabia o que era melhor pra mim... Ainda que eu mesma não enxergasse.

Eu suspirei e, ainda com a mão em sua face, falei. A gratidão era nítida em minha voz, e eu esperava que pudesse expressar minimamente o que eu sentia em relação a tudo isso:

– Obrigada por acreditar em mim... Obrigada por enxergar em mim coisas que eu nem poderia imaginar... Obrigada por existir. Você transforma as pessoas... Isso eu nunca vou esquecer.

Outro sorriso de satisfação brotou nos lábios do Capitão. Steve gostava de ajudar os outros, e eu sabia que ele ficava profundamente contente quando alguém lhe confirmava isso.

– Não agradeça, Stella. Apenas use isto. – Ele fez um gesto com a cabeça, indicando a pequena ampulheta. – Chacoalhe-a e imagine o momento em que deseja voltar. Só que... Tem uma coisa.

Havia uma objeção. Eu já estava esperando algo claramente grave. Por que sempre que eu achava que tudo estava bem acontecia algum golpe do destino para me dizer que não, não estava? Bufei, levemente irritada, e insisti para que Steve continuasse.

– Eu posso voltar no tempo com você, mas não me lembrarei de nada. Apenas você se lembrará de que usamos isso. Para mim, esse momento nunca existirá. – Steve contou, com certo pesar. Sua expressão adquiriu melancolia e certo desgaste, como se ele tivesse envelhecido alguns anos.

– Gostaria de lembrar-se desse momento, Capitão? – Eu perguntei, sorrindo tímida.

Steve riu com leveza, colocando outra mecha de cabelo meu atrás da orelha.

– Gostaria... Mas não sou eu quem deve lembrar. Na verdade, acho que o melhor pra mim é justamente esquecer...

Steve dizia aquelas palavras quase como se sussurrasse. Eu percebia que ele travava uma batalha interior ao dizer aquilo. Sua expressão fechava-se cada vez mais, assumindo um ar de mistério e incógnita. O Capitão aproximava-se de mim, e eu sentia que seu corpo envolvia o meu cada vez mais.

– Stella... – Ele murmurou ao pé do meu ouvido, seus dedos gentis e trêmulos tocavam minha nuca gradativamente.

Eu poderia facilmente tê-lo impedido. Poderia ter saído correndo e gritado a todos os reinos que aquilo era uma besteira. Provavelmente uma das maiores besteiras que eu já havia feito na vida. Mas algo, algo que eu nunca poderei nomear ou identificar, me prendeu ao chão naquela tarde. Algo fez com que eu ficasse. Porque, fosse por qual motivo que fosse, eu não quis partir. A grande verdade era essa. E, ao mesmo tempo em que eu desejei estar nos braços de Steve, eu não quis – na mesma proporção – prender-me aos detalhes dos motivos. Eu apenas queria estar lá, sem saber direito o motivo. E sem querer descobri-lo.

Assim, Steve inclinou-se na minha direção e beijou-me. Eu senti seus lábios cálidos colarem-se aos meus com delicadeza, aumentando o ritmo devagar. O Capitão tinha uma mão na base da minha coluna, aproximando meu corpo do seu. A outra mão perdia-se em meus cabelos. Eu queria fechar os olhos e aproveitar aquele momento com a dedicação que ele merecia. Observei Steve e suas pálpebras tremiam. O beijo tornava-se mais intenso, mais determinado. O Capitão não se arrependia em estar ali... E eu também não. Minhas mãos tocaram seu peito e seu pescoço. Eu era capaz de sentir a pulsação dele acelerar e sua respiração se alterar. Definitivamente, esse momento era algo que eu precisava ter vivido, antes de modificar meu passado e alterar meu futuro.

Steve afastou-se pouco a pouco, com sua testa colada delicadamente à minha. Ele tinha as mãos na minha cabeça, tocando-a com gentileza e afagando-a.

– Eu precisava fazer isso... Não vou poder me lembrar desse momento, Stella... Mas você vai. A lembrança deve ficar com você. É só isso que interessa.

Steve dizia aquelas palavras e tropeçava nelas, como se estivesse nervoso e até desapontado. Era nítido em seus olhos calmos e melancólicos. Ele sofreria por não levar esse momento junto dele...

– Steve... – Eu murmurei contra sua pele, beijando-lhe de leve o canto da boca. Que sentido faria caprichar na lembrança, se Steve não a teria também? Tudo aquilo que vivíamos serviria apenas para fazer eu me afogar em mágoas e desilusões. Ao menos Steve sairia ileso. Ele não sofreria como eu iria sofrer, ao ter que carregar o fardo de uma vida cheia de escolhas erradas, e algumas poucas certas.

Steve ainda afagava meus cabelos. Com o outro braço, ele me envolvia num abraço apertado e cheio de culpa. Disse, com falhas na voz rouca:

– Me desculpe se não era essa a lembrança que você queria... Mas é o que eu posso oferecer. Eu lamento se isso lhe causar sofrimento, mas não pode causar nada mais grave do que eu já não tenha suportado. E essa lembrança é minha única esperança.

Eu parei um momento para fitar-lhe intensamente nos olhos azuis e cândidos. Steve não tinha que se culpar por nada. E nem se desculpar. Eu ia dizer alguma coisa, mas as palavras não soavam convincentes nem na minha própria cabeça. Não consegui verbalizá-las. Steve impediu-me de falar, interrompendo-me com certa apreensão:

– Apenas lembre-se disso. E quero que se lembre de outra coisa também... – Steve comentou, com nossos rostos ainda juntos.

– O quê? – Indaguei, totalmente concentrada no momento.

Steve suspirou e eu senti, novamente, sua respiração irregular e seus batimentos cardíacos sonoros.

– É como uma batalha, Stella... Eu vou lutar por você. Eu vou respeitar seu tempo. Eu vou respeitar sua escolha. Mas essa batalha não está perdida. E, se não está perdida, significa que eu tenho uma chance. E eu vou lutar por ela. Algumas batalhas parecem loucas... Mas os seus resultados costumam ser ainda mais surpreendentes.

Eu sorri, acompanhando o humor fraco de Steve. Senti outra pontada no peito. Steve lutaria por mim. Ele acreditava ter chance. Eu não concordava, nem discordava de nenhuma daquelas afirmações. Em relação a estas, somente o tempo lhe traria as devidas respostas. Que domínio eu teria em relação ao tempo, senão esperar a hora certa de agir? Tudo estava fora do meu controle... Eu entendia Steve. Mas nada dependia de mim. Eu era responsável pelo meu presente, mas como poderia garantir-lhe meu futuro? E aquilo doeu. Não poder dar uma certeza a Steve me corroeu por dentro. Eu queria dizer-lhe que tudo ficaria bem...

– É isso o que mais me machuca, sabe... Eu queria dizer pra você que tudo vai ficar bem... Mas não posso, porque eu não sei como vai ficar... – Eu disse, e lágrimas ameaçaram brotar dos meus olhos inchados. - Não posso lhe prometer nada, Steve.

Steve olhou-me com firmeza e determinação. Enquanto eu era a tempestade – voraz e instável -, ele era o porto seguro - a calmaria e a certeza. Seu olhar não vacilou nem por um momento sequer. Ele disse, seguro de si:

– Promessas... Não quero que me prometa nada. Você está aqui. É o suficiente. Acho que... Sempre foi.

Eu sorri. Steve inspirou isso em mim. Ele também sorria, um sorriso que me convidava a pensar apenas no presente. Apenas naquele momento único, ao menos para mim. Steve estava me convidando a viver novamente... Livre de alguns erros do passado, levando-me de volta à luz. Para ele, o futuro também não importava. Eu senti que Steve também sabia que a única solução para nós era dar um tempo ao tempo... Esperar que as coisas se assentassem e se resolvessem. Ele não desistiria de mim. Ele lutaria. Mas ele sabia que até mesmo o tempo precisa passar de vez em quando, para uma batalha cumprir seu devido papel. O tempo pode ser um aliado quando se almeja grandes resultados em grandes batalhas. E eu nunca pensara que as sombras seriam atraídas pela luz, mas eram. E nunca foram tão intensas e certeiras.

••

– Está brilhando... – Eu comentei, observando a ampulheta em meus dedos. O objeto, inteiramente dourado, cintilava como um belo nascer do sol em Asgard.

Steve afastou-se de mim, observando o objeto durante alguns segundos. Ele cruzou os braços, pensativo, e falou:

– Hora de usá-lo... Nós dois vamos voltar ao momento em que você desejar. Mas, como você está segurando a ampulheta e utilizando-a, somente você irá se lembrar disso. – Steve reiterou, explicando-me. Havia, novamente, apreensão em seus olhos. Eu queria perguntar por que, mas a verdade era que eu sabia o motivo. Todos sabiam. E ninguém poderia fazer nada.

Suspirei e olhei para o artefato em minhas mãos. Agora estava estendido em minha palma esquerda. Com a mão direta, segurei firme na de Steve.

Juntos. – Eu falei. – Como no meu primeiro dia na prisão...

Steve sorriu espontaneamente. Um pouco da apreensão deixou sua expressão... Ele estava quase sereno e novamente calmo. Eu sentia o objeto queimar levemente minha mão, como se esquentasse. E continuei olhando para Steve... Perdendo-me na imensidão de seus olhos azuis. Aliás, o azul... Era incrível como seus olhos podiam assumir diferentes tons de uma mesma cor... Diferentes emoções que não afetavam só a ele, como a mim também. Eu sorri. Era uma boa lembrança que sustentaria minha volta ao passado... Olhar nos olhos de Steve e ter a certeza de que, independente do momento, eu encontraria o mesmo azul de sempre e a mesma esperança.

Desse modo, comecei a imaginar o momento. Sons de armas que cortavam e inundavam o ar... Gritos e comandos disparados à solta... Rugidos de Jotuns enfurecidos... Eu imaginava a nossa última batalha. Com aqueles cinco Gigantes arruinando os Jardins do Palácio... E eu tentei me lembrar onde estava, quando eu atacava sem pensar algum dos Jotuns... Eu queria recriar dentro de mim aquela raiva natural de uma batalha, aquele impulso e aquela adrenalina que é injetada em suas veias quando se planeja um golpe certeiro.

E foi como mágica. Não existia explicação. Eu segurara firme a ampulheta, fechara os olhos, imaginara a cena, e a magia se encarregara de fazer o resto. Eu estava naquela batalha novamente. Os traços... As cores... Tudo era como antes. Mas não tudo. Eu sabia o que aconteceria. E também sabia o que eu iria mudar.

••

Era quase poético.

Eu estava exatamente na mesma posição em que estivera outrora, sabendo exatamente que movimento Natasha faria para se esquivar do golpe do segundo Jotun, ou a intensidade que Stark usaria nos seus raios laser para detonar o primeiro. Eu poderia ficar horas confirmando meus pensamentos, mas o tempo urgia. Avistei Loki onde saberia que ele estaria. Como da outra vez, corri até ele e encontrei a mesma expressão de surpresa. Eu tinha um plano.

O deus tinha sua lança posta cuidadosamente ao seu lado, no chão. Diferentemente da outra vez, eu não estava tão aflita. Apenas um pouco mais apressada, já que eu não sabia de quanto tempo eu dispunha.

Antes de chamar Loki, voltei a cabeça para trás. Procurei Steve. Queria sondar sua expressão. O Capitão ainda lutava, usando bravamente seu escudo. Ele percebeu que eu o fitava e retribuiu com um sorriso de incentivo, quase como se soubesse o que eu iria fazer. Aquilo me perturbou um pouco. Eu sabia que as lembranças desse feito permaneceriam somente comigo... Mas e se algo tivesse dado errado? Afinal, magia raramente pode ser controlada, tampouco prevista.

– Stella? – Loki chamou apressadamente, retirando-me de meu transe particular. Eu arfei, agora realmente nervosa. Eu precisava explicar tudo para Loki nos mínimos detalhes.

Eu me aproximei dele e repeti meu discurso, quase como se o tivesse decorado:

– Eu estou morrendo. Você sabe disso. Você já me ajudou um pouco... Mas sabíamos que não era o bastante. Há um único jeito de resolver isso. Mate-me. Minha humanidade se irá junto dessa Energia que tomou conta de mim. Eu estarei livre.

A mesma expressão de preocupação e choque de realidade se apossou da feição enigmática do deus. Eu acrescentei, antes que fosse tarde demais:

– Faça-nos desaparecer daqui e mate-me com minha lança.

Loki pigarreou, evitando meu olhar. Eu sabia que eram palavras duras até mesmo para alguém como Loki, mas precisavam ser ditas. É incrível como um detalhe faz toda a diferença... Como Loki supostamente matara-me à vista de todos, ele fora condenado por tentativa de homicídio, já que eu sobrevivera. No entanto, por já ter antecedentes criminais, o deus fora banido de sua terra. Ainda assim, Loki precisava me matar. Era o único jeito. E só ele faria isso. Então, ele deveria fazer isso entre nós dois, apenas. E ninguém, além dos Vingadores, ficaria sabendo do meu processo de quase morte, tão peculiar e necessário.

O deus vacilou, ainda parecendo confuso:

– Eu entendo... Mas... Se é tão urgente, porque não posso fazer aqui mesmo? – Disse o deus, cauteloso.

– Loki... Se alguém ver você me matando, podem te condenar. Eu não quero você atrás das grades de novo... – Eu comentei, olhando fixamente em seus olhos verdes, como se isso fosse fazê-lo ouvir a voz da razão. – Ou pode ser banido...

Então o deus observou a batalha. Acho que ele calculava mentalmente se nós causaríamos problemas, caso nos ausentássemos da luta por algum tempo. Foi então que eu senti... Minha cabeça começou a doer. Meus instintos começavam a aflorar... Os sentimentos negativos começavam a soprar delicada e perigosamente em minha mente... Eu esqueci. Ainda havia Energia Sombria dentro de mim, já que eu voltara no tempo. Loki precisava ser rápido, ou tudo não teria resultado algum.

– Rápido, Loki! – Eu gritei, entre berros de dor e agonia. O deus entendera o que estava acontecendo, porque murmurou algumas palavras e em questão de segundos nós estávamos nas florestas de Asgard.

A Energia ainda tentava se apossar de mim, como alguém que tenta insistentemente derrubar uma porta à força. Mas aquele era um lugar lindo de se morrer. As árvores frondosas, com suas copas altas, deixavam a luz pálida do sol entrar devagar sobre nós... E a relva fria, em que eu estava deitada, era um consolo as tantas preocupações que me afligiam. Loki estava ajoelhado diante de mim e tinha minha lança fixa em suas mãos. O deus sabia o que devia ser feito. Eu não esperava outra atitude dele. Só que agora nós tínhamos privacidade. Ninguém o acusaria de nada... Ele não seria banido... E eu poderia viver com ele...

Desse modo, o deus inclinou-se para me beijar de leve. Nossos lábios mal se tocaram, e eu podia observar de perto o verde incandescente de seus olhos misteriosos e hostis... Eu podia sentir seu pescoço frio roçar no meu, e podia sentir seu hálito fresco como gelo ressonar contra minha pele... Podia sentir que uma lâmina me perfurava, trazendo-me de volta ao aconchegante vazio de uma quase morte.

Mas certos sentimentos vieram comigo. Eram impossíveis de ser descartados. Eu sentia que tudo dera certo... Eu conseguira alterar o rumo de minha própria vida. O vazio não me assustava. Eu me lembrava dos olhos verdes que tanto já me intrigaram... Olhos que eu, por mais que os conhecesse, jamais conheceria por inteiro. Olhos que sempre me desafiariam... Que sempre me ensinariam uma lição... Olhos que me mostraram, entre sorrisos enviesados e jogos de palavras, que eu sempre seria capaz de alterar meu caminho... Que eu sempre seria capaz de ser o melhor de mim mesma... Que eu merecia somente o melhor. E assim, unida à trapaça, a sombra renascera.