Loki proferiu um murmúrio de falsa surpresa, franzindo a testa. O deus tornou a colocar as mãos displicentemente caídas ao lado do corpo, enquanto estava sentado diante de mim, me observando.

– Pensei que você seria mais criativa... – Ele disse, ironicamente.

– Loki, nós tínhamos um acordo. – Eu retribuí, ameaçadoramente. Meus braços permaneciam firmemente cruzados.

– Na verdade, não há nada que me obrigue a dizer isso. – Ele disse, observando-me com curiosidade. Ótimo. Outro jogo inútil que só serviria para me deixar ainda mais irritada.

– Na verdade, existem muito mais segredos que eu sei, que poderiam te interessar, deus da trapaça. Se continuar com seus joguinhos, serei obrigada a ampliar os meus. – Comuniquei resoluta, dando de ombros.

– Seu senso de persuasão é admirável, Stella... – Loki comentou, sorrindo enviesado. – Bom, vamos lá. Pra começar, achei que não seria necessário responder a essa pergunta. Pensei que você já teria adivinhado isso há muito tempo... Afinal, é tão óbvio, não é mesmo?

Loki encarou-me fixamente, daquele jeito decisivo e determinado de alguém que espreita sua vítima e tenta decifrá-la por todos os ângulos possíveis.

– Não é óbvio, Loki. A maioria das pessoas não possui uma mente obcecada por trapaças. – Falei, olhando com discreto divertimento para ele.

– Eu apenas esperava mais dedicação da sua parte para obter respostas, Stella... Quem sabe um pouco mais de noites de insônia? Assim, você teria pensado melhor e descoberto o que de fato houve naquela noite. Achei que eu lidaria com uma garota cheia de teorias sobre isso. – Loki insistiu, fingindo decepção.

– Você costuma ser enganado com muita freqüência, Loki? – Indaguei sugestivamente. O deus faiscou os olhos na minha direção, com ligeiro ressentimento e raiva. Eu adorava intimidá-lo e fazê-lo cair em suas próprias armadilhas e jogos.

– Muito bem, Stella. Uma pergunta por outra pergunta, não é mesmo?

Ele me olhou de maneira penetrante, como se seus olhos e os meus estivessem magnetizados. Loki se levantou e eu fiz o mesmo, ansiosa pelo que viria a seguir. Eu mordia meus lábios de curiosidade e minha mente vagava a mil por hora. Loki murmurava de maneira eloqüente:

– Naquela noite, estávamos na caverna. Você estava quase inconsciente quando os Gigantes de Rocha estavam desabando o teto sobre nossas cabeças.

Só havia um jeito de escaparmos: Saindo do mesmo jeito que entramos. Mas você estava fraca... Como iria nos tirar de lá?

Eu assentia, acompanhando o raciocínio do deus. As memórias vinham simultaneamente à minha cabeça, e a curiosidade incendiava-me como fogo em minhas veias. Eu olhava para Loki, cada vez mais ansiosa.

O deus continuou, satisfeito por me ter tão presa a seu discurso:

– Então eu fiz a única coisa que poderia ser feita. Eu realizei uma magia de conexão empática. Eu conectei nossas mentes, Stella. Desse modo, quando você estava quase inconsciente, eu pude entrar na sua mente e obrigar você a usar seu poder. Bem... Você definitivamente usou suas habilidades e nós conseguimos escapar. Eu tentei reverter o processo depois, mas era tarde demais. Você não reagia quando tentei desfazer o feitiço. Nossas mentes estão permanentemente interligadas. – Ele sorriu malignamente. - Mas estamos vivos.

•••

O baque de tal revelação me tomou de uma maneira indescritível. Eu fiquei durante alguns segundos apenas observando Loki. A serenidade de seu semblante fino e lívido... A satisfação quase cruel brincando em seus olhos verdes iluminados... O sorriso letal, que exibia ambição e ameaça. Em seguida, deixei escapar alguns murmúrios de exclamação. Minha respiração falhava. Levei minhas mãos à cabeça, sentindo meus dedos perderem-se nos fios castanhos.

– Você... Você o que? – Indaguei, ainda tentando digerir a informação. Eu lutara tanto por essas respostas, que me esqueci de me preparar, caso não gostasse delas. Eu estava tão focada em apenas decifrar os segredos do deus, que não me lembrei de que poderia não gostar disso. O meu desejo mais intrínseco se tornava agora minha realidade em forma de pesadelo.

– Exatamente o que você ouviu. – Loki afirmou, secamente.

Eu começara a andar em círculos, totalmente nervosa.

– Não é possível! – Eu gritei, sentindo, pela primeira vez, uma ardência em meus olhos. Mas, para mim, lágrimas nunca foram argumentos.

Eu queria que tudo o que Loki dissera fosse mentira. Queria que o deus fizesse o que sabia fazer de melhor: Trapacear. Queria que ele me dissesse que tudo não passava de um jogo frio e vazio para me ludibriar. No entanto, ao invés de fazer isso, ele me pegava totalmente de surpresa e fazia justamente o oposto: Ser sincero. A verdade nunca me consumira tanto, vibrando constantemente na minha mente, com o peso de uma realidade terrível e trágica. Loki conseguira o que queria, e talvez fosse por isso que um sorriso quase doentio surgia em seus lábios. Ele estava sendo sincero. Cada palavra que ele proferia era verdade. E isso era o tipo de coisa que eu jamais esperaria dele. Com tudo isso, ele conseguia me enganar, me manipular e me intimidar. Especialmente pelo fato de ele ter atingido o meu ponto fraco. Ele conseguira fazer com que eu me sentisse vulnerável. Pateticamente vulnerável. Ele me intimidara ao máximo, surpreendendo-me de uma maneira incomum e destrutiva.

Mais uma vitória para o deus da trapaça. Eu estava desolada. O ódio e o desejo de vingança me consumiam quase tanto quanto a verdade que eu acabara de receber. Eu tinha acesso à mente do deus, e ele tinha acesso à minha mente. Havia uma conexão entre nós. Esse fato mudava tudo, porque agora eu não podia confiar no silêncio de meus próprios pensamentos. Tudo fazia sentido, de uma maneira incrivelmente perigosa e irreversível. Agora, a sombra e a trapaça andavam juntas, quase como se nunca tivessem estado separadas.

– Por que tanta preocupação? Há coisas que deseja esconder de mim, Stella? – Loki perguntou, andando até mim. – Deixe-me avisá-la que há uma ressalva. Eu só posso ter acesso à sua mente quando você permitir. O mesmo vale para você quando tentar invadir a minha. É como um acordo mútuo entre mentes.

Meu coração batia apressadamente, e seu barulho chegava até a incomodar-me, diante do silêncio de alguns minutos atrás. Eu andei até Loki, de modo a forçar nosso encontro.

– Não acredito que você fez isso! Nossas... Nossas mentes! – Eu gritei, ignorando o fato de que podia chamar atenção de pessoas desnecessárias. A raiva me consumia. A frustração por me sentir vulnerável estava comandando minhas ações e pensamentos. Num gesto impensado, eu estiquei um braço na direção do deus da trapaça, visando feri-lo de alguma forma.

Loki endureceu a expressão e me olhou com cautela, além da habitual superioridade. O deus segurou minhas mãos, de modo a apartar meu ataque e impedir-me de agredi-lo. Eu arquejava, tentando libertar-me de seu toque firme. Ele disse, de maneira contida e impaciente:

– Sei que agora está com raiva, porque não pode mudar isso. Mas eu te entendo, Stella. – Seus olhos verdes brilhavam perigosamente. De seus lábios, surgia um sorriso frio. - Você sempre teve medo de ser vulnerável. Por causa da sua família, você precisava mostrar para tudo e para todos que era forte, capaz e determinada, o tempo inteiro. Por isso, você odeia se sentir frágil ou vulnerável.

Eu parei de me debater, olhando Loki com ressentimento e raiva. Eu sentia minha testa se vincando, num gesto de melancolia e consternação. O toque frio do deus contra meus braços provocava ligeiros arrepios. A expressão de Loki era elucidativa, como se ele quisesse chamar a minha atenção para alguma verdade irrefutável, que eu não estava enxergando. Os seus olhos verdes lampejavam incandescentes, de uma forma controladora, como se quisessem aplacar minha raiva. O lábio do deus era uma linha fina e imprevisível; ora cerrada, ora moldada num sorriso enviesado.

– Está lendo a minha mente agora para deduzir tudo isso, deus da trapaça? – Perguntei, de maneira ameaçadora. – Deveria sair dela...

Meus olhos negros ávidos se detiveram em Loki. Eu podia sentir uma mistura de sentimentos em mim. Raiva, ódio, vingança, e confusão. Loki também tinha os olhos verdes notoriamente fixos em mim, refulgindo sinistros e indecifráveis. Contudo, identifiquei neles alguma cobiça e um ar de diversão. O sorriso do deus se alastrava, iluminando seu semblante.

– Não é até sua mente que quero chegar, Senhorita Stella... – Ele murmurou sedutoramente. Acompanhei, com apreensão, para onde o olhar de Loki se dirigia. Para onde ele queria chegar. E era para mim...

E, no momento seguinte, senti os lábios de Loki tocarem os meus. Houve uma sincronia inexplicável naquele momento. Eu sentia todo o desejo ser consumido naquele beijo. Nossos lábios se moviam de maneira ritmada e intensa. O hálito fresco do deus invadia-me e atenuava a mais furiosa de minhas descrenças. Novamente, Loki surpreendia-me. Mas parte de mim sabia que aquele beijo era uma ideia insensata e delirante. A outra parte apenas se concentrava em manter-me consciente e perdida nas verdades daquele momento.

Por que eu estava fazendo aquilo? Porque Loki estava fazendo aquilo? Normalmente, eu estaria planejando algo para obter respostas do deus a qualquer custo. Mas eu aprendera uma lição aquela noite. Obter respostas de Loki não era um simples ato. Era um processo. Um processo longo, demorado,e arredio. Além disso, não importava o quanto eu lutasse para ver minhas perguntas serem respondidas. As respostas pareciam quase ter vida própria, aparecendo somente no momento que lhes fosse mais apropriado. E Loki ainda era aquele homem imprevisível. Conhecê-lo inteiramente nunca seria possível. Nada nele era constante.

Então por que eu estava me rendendo? Eu coloquei meus braços trêmulos ao redor da nuca do deus, acariciando-o hesitantemente. Meus dedos seguiam uma trilha suave e fria em sua pele, parando na base de seu pescoço. Em seguida, meu braço direito perdeu-se em seus cabelos longos e lisos. O esquerdo estava cuidadosamente posto em seu ombro. E o beijo prosseguia, cada vez mais ardente e intenso. Eu arquejava e era capaz de sentir o sorriso do deus brincar em seus lábios de maneira sutil. O deus tinha os dois braços firmemente ao redor de minha cintura, e me puxava constantemente para mais perto dele.

Sentir o corpo dele daquela forma - tão próximo ao meu - me fazia perder o rumo de meus atos. Eu sentia que minha mente entrava em pane. Uma instabilidade me dominava e eu parecia não ter domínio sobre mais nada. O momento era o que regia cada movimento meu. Por fim, Loki levou uma mão até meu pescoço, de modo a aproximar meu rosto do seu. Naquele momento, nossos lábios se separaram. Entretanto, nossos rostos ainda estavam próximos. Pela primeira vez, ousei abrir os olhos. Loki tinha os seus bem fechados, mas as pálpebras tremeluziam continuamente. O semblante do deus estava mais pálido e sombrio do que nunca. Ele respirava baixo, um pouco ofegante. E a expressão era de dúvida. Loki parecia totalmente alterado e perplexo. Eu percebi imediatamente que ele vivia um conflito interior caótico e desconexo. O beijo fora resultado de um impulso, de um desejo momentâneo seu. Agora, era visível que o deus estava irresoluto, completamente incerto de suas ações.

Gentilmente, eu afastei seus braços de mim e me afastei. Loki continuava com os olhos fechados, levando as mãos à cabeça, num gesto de nova hesitação.

Eu fiquei parada durante algum tempo, esperando alguma reação mais expressiva dele. Em seguida, cruzei os braços e falei, um pouco nervosa:

– Deveria entrar na minha mente e me fazer esquecer que isso aconteceu.

•••

Loki permanecia impassível. Apenas recuou um pouco, virando-se de modo a ficar de costas para mim. Eu não tinha certeza, mas acho que ele abriu os olhos nesse momento. Por fim, eu me virei e saí andando apressadamente. Minha mente era um turbilhão de pensamentos. Loki nada dissera quando me tornei apenas uma sombra difusa entre a paisagem.

Enquanto eu me dirigia até meu quarto, a fim de dormir, tudo ao meu redor era um mero borrão dourado e marfim, mesclado entre a pouca luz noturna.

Usei meu poder para me camuflar e evitar perguntas de qualquer pessoa que estivesse por perto. Quando cheguei ao meu quarto, eu estava esgotada. Deitei na cama e tentei refrear meus pensamentos, mas estes iam e vinham numa velocidade assustadora. Loki revelara o que acontecera naquela caverna. Nossas mentes foram conectadas por ele, a fim de salvar nossas próprias vidas. Isso fazia a minha raiva interior inflamar e desejar libertar-se. Tentei me concentrar no fato de que isso teria lados positivos e negativos, porque ter acesso à mente do deus me parecia uma boa arma.

Além disso, houve o beijo. Eu ainda me perguntava o porquê de eu ter feito aquilo. Concluí que fora por pura impetuosidade e impulsividade. Ora, havia coisas que eu não poderia negar. Loki era atraente. E eu tentava-o decifrar de todas as maneiras possíveis, mas nunca tinha pensando em chegar a esse ponto. Tudo era novo e estranho para mim, como se eu estivesse trilhando um caminho desconhecido e sombrio. E, simultaneamente, convidativo. Ou seja, eu me rendera ao beijo de Loki. Fizera isso por desejo, por impulso e por um ímpeto. Mas, honestamente, a reação de Loki incomodara-me um pouco.

Enquanto eu apenas me rendera ao momento, o deus estava confuso com suas ações. Talvez ele também tivesse apenas seguido seus instintos e seus impulsos, e por isso me beijara. Mas depois, repensando seus atos, encontrara-se em meio à dúvida e à incerteza. Loki não sabia que efeitos e consequências esse beijo traria. Novamente, eu o desestabilizava, fazendo-o confundir-se em relação a mim. Normalmente, eu me orgulharia disso. Mas não agora. A reação de Loki me incomodara porque, na verdade, acho que ele não queria ter me beijado. O desdém e a repulsa que estavam contidos em seu gesto, quando ele se afastara, atravessaram-me como golpes.

Somente Loki conseguia provocar sentimentos tão contraditórios em mim. Desejo, pelo seu beijo. Orgulho, por eu o ter intimidado e confundido. Raiva, por todos os sentimentos que ele me fazia sentir. A própria contradição agora definia o que eu sentia. E eu podia sentir que Loki também estava assim, aonde quer que agora ele estivesse. A sombra e a trapaça uniam-se, tal como nossos lábios se uniram, no que parecia ter sido há séculos atrás.