Clove

Eu passo todo o dia sorrindo. É tão bom ver Marvel virar uma criançinha se tremendo a cada vez que eu rio. Eu estou sentada bem ao seu lado, afiando coisas para as armadilhas. Cato foi caçar.

– Por que você não quer mais falar comigo, Marvs?

– O quê? Não. Eu estou falando com você, Clovinha! É só que. Você sabe – eu sei que ele não olha no meu olho. Sei que ele já terminou o que estava fazendo mas não saiu ainda. Eu não consigo parar de sorrir. Pego uma faca na jaqueta.

– Você não quer que eu lembre das coisas que você me disse, querido?

– Você é o bebezinho do Cato, coração. Ele não gosta que mexam com você – ele sobrepõe sua voz à minha. Coitado.

– Mas você é minha pessoa preferida dessa edição, Marvel! Eu guardo todas as minhas energias pra me divertir com você – eu sinto seu olhar na faca que estou afiando. Ah, ele acha que eu sou louca.

– Eu acho isso legal, Clove.

Eu tenho certeza que Quaid vai tentar fugir ainda hoje. Espero Cato voltar para ir tomar meu banho. Marvel nem sequer vai ver e eu vou ter prendido seu corpo ridículo no chão. Sua altura dos infernos não vai ajudar e Ludwig vai estar sentado como sempre no canto, girando sua espada. Ele vai gritar tão alto e nunca vai conseguir pronunciar “Clovinha”. Se sacudir sem ser por risadas. Ficar vermelho até ser roxo e então. Branco.

Abaixo na água até minha cabeça ficar submersa.

– Clove, porra! Anda logo!

Volto para o acampamento e o que me mantinha satisfeita não está mais aqui. Viro minha cabeça pra Ludwig na mesma hora.

– Cadê o Quaid?

– Foi colocar as armadilhas mais pra dentro. Eu vou voltar agora e você vem comigo – ele está colocando minha mochila no seu ombro.

– Cato, que porra é essa? Você deixou ele ir?

– Você é surda, Fuhrman? Eu disse que ele foi colocar as armadilhas na floresta.

– Seu filho da puta, você sabia que ele era meu!

– E?

– Ele não vai voltar, Ludwig – tento acalmar meus batimentos, não rosnar, não jogar nada. Eu não sou ele. Eu sou melhor que isso.

– Isso é um problema seu. Anda que já está ficando tarde.

Ele vira as costas pra mim. Eu não consigo, eu não posso ignorar porque ele me subestima; eu faço o movimento. Ludwig para e puxa a faca presa na árvore. Se vira pra mim. Eu acho que ele vai gritar, devolver a faca, mas ele anda e chega perto até eu saber de cada sensação que seu corpo trás. Meu braço está preso e eu tenho certeza que ele vai puxar meu cabelo até eu sentir essa porra de faca contra mim.

Eu não esqueceria desse truque. O silêncio, a tensão que quase simula o que os fracos têm e você nem vê a lâmina desgraçar o seu estômago. Eu sou boa demais; eu só não quis lembrar. Eu gosto quando ele faz isso. Minha própria arma. Rio.

– Você não está me assustando – eu sussurro. Eu não consigo pegar as facas na minha jaqueta, mas eu sei que Cato não vai me matar. Ele não gosta de coisas desse tipo. Isso não é nem um pouco honroso como exigem lá em casa. A batalha final vai durar horas.

– Eu ainda não quero isso.

Ludwig empurra a faca na minha mão e todo nervosinho, sai andando. Eu cedi a ele, então só o sigo. Eu sei desde que posso andar: se você perdeu, você não pode mais seguir a si mesmo.

Eu fico entediada. Nós voltamos para a Cornucópia e num canto, montamos um acampamento. Cato não fala comigo. Continua mexendo com essa porra de espada e só olha quando eu faço algum barulho. Ele está tentando me envergonhar como eu faço com ele. Perdedor. Continuo a mexer com as minhas facas até escutar um canhão.

– Talvez o seu amigo – Ludwig aponta pra mim com a cabeça, ainda com essa cara dos infernos.

– Quem terminou com ele?

Eu rosno sem querer. Eu fico realmente com raiva, porque eu sei sobre possibilidades. Porque se foi o Thresh, eu não vou poder me vingar de quem encostou no que é meu. Quaid era a minha diversão. Agora outro esquelético quer entrar no meu caminho.

Outro canhão.

– Quem está fazendo isso?

– A 12 – Cato ruge sem sequer olhar pra mim, se levantando. – Vamos esperar o aerodeslizador e pegar ela lá.

– Não é ela, Cato! Por favor, uma desnutrida daquela? Se ela tentou, é o segundo canhão.

– Ela pegou o arco da Glimmer.

– Não quer dizer nada.

– Tem certeza, Fuhrman?

Deixo o “tem certeza” passar porque ele é só um bebezinho nervoso. Faço que sim com a cabeça e até sorrio enquanto vou de joelhos até ele e o beijo, mesmo que eu esteja com raiva.

– Relaxa, Cat Cato. Essa porra é nossa.

Ele sorri. Eu pego mais água e limpo os meus ferimentos. Essa coisa da dívida começa a piscar na minha cabeça e eu odeio intrusos, então decido pensar nela por mim mesma. Limpo os ferimentos dele também. Ludwig já fez isso tempo demais por mim.

Espero até o hino pra fazer a fogueira. Tudo depende das ligações entre quem morreu, eu vou sondar cada um como Enobaria fez e trilhar todo o caminho perfeito. Cato está dormindo ao meu lado por conta do miserável saco de dormir, mas a guarda é minha.

Quaid e a menina dos olhos de cervo.

Eu até já sei que Marvel pegou ela desonradamente. De certo ela estava de costas. A pirralha tinha uma nota boa e Quaid era lerdo pra caralho. Que Thresh tenha passado um bom tempo com ele, puxando cada veia, o fazendo comer os próprios órgãos. Até isso me diverte.

Eu sei que estou perto da vitória, eu quase posso me ver na Mansão do Presidente, mas tudo isso é entediante. Mas a gente acha uma diversão. Ludwig acaba deixando eles verem que me conhece de muito tempo atrás. Nós rimos até assustar qualquer esfomeado no arredor. Saímos pra caçar e antes do coelho ser abatido, eu sou batida contra uma árvore e ele sempre quer deixar marcas em mim quando me beija.

Eu tenho quatro ou cinco, vermelhas, roxas, de dentes perfeitos. Tenho ele deitado no meu colo. Tenho o topete loiro desintegrado na minha mão. E no futuro, vou ter sua vida também, e essas memórias vão queimar porque eu vou ter tudo novo.

Numa dessas noites nós estamos calados. Eu me deito por cima do saco, lembrando toda a inutilidade que sei sobre estrelas. Jogo facas pro alto. Cato é bem inteligente, então ele está botando fogo na ponta da espada, encarando o fogo como se ele fosse magia negra.

Então começa uma musiquinha. Ágapes deixam tudo mais interessante.

– Congratulações aos seis corajosos restantes! Nós apreciamos seu sacrifício, tributos, por isso, houve uma pequena mudança nas regras: Contanto que pertençam ao mesmo distrito, dois de vocês poderão ser coroados vencedores. Sim, dois vencedores do mesmo distrito. Feliz Jogos Vorazes a todos e que a sorte esteja sempre a seu favor!

Eu expiro como se estivesse segurando o ar desde sempre. Me sento rindo quando Cato se levanta e grita como o bêbado que ele é. Ele me levanta e me beija. Seria uma comemoração de só duas pessoas se não fôssemos do 2. Achamos uma câmera e gritamos na frente dela por horas junto com todo o nosso distrito.

Eles nos amam, Panem inteira nos ama. E nós vamos voltar pra eles. Virar treinadores, matar Aaron, calar a boca de Brutus e Enobaria porque sim, nós somos a equipe perfeita desde que estamos no mundo. Eu sei que eles estão gritando com a gente. Eu ouço isso.

– Cacete, cravinho!

Ludwig segura minha cabeça com as duas mãos pra que eu repare a carinha perfeita dele.

– Vamos achar a Evergreen, bebê – ele diz. – Destruir qualquer ideiazinha na cabeça dela.

– Você vai me levar pra casa, Cat Cato.

Porque ele é a porra da única coisa que eu sei seguir. E eu quero tanto que todo mundo veja que eu sempre soube o que estava fazendo. A estrada pra glória eterna não é pros fracos. É imunda, distorcida e vale a pena. É para as pessoas que têm esse olhar no rosto. Pra quem sabe absorver cada miserável vez que uma multidão grita seu nome e não liga pra sangue ruim respingado. O jeito insano que meu olho reflete no de Ludwig, todos os delírios, as marcas. Sorrio. Eu sempre soube que isso era traiçoeiro.