Like Ghosts In Snow

I Feel Like Prey... I Feel Like Praying...


O sol já se punha e o céu acima de si, pincelado em vermelho e nuances de azul mais escuro, ilustrava mais ainda o cenário destruído ao seu redor. O ar, quente e abafado preenchia seus pulmões. Estava cansado, seu corpo parecia ter sido esmagado e era difícil mover-se, mas precisava, estava feito. À distância, ele podia vê-la, sentada em meio aos destroços, envolta em destruição, coberta em cinzas e sangue. Pôs-se ao seu lado, em silêncio. Podia vê-la abraçando a si mesma, enquanto soluçava baixo, com olhos vazios voltados ao horizonte.

—Precisava ser feito. – Ouviu-se dizer, já não tinha certeza se para ela ou se para si mesmo. O silêncio voltou a tomar conta de seu redor, enquanto agora ele também se via encarando o vazio.

—Eu sei... – Ela disse finalmente, sua voz era pouco mais que um sussurro, mas fez com que ele se voltasse para ela outra vez, uma figura quase fantasmagórica ao seu lado. – Obrigada, Ulquiorra... – Seus olhos acinzentados, manchados pelas lagrimas, agora o devoravam, buscavam algo. Não tinha certeza o que era. – Ficaremos bem agora, não é? - Ulquiorra a observou mais um pouco enquanto a brisa quente e esfumaçada brincava com suas madeixas verde-água. Confirmou com um aceno, voltando-se outra vez para o caos que os cercava.

Ulquiorra abriu seus olhos com dificuldade, havia um peso sobre suas pálpebras ao acordar quase como se trouxesse consigo o cansaço de seu sonho. Talvez trouxesse mesmo. Aquele não havia sido somente um sonho comum. Era uma lembrança, que o levava de volta no tempo, direto à uma outra realidade que vivera há tantos anos atrás. Voltou sua atenção ao telefone que vibrava sobre sua cômoda ao sentar-se na cama, ainda era noite, havia algo errado.

—Hey... O que houve? – Perguntou tão logo atendeu, já angustiado pelo que poderia estar por vir. Os soluços ao outro lado da linha, também não ajudavam muito. Sentiu um aperto em seu peito. – Estou a caminho. – Levantou-se num pulo, tentando evitar todos os pensamentos obscuros que agora preenchiam sua mente. Apressou-se a sair de casa, sentindo as gotas geladas da chuva sobre sua pele, não tinha tempo a perder, ela era tudo com que se importava agora.

Não demorou muito até estar em sua porta. Não havia se alimentado naquela noite, e o esforço extra que fizera para aumentar sua velocidade, não demorou em cobrar de sua energia, estava ofegante e atordoado, mas o som de seus batimentos e sua áurea atormentada do outro lado daquela porta, silenciaram tudo e qualquer outra coisa em que pudesse pensar. Aproximou-se mais, de forma que ela pudesse lhe ouvir de dentro, não queria assustá-la ao bater na porta. Acalmou sua respiração antes que pudesse falar.

—Estou aqui... – Tentou manter um tom o mais sereno e seguro que conseguia, mas pôde ouvir seu coração acelerar. – Sou eu... – Antes que pudesse dizer outra coisa, a porta enfim se abriu, para revelar uma figura pálida e abatida, como uma flor, sua linda flor despedaçada. Ele a abraçou, e sentiu a própria angustia aumentar.

***

Orihime sentia-se desconectada, fora de orbita. Não sabia ao certo se seria por todo o medo que sentira ou talvez pela privação de sono, mas o mundo ao seu redor parecia mover-se em câmera lenta. Estava sentada em seu sofá, abraçando os joelhos, com uma coberta enrolada em torno de si. Em seus ouvidos, aquela voz, aquele ruído frio e aterrorizante, continuava ecoando, mais alto que seus pensamentos. O som da xícara colocada na mesa a sua frente, lhe trouxe de volta.

—Bebe um pouco, pode ajudar. – Ulquiorra sentou ao seu lado, com uma feição preocupada em seu rosto. Talvez só não mais do que quando ela o chamou na noite anterior, depois de conseguir enfim reagir.

Suas mãos ainda tremiam, quando pegou o celular e tentava discar um número. Os instantes seguintes, enquanto esperava que ele atendesse, pareciam durar séculos. Seus batimentos não haviam ainda se acalmado, e cada chamada não atendida lhe atormentava, como pontadas inquietas em seu peito.

—Hey... – Quando enfim, pôde ouvir sua voz, se deu conta do quão difícil era para ela mesma, dizer alguma coisa. – O que houve? – Seu tom já estava exaltado, e preocupado. Orihime não achou que seria tão difícil forçar uma palavra para fora. - Estou a caminho. – Orihime sentiu-se despencar sobre o sofá naquele momento, como se ao menos, metade do peso a estivesse libertando.

Não sabia ao certo quanto tempo havia se passado até que ouvisse o sussurro em sua porta, desta vez de uma voz que por si só já lhe trazia calmaria.

—Estou aqui... – O ouviu dizer do outro lado da porta. – Sou eu...- Sua voz era contida e calma, mas Orihime sabia que estava preocupado. A ruiva levantou-se com dificuldade, não imaginava que um susto pudesse lhe exaurir daquela maneira, mas forçou-se a ficar de pé, precisava vê-lo. Tão logo abriu a porta, e seus olhos puderam encontrar com os dele, aquela figura encharcada pela chuva, com as gotas escorrendo por entre seus cabelos negros, por seu rosto e seu corpo, enquanto o esmeralda de seus olhos pareciam lhe amparar, Orihime sentiu que podia despencar quando ele a acolheu em seus braços. Tinha certeza que jamais vira algo tão deslumbrante e ofuscante, não achava ser possível amá-lo tanto quanto o fazia naquele momento.

Agora, sentado ao seu lado, Ulquiorra a estudava em silencio, mas Orihime não tinha certeza do que dizer. Como se diz a alguém que nada além de uma voz no meio da noite lhe havia causado tanto pavor? Não queria soar tão patética quanto soava em sua mente, mas ao mesmo tempo, não podia mentir.

—O que aconteceu? – Ele perguntou finalmente. Orihime pegou a xicara em suas mãos num suspiro, sua respiração voltara a acelerar e seus olhos viam-se outra vez marejados. Não imaginava que ainda houvesse alguma lágrima para chorar.

—Eu...- Começou, sua voz quase inaudível denunciava o quanto tempo havia permanecido em silencio. – Eu sinto muito... – Odiava-se por ter lagrimas precipitando em seu rosto uma outra vez, mas sentiu seu coração acalmar por um instante, quando Ulquiorra lhe trouxe para perto de si. -Havia... Havia alguém aqui... – Aos poucos, as palavras pareciam forçar-se para fora. Enquanto Ulquiorra ainda lhe abraçava, Orihime pôde sentir seus músculos tencionarem. – Havia alguém na porta... – Neste momento, quebrando o abraço, o moreno a afastou o suficiente para que pudesse ver seu rosto, uma expressão muito mais nervosa havia se instalado em sua face.

—Quem era? Você permitiu que entrasse em sua casa? – Perguntou com uma urgência que a deixara desconsertada. – O que houve? – Ele ainda questionava, exasperado.

—Eu não sei... Não sei quem era, nem o que queria... – Admitiu. – Eu não abri a porta... Não sei quem estava lá... – Seus olhos fugiram dos esmeralda que pareciam tentar lê-la. – Mas havia uma voz... sussurrando meu nome... – Orihime afastou-se um pouco mais, enxugando as lágrimas em seu rosto com as mãos. – Eu sei que parece besteira... Eu sinto muito... – Não tinha coragem de encará-lo agora. No instante seguinte, estava de volta na segurança de seus braços. Ulquiorra respirou fundo, como se estivesse cansado, muito mais do que sua aparência pudesse mostrar.

—Eu vou mantê-la segura. Quero que saiba disso. – Ele sussurrou, pousando um beijo suave em sua testa. Orihime sentiu paz preencher seu peito, como se o amor que sentia por ele estivesse a transbordar em seu coração. Tudo parecia melhor quando se aconchegou mais em seu peito e a privação de sono dos últimos dias pareciam estar enfim cobrando o que restava de sua energia.

***

Ichigo permanecia sentado. Encarando o vazio. Havia algo errado ali. Queria convencer-se de que tudo não passava de um pesadelo do qual despertaria cedo ou tarde, com o calor de Rukia ao seu lado outra vez. No entanto, o olhar fixo de Urahara, sentado à sua frente, lhe dizia que não era o caso.

—O que...- O ruivo tentava formar uma sentença que fizesse sentido. – O que isso quer dizer? – Seus olhos encontraram com os do homem, que também parecia perturbado.

—Não posso afirmar com toda certeza, ainda. – Admitiu, levantando-se para alcançar uma pilha de papeis e apresentando-as a Ichigo, que a essa altura só podia encará-las sem conseguir entender seu significado. – São os resultados dos exames periódicos que temos realizado desde que começou a usar os comprimidos.

Sim, aqueles comprimidos. Ichigo lembrava-se bem do dia em que começou a usá-los. Fora pouco depois de começar seu treinamento com Yoruichi. Apesar de estarem sempre treinando no nível máximo que ele conseguia, os resultados ainda eram poucos, quase não havia diferença e sabia que daquela maneira não conseguiria salvar nem a si mesmo, menos ainda todos aqueles que queria proteger. Foi quando soube das pesquisas de Urahara. O cientista estava pesquisando sobre os efeitos das capsulas de emergência dos caçadores, bem como a estrutura genética das criaturas e daqueles que eram conhecidos como “Caçadores inatos”, que basicamente, haviam nascido para o oficio, como Yoruichi e também, Rukia.

Aquelas capsulas lhe haviam dado força, velocidade, habilidade, e acima de tudo lhe fizeram com que alcançasse o nível que tanto queria, lhe fizeram capaz de proteger e ajudar Rukia, e as pessoas em sua vida. Eram seu milagre, mas agora...

—A princípio, as mudanças eram poucas, quase insignificantes... – Urahara explicava, mostrando-lhe gráficos e números. – No entanto... – Mostrou-lhe um gráfico de mudança drástica. Alguns itens do exame aumentavam absurdamente, enquanto outros despencavam. – E daí em diante, as mudanças só ficam mais drásticas... No seu dia a dia, notou algo de diferente em si mesmo? Além das habilidades para a luta, quero dizer. – O tom de Urahara era curioso, mas não da forma com que estava acostumado, desta vez, havia algo sombrio ali. Ichigo tentou lembrar-se de algo que poderia contar como muito fora do comum sobre si mesmo, o que era difícil numa realidade em que seu “normal” era lutar contra monstros noturnos, bebedores de sangue.

—Não sei... Como assim? – Ainda se via atordoado.

—Seus sentidos, desejos, os efeitos pós luta, todas essas coisas. – Aquilo o preocupava ainda mais. A resposta era definitivamente sim.

Seus sentidos estavam mais aguçados, podia sentir cheiros e ouvir coisas de muito longe, assim como sua visão estava mais precisa, e seu paladar e tato intensificados. Sua atração por Rukia parecia mais intensa também, não só por poder sentir seu cheiro e seu toque com mais fervor do que acreditava possível, era como se seu corpo precisasse do dela para existir. Sentia-se mais e mais impelido as lutas também, quanto mais lutava, mais queria estar lutando, quase como um instinto animalesco que o impulsionava sempre em direção a seus inimigos... Sim, tudo conferia com o que Urahara havia mencionado. Mesmo assim... Não queria acreditar que...

—Esses exames mostram uma mutação crescente em suas células... – Urahara, lhe mostrou, mas já não precisava. – Seu corpo... Você está mudando, Kurosaki-san...- Sua voz era solene e cautelosa.

—O que isso significa pra mim? – Ichigo perguntou, mas não sabia ao certo se queria a resposta. – O que acontecerá comigo?

—No momento é difícil dizer... – Havia sinceridade em sua voz. – Mas, com suas células mudando... é possível que cada vez mais, aproxime-se da realidade deles...

Ichigo já não precisava perguntar o que ele queria dizer com aquilo, sabia muito bem. A seguir também não precisava que Urahara lhe desse todas aquelas recomendações sobre interromper o uso dos comprimidos, e o pior de tudo: pelo menos por enquanto, que deveria manter-se distante de seus amigos, família, e até mesmo dela... a principal razão pela qual havia feito tudo aquilo desde o princípio... Por sorte, se é que tal coisa ainda era possível para ele, ainda tinha um dia para explica-la o que estava acontecendo, e inventar alguma história para as outras pessoas em sua vida que notariam sua ausência.

Mais tarde, enquanto caminhava em direção ao local em que encontraria Rukia, podia sentir seus pensamentos indo numa velocidade atordoante. Pareciam haver mil vozes em sua mente, dizendo nada em especial, apenas atormentando-o, como mais um presente da sua nova existência em desenvolvimento. Parecia que, uma vez que se deu conta do que estava acontecendo, tudo tornara-se ainda mais intenso. Podia sentir uma agonia palpável, até no ar ao seu redor.

Até que, enfim, tudo se silenciou, dando espaço ao som de seus passos, seu perfume adocicado e os batimentos de seu coração, como se todo seu foco houvesse se voltado em direção dela. Rukia vinha ao seu encontro, deslumbrante, mais do que ele pensava ser acreditável, fazendo seu coração acelerar como se fosse a primeira vez que a via. Estava trajando um vestido branco, trabalhado com renda que se assemelhava a flocos de neve, o vestido conseguia parecer clássico e formal, mesmo tão justo ao seu corpo, precisou engolir seco e tentar desviar seu olhar, tentando ao menos não parecer tão nervoso. Ichigo foi em sua direção, como se sua alma pedisse por isso, parando quando estavam frente a frente, seus olhos aprofundando-se nos dela.

***

Rukia perdeu o folego por um instante. Nunca havia visto Ichigo tão bem vestido. O visual formal lhe caia surpreendentemente bem, e foi preciso mais que um leve esforço para fazê-la parar de observá-lo em seus menores detalhes. Não bastando isso, como um golpe final, o ruivo lhe direcionou um de seus melhores sorrisos ao vê-la. Sentia-se uma tola, por não conseguir conter o próprio sorriso, bem como o frio na barriga enquanto aproximava-se dele. Uma vez frente um ao outro, pareciam esquecer-se do que faziam ali, ou de qualquer coisa que não fosse um ao outro. O tempo havia congelado.

—Ah! - Ichigo os despertou de volta a realidade. – Trouxe pra você! – Ele disse lhe mostrando uma máscara branca e delicada, que combinava perfeitamente com o vestido que usava.

—Como sabia? – Rukia perguntou, ainda com o sorriso em seus lábios.

—Eu não sabia. – Ichigo admitiu rindo. – Na verdade trouxe duas, na esperança que alguma combinasse. – Respondeu, lhe mostrando a máscara negra igualmente detalhada e deslumbrante. Ambos riram. Ichigo aproximou-se um pouco mais, delicadamente colocando-lhe a máscara no rosto. E então, com a mão ainda acariciando seu rosto, seus olhos estacionaram-se nos dela. Como seguiria sua vida normalmente, uma vez que se visse longe daqueles olhos caramelo? Sem o som de sua risada? Sem poder sentir seu calor perto dela? O ruivo parecia também afundado em pensamentos, até que enfim, suspirou e lhe sorriu novamente, colocando a própria mascara, preta e simples no rosto. – Então, vamos? – A mão que lhe havia acariciado o rosto, ele a oferecia agora, para que seguissem juntos.

—Nunca imaginei que te veria tão arrumado. – Não pôde perder a oportunidade de tentar tirá-lo do sério. Ichigo riu.

—Nem eu. – Rukia podia jurar que seu sorriso deixara a noite um pouco mais clara, pelo menos a seus olhos. – Que tipo de festa será essa? – Ele perguntou em tom pensativo.

—É uma ótima pergunta. – Rukia respondeu no mesmo tom, enquanto seguiam seu caminho, sem pressa, como se cada segundo contasse.